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Pêcheux, desde os seus primeiros textos sobre discurso, esteve muito voltado à luta política e à transformação das relações sociais. De fato, o autor, ainda assinando sob o pseudônimo de Thomas Herbert, considerava o discurso como “instrumento da prática política”, ou que “a prática política tem como função, pelo discurso, transformar as relações sociais reformulando a demanda social” (HENRY, [1969] 2010, p. 24). Esta posição política manteve-se sempre presente no horizonte de sua teoria.

Quando, na segunda fase da Análise de Discurso (AD-75), Pêcheux se debruça numa reformulação da teoria, revisando, dentre outros pontos teóricos, a noção de “maquinaria” fechada na qual os discursos seriam estanques, o autor propõe, juntamente com Catherine Fuchs, que o quadro teórico da Análise de Discurso se faz:

[...] na articulação de três regiões do conhecimento científico:

1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;

2. a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo;

3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.

Convém explicitar ainda que essas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica). (PÊCHEUX & FUCHS, [1975] 2010, p. 160).

Considerar o materialismo histórico (revisto por Althusser) na teoria do discurso é considerar a materialidade da ideologia nas práticas de linguagem dos sujeitos inseridos numa conjuntura específica.

Assim compreendemos como as condições de produção importam e como sustentam os efeitos de sentidos, tendo em vista que constituem a linguagem jogando- a a seu exterior, distanciando-se, assim, de um estudo tal qual proposto pela ciência linguística em seu modo estruturalista, isto é, o estudo de uma língua fechada nela mesma, autossuficiente, imanente, completa. A este respeito, Orlandi (2010a, p. 16) diz que “os estudos discursivos visam pensar o sentido dimensionado no tempo e no

67 espaço das práticas do homem, descentrando a noção de sujeito e relativizando a autonomia do objeto da Lingüística”.

Na teoria do discurso proposta por Pêcheux, leva-se em conta, então, o atravessamento ideológico que afeta as formações sociais. Nas palavras de Pêcheux e Fuchs ([1975] 2010, p. 162, itálicos e aspas dos autores),

a região da ideologia deve ser caracterizada por uma materialidade específica articulada sobre a materialidade econômica: mais particularmente, o funcionamento da instância ideológica deve ser concebido como “determinado em última instância” pela instância econômica, na medida em que aparece como uma das condições (não econômicas) da reprodução da base econômica, mais especificamente das relações de produção inerentes a esta base econômica. A modalidade particular do funcionamento da instância ideológica quanto à reprodução das relações de produção consiste no que se convencionou chamar interpelação, ou o assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico, de tal modo que cada um seja conduzido, sem se dar conta, e tendo a impressão de estar exercendo sua livre vontade, a ocupar

o seu lugar em uma ou outra das duas classes sociais antagonistas do modo

de produção [...].

Essa afirmação é importante porque Pêcheux ([1975] 2009) irá retomá-la para avançar sobre a noção de condições de produção. De imediato, fica marcado como Pêcheux (aqui com Fuchs ([1975] 2010)) entende que as condições de produção são determinadas pelo econômico, mais especificamente pela luta de classes, e atravessadas pela instância do ideológico, que afeta todo e qualquer sujeito. De fato, Pêcheux ([1975] 2009) fala em condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção. Considerando esse seu caráter contraditório, isto é, de reprodução e de transformação das relações de produção, as condições de produção do discurso são determinadas pela forma como a ideologia trabalha afetando os sujeitos.

Courtine ([1981] 2009), ao trabalhar o lugar teórico da noção de condições de produção63, diz que ela, entretanto, não ‘surge’ na Análise de Discurso pacificamente, mas carregando o peso das contradições teóricas que a fundam, sinalizando para as “dificuldades” (ibidem, p. 45) que tal noção produz no campo da teoria do discurso. Dificuldades que, conforme vimos acima, têm a ver com a exterioridade da língua não fechada sobre si mesma, com o envolvimento do sujeito no processo de produção do discurso, com a materialidade da história. Nos termos de Indursky (2006, p. 69), as

63 O autor investiga as origens teóricas possíveis da noção de condições de produção, bem como se

debruça sobre suas transformações, a fim de poder determinar um lugar para esta noção no campo teórico da Análise de Discurso.

68 condições de produção estão relacionadas “a sujeitos históricos, que se identificam com uma formação discursiva, e estão inscritos em lugares sociais, construídos ideologicamente. Vale dizer: as condições de produção são de natureza sócio- históricas”.

A fim de mostrar como as condições de produção afetam o discurso, consideremos a seguinte sequência discursiva, recortada de matéria publicada64 pelo portal de notícias on-line Carta Maior:

5 A defesa dos direitos dos gays nunca foi ponto forte dos conservadores. Quando assumiu como líder do partido, em 2005, decidido a “modernizar” a imagem de sua força, [David] Cameron começou a cortejar uma posição mais “gay friendly”, que culminou com este projeto de lei plenamente aprovado pelo setor modernizador de seu partido e seus sócios na coalizão, os liberal-democratas. (Carta Maior, 22 maio 2013, aspas do portal de notícias).

Em primeiro lugar, podemos considerar o processo de enunciação: a veiculação da notícia em um portal de notícias on-line brasileiro, assinada por um sujeito que ocupa a posição de jornalista que se filia à formação discursiva desse portal, no momento (histórico) em que se discutia um projeto de lei que legalizaria o casamento entre pessoas do mesmo sexo no Reino Unido, no ano de 2013. Em segundo lugar, podemos considerar os efeitos de sentidos que são produzidos a partir do que se diz na sequência discursiva acima em sua conjuntura histórica, em seu caráter de acontecimento histórico, à medida que se produzem sentidos sobre um evento jurídico até então não permitido – o do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo – no Reino Unido. Tal acontecimento reclama sentidos, ou, nos termos de Indursky (2003, p. 112), “um acontecimento histórico clama por sentidos que o discursivizem”.

Além disso, as condições de produção são o que permitem, em um portal de notícias on-line, dizer sobre o casamento civil homossexual em nossa formação social. Como explorou Soares (2006), antes do advento da epidemia de aids, nos anos 1980, a possibilidade de se discutir a homossexualidade era silenciada na imprensa, em revistas e jornais impressos. Consideramos, portanto, que há uma memória que vai deslocando sentidos e que permite que em nossos dias seja não somente possível falar sobre a homossexualidade, mas falar também, por exemplo, do casamento civil

64 Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Casamento-gay-novo-problema-

para-Cameron/6/27935>. Acesso em: 1 out. 2015. Esta SD será retomada e analisada posteriormente também no capítulo 4.7 (“O que fica nas Cartas”, p. 204).

69 entre homossexuais. Nesse sentido, marca-se um ponto de novidade que é regularizado pelo discurso jornalístico de outras formas; o discurso midiático na contemporaneidade produz sentidos distintos daqueles sobre os homossexuais no impresso nos anos 1980 porque as condições de produção são outras. Voltando à sequência discursiva acima, lemos como ali se produzem efeitos de sentidos de que a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo não se dá sem disputas de e por sentidos: as relações de força nunca cessam de se esbarrar.

Vale ainda dizer que, no que concerne às condições de produção de um discurso, consideramo-las em dois níveis: um no nível do que as sequências discursivas produzem como efeitos de sentidos, marcando um embate político; e outro no nível do que é possível dizer numa dada formação discursiva jornalística sobre a homossexualidade. Outra novidade em relação ao lugar do homossexual na mídia, distinta daquela dos anos 1980.

Isto posto, para que avancemos ainda em relação à noção de condições de produção, passemos ao conceito de sujeito.