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O termo “cidade” tem uma história icônica e simbólica profundamente inserida na busca de significados políticos. A cidade de Deus, a cidade edificada sobre um morro, a relação entre cidade e cidadania – a cidade como objeto de desejo utópico, como um lugar distintivo de pertença em uma ordem espaço-temporal em movimento perpétuo –, tudo isso confere à cidade um significado que mobiliza um imaginário político crucial.

(David Harvey, 2014, p. 22).

Precisamos nos deter, antes de partirmos para as análises, em alguns aspectos sobre o modo como entendemos a cidade a partir da posição teórica da Análise de Discurso. Uma vez que em nosso corpus trabalham sentidos a respeito de espaços gay-friendly na/da cidade, nesta seção queremos pensar discursivamente a questão do espaço (n)o qual a cidade (se) significa.

Para Orlandi (2003), a linguagem é um instrumento109 para se compreender a cidade. Consoante a autora, a cidade não é mero espaço físico, isto é, considerada apenas como uma extensão delimitada onde se assentam pessoas e construções, mas compreendida como “lugar simbólico, pensando o espaço em que [...] sujeitos

se significam, em condições de produção e em uma relação de memória particular,

aquela que se especifica no espaço público urbano” (p. 21, negritos nossos). E há um atravessamento da linguagem naquilo que constitui a cidade. A cidade é falada.

Isso significa que, de uma perspectiva discursiva 110, considera-se a historicidade que a constitui como acontecimento social: “De fato, a Cidade é o acontecimento social por excelência na atualidade. [...] É neste sentido [...] que re- afirmo: A cidade é um espaço simbólico com sujeitos vivendo dentro [...].” (ORLANDI, 2003, p. 21, itálicos e negrito da autora).

109 Cf. Henry ([1969] 2010).

110 Não estamos trabalhando, portanto, numa perspectiva da geografia, ou da antropologia, ou das

ciências sociais sobre a cidade e sobre os sujeitos que nela vivem, embora todas essas áreas nos interessem.

115 A cidade tomada como espaço público urbano é, como diz também Orlandi (2001, p. 12), “espaço material concreto funcionando como sítio de significação que requer gestos de interpretação particulares. Um espaço simbólico trabalhado na/pela história, um espaço de sujeitos e de significantes.” Um espaço, portanto, de linguagem, impregnado de sujeitos dando e reclamando sentidos, falando e sendo falados. A questão sobre a qual se debruça Orlandi (2001; 2003) diz respeito a uma forma de escapar do lugar comum sobre a cidade apenas enquanto um “campo das medidas” (ORLANDI, 2003, p. 22). E é sobre isso que também incidimos.

Em um glossário111 de termos sobre o espaço urbano, Orlandi (2003, p. 62, negritos da autora) escreve: “Espaço Social Público Urbano. Espaço material (político-simbólico) comum, sócio-histórico, com uma quantidade de sujeitos significantes vivendo dentro. Cidade.” No gesto de leitura da autora, a cidade comparece como espaço público construído pelo atravessamento político e simbólico. Isto nos permite desenvolver que, dados esses atravessamentos, a cidade é construída por meio da contradição, no ranger permanente entre história, língua e sujeito no espaço urbano.

A questão do espaço na/da cidade figura como central também para Rodríguez-Alcalá (2003, p. 68-69, itálicos da autora, negritos nossos):

O principal, quando falamos da cidade, é que falamos de um espaço

particular, por oposição a outros espaços com os quais se relaciona

(como campo, por exemplo, mas não só: o espaço de uma aldeia indígena ou de uma sociedade nômade se opõe a cidade mas não podem ser consideradas campo). Temos assim as diferentes designações, metáforas desse espaço, em sua relação com sua “exterioridade” e com seu interior:

cidade, campo, vila, espaço público, privado, etc.

Associado a isso, quando se fala desse espaço se fala dos habitantes

desse espaço: temos diferentes metáforas do habitante, tanto do sujeito:

cidadão, camponês, morador, invasor, proprietário, locatário, inquilino, latifundiário, arrendatário, assentado etc.; como da sociedade: sociedade urbana, comunidade rural, população da cidade etc.

Nesse fragmento, compreendemos como a contradição comparece: ela é determinada por aquilo que não é, pela diferença: não é campo, não é aldeia, etc. A cidade é metáfora: os significantes que a atravessam deslizam, significando-a, fazendo as suas bordas. E as suas fronteiras. Para Rodriguez-Alcalá (ibidem), na

111 Parte de um projeto de pesquisa intitulado: “Os Sentidos Públicos no Espaço Urbano” (FAPESP,

116 mesma esteira de Orlandi (2003), a cidade é espaço de significação, e assim o é também porque há o sujeito que nela habita. Dizer da cidade, então, é dizer do sujeito.

Essa relação do sujeito com o espaço onde habita é mediado pela ideologia e transcende a consciência (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2003). As formas como se significam sujeito e espaço são, portanto, materializações da ideologia numa conjuntura específica. Assim compreendemos que a cidade é relação de sentidos e de sujeitos que se tece “em pedra, asfalto, barro, cimento e palavras” (FEDATTO, 2013, p. 25); ou seja, se tece num espaço determinado. Nas palavras de Fedatto (ibidem, p. 25, itálicos da autora):

ao olharmos para os diferentes modos de estruturação do espaço, considerando que sujeitos históricos aí habitam, se identificam e produzem sentidos, estamos considerando que ele atua materialmente na formulação das práticas sociais; o espaço enquadra, determina, situa, põe em relação.

A partir dos desenvolvimentos até aqui, pudemos entender que a cidade tem uma historicidade que a determina, com todas as suas tensões, enquanto espaço discursivizado. E, nesse processo, a cidade também tem, como aspecto fundamental, um traço imaginário que produz um sentido de unidade, evidenciado quando se diz, por exemplo, ‘estar na cidade’, o que significa estar dentro dos muros112, dos limites espaciais de uma cidade. Com Orlandi (2004, p. 83) concordamos que “Por vivermos na cidade, nós já temos em nós uma certa memória de cidade”.

Isto posto, passamos à noção de território. Para tanto, iniciamos com uma incursão em Guattari e Rolnik (1986). De um lugar teórico que não o da Análise de Discurso, os autores dizem que:

O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (ibidem, p. 323, aspas dos autores).

Entendemos, a partir desse fragmento, que a noção de território para os autores compreende algo que comporta o espaço mas que também o transcende, abarcando um sistema nele inscrito. Território, neste caso, tem a ver com um modo

112 Orlandi (2004, p. 83) diz que “Fazer um muro significa indistingüir relações sociais muito

importantes.” A autora se refere à divisão do espaço urbano, a uma forma de significar uma memória em relação à urbanização.

117 de subjetivação num espaço e com a maneira como essa subjetivação funciona. Nesse sentido, observamos uma aproximação possível com o processo de identificação com o qual a Análise de Discurso trabalha, tal como se, em determinadas condições de produção, numa dada formação discursiva, o sujeito pudesse se identificar (enquanto sujeito homossexual, por exemplo) em/com um espaço, isto é, com os sentidos que significam aquele espaço podendo permitir que um sujeito com ele se identifique. Tendo no horizonte as formações imaginárias.

Para Guattari e Rolnik (1986, p. 323), o território pode ainda se desterritorializar,

abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair de seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios “originais” se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, [...], com os sistemas maquínicos[113] que a levam a atravessar, cada vez mais rapidamente, as

estratificações materiais e mentais.

Aqui notamos uma diferença em relação à Análise de Discurso, no que concerne ao modo de se conceber o espaço. Se por um lado podemos entender que o território é determinado pela divisão do trabalho (e até aí não há problema), a afirmação de que os territórios se desfazem continuamente a partir dessa divisão seria ignorar que, para além da (re)organização do espaço, há o sujeito, e que ele não funciona tal qual o espaço. Se a luta de classes opera um rearranjo contínuo, como afirmam os autores, de nossa posição o sujeito, ainda que atravessado pela história (isto é, pela ideologia), não se dá conta desse atravessamento. E não podemos esquecer que há o inconsciente. Nesse sentido, consideramos que o modo como Guattari e Rolnik (ibidem) pensam o território e a (des)territorialização114 recai sobre uma possibilidade de haver um controle mais ou menos consciente dos sujeitos sobre esse processo. Mas não basta o desejo.

De nossa posição, entendemos o território como parte de uma rede de significações sobre um espaço historicamente determinado. Deste modo, a questão da identificação do sujeito com o espaço, ou seja, os modos como ele o significa, como

113 Para os autores, uma máquina, seja ela técnica, teórica, social, etc., deve ser considerada em sua

evolução histórica, num quadro em que pode ser comparável à “evolução das espécies vivas” (GUATTARI & ROLNIK, 1986, p. 320). Estão se referindo às relações de seleção, exclusão e engendramento das máquinas.

114 Os autores ainda tratam da noção de reterritorialização, que compreenderia uma “recomposição

118 se identifica em processo, é estruturante. Basta considerarmos um sujeito que não se identifique com o ‘território’ que ocupa: como ele poderia desfazer-se de um espaço que não re-conhece?

Para adensarmos nossa discussão acerca do território, trazemos à baila a posição de Barbosa Filho (2016), que em sua tese de doutorado analisa o discurso sobre o trabalho de rua em Salvador. Teorizando sobre a cidade como espaço (do) político, o autor diz que na história do saber e das práticas políticas, no século XVI, o processo de territorialização, dentre outros, passa a ser uma forma de compreender a cidade “como um espaço fundamentalmente político, contraditório e submetido a relações de força” (ibidem, p. 32). Segundo o autor, a categoria de território emerge nessa época ao lado das de Estado, de população, de soberania, tecendo uma rede de sentidos para um saber político no qual o urbano115 comparece. Porque a cidade, no ocidente, surge conjuntamente ao saber político.

Ainda com Barbosa Filho (2016, p. 48) aprendemos que o estado moderno, nesse jogo de forças que o possibilitaram, se constitui como um “estado territorial”:116

A territorialização consiste no processo de apropriação/dominação/submissão que destitui o espaço geográfico do seu aspecto natural, transformando-o em um espaço político com vistas à sua instrumentalização e controle.

Dizer do território significa dizer, portanto, de um espaço (do) político, isto é, da divisão (do sujeito, dos sujeitos, da formação social). O que não significa que o espaço de que fala Orlandi (2001; 2003) e Rodríguez-Alcalá (2003) não o seja. Como vimos com estas autoras, o espaço na/da cidade é espaço de realização do simbólico e do político.

Ora, do que precede, podemos vislumbrar como os sentidos de espaço (urbano) e de território, considerados discursivamente, se entrecruzam. Há uma memória que os atravessa. A propósito, Orlandi (2004, p. 11) diz que “Cidade e território são solidários”. E acrescenta:

No território urbano, o corpo dos sujeitos e o corpo da cidade formam um, estando o corpo do sujeito atado ao corpo da cidade, de tal modo que o destino de um não se separa do destino do outro. Em suas inúmeras e variadas dimensões: material, cultural, econômica, histórica etc. (ibidem,

idem).

115 Barbosa Filho (2016) trata do urbano como um saber da cidade, em oposição a um saber sobre a

cidade, ao qual o autor denomina “urbanístico”.

119 Esta é uma posição, para nós, incontornável: a cidade, o espaço urbano, (isto é, na/da cidade), o território são significados a partir da dispersão de sentidos sobre esses objetos simbólicos e sobre outros ainda: o de sujeito, especialmente.

Com efeito, os significantes ‘espaço’ e ‘território’ produzem atrito, ora se aproximando, ora se distanciando, mas sempre significando algo da cidade, porque ela tem, como nos diz de novo Orlandi (ibidem), seu corpo significativo. Dessa maneira, assumiremos a posição de que ambos os significantes comportam uma tensão constitutiva da cidade: ela é espaço e é território. Sem que um recubra necessariamente o outro.

Isso nos remete a uma questão do Estado nacional. Segundo Rodríguez- Alcalá (2003, p. 83, negritos nossos),

O Estado nacional é o fato atual que significa politicamente o espaço e os sujeitos que o habitam. Tanto o campo e a cidade, como outros espaços

que não se encaixam nessa distinção, como, por exemplo, o espaço das sociedades indígenas ou das sociedades nômades africanas, são recobertas pelo Estado. É o fenômeno do Estado que, de acordo com suas características atuais (Estado territorial, nacional, diferente do Estado multinacional colonial), determina a legitimidade de fixar-se no espaço e

de circular por ele, elaborando os mecanismos jurídicos, administrativos,

técnicos, econômicos etc. para tanto.

Podemos enfim precisar que, se em nossa conjuntura atual o Estado nacional se sobrepõe (politicamente, sobretudo) ao espaço e aos sujeitos, podemos compreender que acerca do território se produz um sentido também jurisdicionado. Sentido que não necessariamente é produzido quando se diz de um espaço urbano, no qual, aliás, o poder (político, jurídico) pode estar ausente. É o caso das favelas, por exemplo.

Após estas reflexões, podemos tomar uma nossa posição na qual interpretamos o espaço na/da cidade como espaço urbano (do) político e (do) simbólico onde o imaginário opera na produção dos (seus) sentidos. Por isso nos distanciamos da noção de território. A partir disso, avançamos para as análises das sequências discursivas que recortamos de nosso corpus, trabalhando os sentidos que nos portais de notícias on-line são materializados acerca dos espaços gay-friendly.

Na sequência, organizamos nosso trabalho de análise em seis seções. Na primeira (capítulo 4.2), tecemos considerações sobre o significante ‘gay-friendly’. Desta seção decorre, no capítulo 4.2.1, uma reflexão em relação às aspas,

120 parênteses, itálicos e apostos e, no capítulo 4.2.2, um estudo sobre alguns dos efeitos de sentidos produzidos em dicionários de língua inglesa e de língua portuguesa que nos serão caros nas análises subsequentes. Na segunda seção (capítulo 4.3), iremos nos voltar à análise de sequências discursivas cujos efeitos de sentidos recaem sobre questões ‘de comportamento’ em relação aos sujeitos nos espaços gay-friendly. Na terceira seção (capítulo 4.4), vamos nos dedicar a um outro eixo regularmente encontrado em nosso corpus: o da questão da segurança em relação aos espaços gay-friendly e aos sujeitos homossexuais. Na quarta seção (capítulo 4.5), iremos investigar os modos como um discurso sobre o mercado atravessa nosso corpus, sobretudo no que concerne ao consumo. Na quinta seção (capítulo 4.6) investigaremos uma relação entre os espaços gay-friendly e os denominados “guetos gays”. E, por fim, na sexta seção (capítulo 4.7), nos debruçamos sobre efeitos de sentidos outros que comparecem em dois portais de notícias alternativos: Carta Capital e Carta Maior.