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Em tensões: considerações iniciais sobre a construção de um objeto

A considerar, na esteira de Romão (2004, n.p.), que a internet constitui hoje “a manhã do século XXI”, nosso interesse em pesquisar na mídia inscrita na rede on- line passa também pelo fato de termos à disposição, uma vez conectados, uma gama de resultados, isto é, de materialidades significantes no on-line, indubitavelmente maior do que poderíamos ter se trabalhássemos com suportes impressos, levando em conta as possibilidades de acesso a essas materialidades. Além disso, a rede tem um funcionamento próprio que se distingue, por exemplo, de outras redes de informação, tais como o rádio, a televisão e a mídia impressa – muito embora todas constituam redes informativas que “arquitetam nós de vozes em cadeias que se cruzam e espelham informações” (ibidem, n.p.).

Três critérios se projetam no que afirmamos acima: um em relação ao suporte, isto é, à mídia que se faz (no) on-line; um em relação à quantidade, ou seja, à possibilidade de se obter uma quantidade de materialidades significantes inscritas no on-line; e um em relação ao funcionamento da mídia na internet. Esses critérios são decisivos para o modo como montamos nosso corpus.

32 A partir de nossas idas e vindas ao arquivo que ia se constituindo para análise, sentimo-nos atraídos, já dissemos e vale retomarmos, pelas formas de dizer i) sobre os espaços ditos como destinados aos homossexuais e ii) sobre os sujeitos homossexuais. Muitas tensões se materializaram desde os primeiros gestos de leitura do corpus, sobretudo, em relação ao uso de uma denominação específica – ‘gay- friendly’ – para significar um espaço na/da cidade. Devido a isso, destacamos, abaixo e ao longo deste capítulo, alguns desses pontos de tensão:

a) Por ser um significante em língua inglesa, justaposição de um substantivo – gay – e um adjetivo – friendly –, era curioso notar que ora não havia uma explicitação acerca do que ele significava em português, isto é, não havia tradução para a língua portuguesa, ora a ele se seguia um comentário17 (cf. AUTHIER-REVUZ, [1982] 2004). No primeiro caso, o significante funcionava como já-lá; no segundo, havia uma tentativa de cristalizar, por meio de uma glosa (AUTHIER-REVUZ, 1998), um sentido em relação a ele (trataremos desta questão no capítulo 4.2, p. 120);

b) Se, por um lado, o significante ‘gay’ já é uso corrente em língua portuguesa e se encontra dicionarizado no Brasil18, havia incerteza se a denominação ‘gay- friendly’, por sua vez, estava incorporada ao léxico da língua portuguesa19;

c) Os modos de significar os espaços na/da cidade na mídia on-line, sobretudo no que diz respeito a um espaço circunscrito, com um funcionamento – ele é dito como destinado a sujeitos específicos – que reclama um gesto analítico;

d) Os modos de significar os sujeitos homossexuais em condições de produção contemporâneas nos portais de notícias on-line que selecionamos para análise.

A partir da enumeração dos pontos acima postos, observamos que no processo de produção de sentidos acerca dos espaços denominados ‘gay-friendly’ algo faltava, porque se projetava uma opacidade quanto ao uso da denominação – um efeito da língua que não diz tudo. No entanto, os portais de notícias on-line funcionam de modo que os sentidos pareçam não afirmar essa opacidade: em geral,

17 Para Authier-Revuz ([1982] 2004), um comentário pode ser uma glosa, um retoque, um ajuste no

dizer. Ver também capítulo 4.2.1, “Entre aspas, parênteses, apostos...”, p. 126; 128.

18 No dicionário Houaiss (2009), a datação é de 1953. Edward MacRae escreve, em 1983, que a

“palavra gay, originalmente restrita aos meios homossexuais dos países de língua inglesa”, à época se tornava “conhecida de todos e usada como expressão muito menos carregada negativamente” (MACRAE, 1983, p. 56) do que o termo ‘homossexual’.

19 A denominação, até dezembro de 2016, ainda não consta nos dicionários de língua portuguesa

33 é como se a denominação fosse saturada de sentido, perfeitamente evidente e passível de se autoexplicar, ou desdobrada por um aposto funcionando para imaginariamente cercar os sentidos daquele significante. Voltaremos a isso posteriormente, mas vale desde já dizer que esse efeito se dá a partir de um esquecimento no nível enunciativo, que Pêcheux ([1975] 2009) classifica como esquecimento nº 2, o qual provoca a impressão de que há uma conexão direta entre a realidade e o pensamento, isto é, provoca a impressão de que o que se diz só pode significar de uma determinada maneira: é aquilo.

Ao refletir sobre a questão de significação, Orlandi ([1992] 2007) denomina a relação direta entre as palavras e as coisas como conteudismo. Nesse sentido, é como se gay-friendly somente pudesse significar de uma maneira porque haveria uma ligação direta com a realidade, ou seja, haveria na própria denominação um ‘conteúdo’ completo, o qual assim poderia ser completamente compreensível, transparente, evidente.

No que concerne ao trabalho discursivo, podemos perguntar por que tais questões nos interessam, em detrimento de outras. E consideramos que uma resposta nos seja dada por Orlandi ([1992] 2007). A autora diz que há uma injunção à interpretação dada historicamente por nossas relações com a linguagem, a qual põe em causa o sujeito e o sentido. O pesquisador analista, portanto, não poderia estar fora dessa injunção, porque fazemos, consoante Pêcheux ([1982] 2010) e Mariani (1998), uma leitura interpretativa do arquivo. Se a interpretação não é unívoca e muito menos qualquer uma, já que é determinada pela história, trabalhar os sentidos via Análise de Discurso é lançar mão de um suporte teórico que permite a construção de um dispositivo de análise, o qual permite passar da interpretação para a compreensão dos sentidos em movimento (ORLANDI, 2012a).

Por conseguinte, os sentidos sobre os espaços denominados gay-friendly pedem que seu funcionamento discursivo seja levado em conta. Trata-se de percorrer como esses sentidos têm uma forma material, com uma carga histórica, o que, redunda dizer, significa que são atravessados pela ideologia. A propósito, como estamos falando de espaços na e da cidade, Zoppi-Fontana (2003), operando as noções de ordem e organização20 da língua formuladas por Orlandi (2001, 2012a) em

20 De acordo com Orlandi (2012a), a ordem da língua é forma material, isto é, “sistema significante

material”. Quando se pensa na ordem do discurso, por sua vez, a ordem real da história também incide, recobrando sua materialidade simbólica (ibidem), de modo que a ordem do discurso se constitui dessa

34 sua relação com o urbano, diz que “Os espaços da cidade são interpretados por uma discursividade que projeta sobre a ordem real da cidade uma organização imaginária que se coloca como ideal ou modelo de esquadrinhamento urbano.” (ZOPPI- FONTANA, 2003, p. 256, itálicos da autora). Essa asserção nos é importante à medida que temos como um nosso objetivo chegar à discursividade21 acerca dos espaços na cidade ditos como destinados a homossexuais e acerca dos sujeitos homossexuais que são inscritos em tais espaços.

Em outros termos, uma vez que a mídia on-line diz dos espaços para homossexuais, queremos investigar as formas como isso é feito, considerando a discursividade em seu funcionamento, ou seja, a rede de significações tecida na e pela história, a qual torna alguns sentidos evidentes e, ao mesmo tempo, apaga outros. E, para realizarmos nosso trabalho de análise, elegemos como modo de entrada os sentidos produzidos a partir do significante ‘gay-friendly’ em como ele comparece nos portais de notícias on-line brasileiros, isto é, nas formas como a denominação tem sido, cada vez mais, conforme vimos no capítulo anterior (p. 22-ss), vinculada aos espaços para homossexuais. Como bem sintetiza Orlandi (2012a, p. 49, itálicos da autora), iremos:

Trabalhar com os movimentos (gestos) de interpretação do sujeito (sua posição), na determinação da história, tomando o discurso como efeitos de sentidos entre locutores. São [...] duas ordens que [...] interessam: a da língua e a da história, em sua relação. Que constituem, em seu conjunto e funcionamento, a ordem do discurso. Em sua materialidade.

Contemplamos, em suma, uma circulação de enunciados sobre espaços e sujeitos homossexuais na mídia on-line a partir de uma denominação.

Ainda no que tange ao campo das tensões, há que se considerar que falar sobre os espaços destinados aos sujeitos homossexuais é falar também sobre um saber acerca destes sujeitos, um saber que é instituído, marcado pelos discursos que

relação entre as ordens da língua e da história. A organização, em contrapartida, está do lado da regra, do sistema, do idealismo. Consoante Orlandi (ibidem, p. 49), “Ao se passar da instância da organização para a da ordem, se passa da oposição empírico/abstrato para a instância da forma material em que o sentido não é conteúdo, a história não é contexto e o sujeito não é origem de si”.

21 Segundo Mariani (1998, p. 24), a discursividade tem como caráter a “produção simbólica ininterrupta

que na linguagem organiza sentidos para as relações de poder presentes em uma formação social, produção esta sempre afetada pela memória do dizer e sempre sujeita à possibilidade de rupturas no dizer – como um dos elementos constitutivos dos processos sociais e, por conseguinte, constitutivo da materialidade lingüística”. Lunkes (2014, p. 34) define, ainda, que “A discursividade permite situar [os] processos discursivos e a partir da análise dessa trama espessa o analista pode colocar em suspenso o que é construído historicamente a partir de efeitos de sentidos de evidência.” (p. 34).

35 os atravessam e pelos espaços que ocupam – ou que podem ocupar –, pelas demarcações na cidade (ORLANDI, 2001, 2003; RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2003). Falar sobre os sujeitos homossexuais ocupando espaços na cidade é falar, ainda, sobre a própria cidade, uma vez que se diz dos espaços que nela vão sendo destinados a esses sujeitos. Conforme Fedatto (2013, p. 22), “[...] a história do saber não é desvinculada do espaço onde sua produção se efetiva nem das condições sócio- históricas que tornam possível (e muitas vezes imperiosa) a demanda por um determinado tipo de saber – e pelo objeto que ele constrói”.

À vista disso, trabalhar discursivamente sobre os efeitos de sentidos acerca dos espaços destinados a homossexuais nos portais de notícias on-line nos permitirá compreender os processos discursivos que dizem desses espaços e, por extensão, dos sujeitos que os ocupam. Embora os sentidos pareçam estabilizados ou naturalizados em relação a um determinado objeto de que se fala, para a Análise de Discurso, o discurso é jogo de forças, efeitos de sentidos contraditórios, sempre em tensão, nos quais os dizeres vão fazendo movimento porque são práticas linguageiras inscritas na história.

Na próxima seção, ainda antes de partirmos para uma exposição acerca da construção do corpus, faremos uma reflexão necessária sobre o funcionamento do discurso jornalístico. Esse segmento nos permitirá, depois, compreender de modo mais abrangente a forma como o corpus se desenhou. Passemos então a ele.

2.4 Sobre a produção de evidências, ou uma questão sobre o discurso