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2.9 O que fisga o sentido?

2.9.5 Aquilo que fisga o sentido

Vimos, até aqui, de que modo os estudos de e sobre a linguagem passaram por várias conjecturas. Não obstante, enquanto analistas de discurso, tomamos uma posição de que só há linguagem para e por sujeitos. Isto significa que a língua não é uma entidade que funciona por si própria, embora no curso da história tal consideração tenha tido seu lugar.

não desaparece sem deixar traços no sujeito-ego da ‘forma-sujeito’ ideológica, identificada com a

evidência de um sentido”.

82 Pêcheux ([1975] 2009, p. 22, itálicos e aspas do autor) diz: “[...] o que falta é essa causa [que

determina o sujeito exatamente onde o efeito de interpelação o captura], na medida em que ela se ‘manifesta’ incessantemente e sob mil formas (o lapso, o ato falho etc.) no próprio sujeito, pois os traços inconscientes do significante não são jamais ‘apagados’ ou ‘esquecidos’, mas trabalham, sem se deslocar, na pulsação sentido/non-sens do sujeito dividido”.

87 A partir da discussão sobre a retórica antiga, foi possível percebermos que a busca pelos sentidos verdadeiros, tomados como únicos, completos, e, mais do que isso, claros e inequívocos, compunha um imaginário de que os sentidos reais fossem possíveis de se alcançar. O sujeito da Antiguidade era um sujeito contemplativo que tomava o mundo como algo finito, fechado; sua busca se voltava à essência das coisas. No entendimento platônico que vigorou e ainda vigora com força havia uma relação posta entre palavra e coisa (cf. FOUCAULT, [1966] 1999).83

A virada que se daria apenas entre os séculos XV e XVI fez com que a retórica começasse a declinar. As ideias de Copérnico, Kepler e Galileu, para citar apenas alguns nomes, viriam com força desestabilizar as verdades gregas e, daí, abalar também a posição e a questão epistemológica do sujeito. Isto porque a partir de suas descobertas – e é interessante observarmos que muitas delas referem-se ao universo, o que lhes garante uma amplidão – o lugar do sujeito começa a ser balançado, porque se passa a saber que o homem não é o centro do universo.

Avançando um pouco mais, consoante Foucault ([1966] 1999), a passagem da época clássica para a época moderna, a partir do século XVIII, compreendeu um período no qual o sujeito se torna objeto de um saber. Isso ocorre num momento de “mutação arqueológica” (ibidem, p. 429), como diz o autor, quando há um movimento da história natural para a biologia, a análise das riquezas para a economia, e a reflexão sobre a linguagem para a filologia. O homem nesse momento aparece como uma “posição ambígua”: a de ser objeto para um saber e um sujeito que conhece. Ainda de acordo com Foucault (ibidem), essa virada representa um homem que traz um duplo empírico (a vida, o trabalho, a concretude) e transcendental (a razão). Com o autor:

Sem dúvida, ao nível das aparências, a modernidade começa quando o ser

humano começa a existir no interior de seu organismo, na concha de sua cabeça, na armadura de seus membros e em meio a toda a nervura de sua fisiologia; quando ele começa a existir no coração de um trabalho cujo princípio o domina e cujo produto lhe escapa; quando aloja seu pensamento nas dobras de uma linguagem, tão mais velha que ele não

pode dominar-lhe as significações, reanimadas, contudo, pela insistência de sua palavra. (FOUCAULT, [1966] 1999, p. 437, negritos nossos).

88 Tal desestabilização fará com que o sujeito comece a se ver destacado de si mesmo, isto é, a ser sempre superado por algo de que ele não tem controle. E a linguagem é o lugar de realização desse movimento.

Já especificamente no campo da linguística, com o Saussure que nos é apresentado no CLG, vimos que, ao considerar apenas a parte sistemática da linguagem, a língua, suspendeu-se a presença do sujeito que faz uso desse sistema. Nas considerações sobre o signo linguístico (cf. CLG, [1916] 1989, p. 79-118), fica claro que, ao atribuir a um significante um significado que lhe corresponde, o sentido está contido nessa relação necessária. O sujeito, então, usa a língua, escolhendo as palavras pelo que elas significam, já que seria possível pensar num controle dos sentidos. Jakobson ([1965] 1995), por sua vez, avança com a questão da metáfora, mas ainda pensa a linguagem estruturalmente como um código fechado.

O que, então, por ora encerra nosso percurso, põe em circunstância: quanto à ligação entre o significante e o sujeito, o que faz com que o significante assuma sentido é uma formação discursiva, matriz de sentido, na qual ele se insere. E o sujeito, numa dada conjuntura, atribui sentidos sempre em movimento. Interpreta. Quando se atribui sentido, já se ocupa uma determinada formação discursiva, daí o fato de o sentido não ser qualquer um, mas dado por essa matriz de sentido.

Quando Lacan (apud MAGALHÃES & MARIANI, 2013) relê a relação entre significado e significante de Saussure, ele coloca o significante (S) sobre o significado (s), modificando a relação de ligação entre ambos com uma barra: “Significante sobre significado, correspondendo o ‘sobre’ à barra que separa as duas etapas” (LACAN, [1957] 1998, p. 500 apud MAGALHÃES & MARIANI, 2013, p. 109, negritos nossos). Lacan, portanto,

continua o trabalho teórico de Saussure, provocando um ultrapassamento em relação às posições do genebrino. Lacan sai do campo da linguística, mas precisa do pensamento de Saussure sobre a linguagem para confirmar o inconsciente: a linguagem é a condição do inconsciente [...] (MAIA, 2016, p. 311).

Isto significa que, a partir de Lacan, um significante não tem um significado que se prende a ele. Os significantes deslizam. Porém, há amarrações entre significantes e significados conforme os sujeitos falam. Para a Análise de Discurso, essas combinações, os sentidos produzidos, ocorrem conforme as posições que os

89 sujeitos ocupam numa determinada formação discursiva. E é por meio dessa amarração que se fisga(m) o(s) sentido(s).

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3 Do homossexual e da homossexualidade

Nós do mesmo sexo não fabricamos delícias: coçamos amenidades, a tensão dos ângulos distantes. Com muitos dedos puxamos as cortinas para trás. Os sonhos não circulam. O jogo está suspenso por decreto.

(“ameno amargo”, Ana Cristina Cesar)

Fala-se sempre de alguma posição ideológica. Esta posição, seja ela qual for, é determinada por condições de produção e assumida por sujeitos que habitam uma formação discursiva. Orlandi (2010a) diz que as condições de produção são constitutivas dos discursos. Os sentidos do que se fala, portanto, são sempre relações de sentidos. É um sentido x (ou y, ou z, etc.) porque se diz a partir do que uma formação discursiva suporta que se fale.

O discurso, nesse bojo, não se gera espontaneamente, mas é produzido historicamente. Para que se faça sentido, é preciso que outros sentidos já façam relações de sentido antes que um determinado sentido se instale. Em outras palavras, para fazer sentido, é preciso entranhar-se num funcionamento discursivo que é contínuo. O discurso não é senão um estado nesse processo sempre em movimento, ainda de acordo com Orlandi (ibidem).

Com Pêcheux ([1975] 2009), na segunda fase da formulação da teoria do discurso (AD-75), compreendemos como o sentido tem caráter material. Conforme lemos:

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamamos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.

[...] o caráter material do sentido – mascarado por sua evidência transparente para o sujeito – consiste na sua dependência constitutiva daquilo que chamamos “o todo complexo das formações ideológicas”. (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 146, itálicos e aspas do autor).

A partir do que diz o autor, podemos depreender como aquilo que afirmamos sobre o sentido se coloca: não há como fazer sentido sem considerar as condições de produção, produzidas pela ideologia que atravessa todo e qualquer dizer, todo e

91 qualquer sujeito. O efeito de transparência que então se coloca – bem como o de origem (no sujeito) – são efeitos próprios do funcionamento ideológico: dentre eles, o de apagar o seu atravessamento no momento mesmo da constituição do sujeito, do sentido. Nesse momento, fazemos uma ligação, já dada também por Pêcheux (ibidem) e já discutida por nós84, com o funcionamento do inconsciente tal qual proposto por Freud e desdobrado por Lacan.

Nosso percurso de análise lida com questões que se voltam ao discurso sobre os espaços ditos como destinados a sujeitos homossexuais na mídia on-line, em uma dada conjuntura histórica que é a da nossa contemporaneidade, considerando que aquilo que se diz sobre esse espaço e sobre esse sujeito homossexual é dito a partir de um lugar: o dos portais de notícia on-line em âmbito brasileiro. Temos em vista que as posições das quais se fala não são regiões herméticas nas quais apenas um dizer se inscreve, porque nelas inscrevem-se também as disputas pelos sentidos. Neste capítulo queremos, por conseguinte, traçar algumas reflexões sobre a questão gay85 para nos encaminharmos ao trabalho de análise do discurso jornalístico sobre os espaços para sujeitos homossexuais, operando sobre o modo como esse discurso comparece nos portais de notícia on-line com que trabalhamos.

Nosso primeiro ponto de parada é o do identitário homossexual.