2.9 O que fisga o sentido?
2.9.2 O significante em Saussure
A obra de Saussure nos foi apresentada sobretudo por seu Curso de Linguística Geral (doravante, CLG), a partir do qual o professor é “falado e tornado autor por seus alunos” (SOUSA, NAGEM & BALDINI, 2016)73. A partir do CLG, podemos dizer que o mestre de Genebra, ao propor sua famosa dualidade entre langue e parole, define um objeto para a ciência linguística. É essa divisão74 que promove, no século XIX, a instituição dessa disciplina científica.
Ao eleger, então, a langue enquanto um seu objeto,75 o Saussure apresentado no CLG ([1916] 1989) a caracteriza enquanto um sistema de signos. E a língua, para Saussure (ibidem), é forma, e não substância, a compor esse sistema de signos. Essa última distinção é basilar: consoante o CLG, ao introduzir a noção de valor – isto é, a noção de que um signo só vale pelo que ele não é em relação aos demais –, passou- se a descrever o que, na língua, se organiza, se estrutura, assumindo uma função76;
73 A saber: Charles Bally e Albert Sechehaye, que organizaram o livro, com a colaboração de Albert
Riedlinger.
74 Pêcheux e Gadet ([1981] 2010) falam da contradição própria a Saussure, entendida, conforme os
autores, por meio da dualidade de um Saussure que é apresentado no CLG e um ‘outro’ dos
Anagramas. Nos termos dos autores: “[...] Saussure constitui, direta ou indiretamente, a pedra de toque
de todas as escolas lingüísticas atuais, o seu ponto de partida crítico. Em nome de Saussure, os lingüistas se dividem, porque o próprio Saussure carrega em si essa divisão, que transparece na dicotomia fácil que opõe o Saussure do Cours de linguistique générale (tanto mais claro e frio quanto for comentado segundo a leitura dos editores), ao dos Anagrammes (em que vaga a obscura loucura da decodificação, das associações escondidas nos versos saturninos).” (ibidem, p. 55).
75 No CLG lemos que a escolha da língua como objeto da ciência linguística se dá pelo fato de a língua
ser a parte social da linguagem, passível de separação da fala (que seria uma realização individual e, portanto, não observável num conjunto), dotada de uma natureza homogênea, observável (cf. CLG, [1916] 1989, p. 19-25).
76 Na leitura que Pêcheux ([1969] 2010) faz do CLG, entretanto, o autor aponta que ali se inscreve um
“deslocamento conceptual” feito por Saussure, que separa uma “homogeneidade cúmplice entre a prática e a teoria da linguagem: a partir do momento em que a língua deve ser pensada como um
sistema, deixa de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido; ela se torna um objeto
do qual uma ciência pode descrever o funcionamento (retomando a metáfora do jogo de xadrez utilizada por Saussure para pensar o objeto da linguística, diremos que não se deve procurar o que cada parte
significa, mas quais são as regras que tornam possível qualquer parte, quer se realize ou não)” (p. 60,
80 a forma. Isto em oposição a uma realização física da língua, a substância, cuja percepção não seria necessariamente linguística.
Por sua vez, o signo linguístico é definido no CLG como a associação entre um significante (imagem acústica) e um significado (conceito). Os signos, enquanto unidades, relacionam-se entre si para formar um sistema, e se opõem por suas diferenças, ou seja, o que um é, o outro não é.
Dentre as muitas contribuições de Saussure, um deslocamento importante diz respeito à noção de significação. Quando nos é apresentada a famosa figura da união entre significado (conceito), em cima, e significante (imagem acústica), em baixo, com as flechas verticais indicativas, no CLG se lê:
Tomemos inicialmente a significação tal como se costuma representá-la [...].
Ela não é, como o indicam as flechas da figura, mais que a contraparte da imagem auditiva. Tudo se passa entre a imagem auditiva e o conceito, nos limites da palavra considerada como um domínio fechado existente por si próprio. (CLG, [1916] 1989, p. 133, negritos nossos).
Ora, o deslocamento se dá à medida que se compreende que a ligação entre um significante e um significado que constitui um signo só tem valor à medida que se relaciona com outros signos, num dado sistema linguístico. Isso quer dizer que não há relação entre as palavras e as coisas.77 Continua o CLG:
Se as palavras estivessem encarregadas de representar os conceitos dados de antemão, cada uma delas teria, de uma língua para outra, correspondentes exatos para o sentido; mas não ocorre assim. O
francês diz indiferentemente louer (une maison) e o português alugar, para significar dar ou tomar em aluguel, enquanto o alemão emprega dois têrmos
mieten e vermieten; não há, pois, correspondência exata de valôres. Os
verbos schätzen e urteilen apresentam um conjunto de significações que correspondem, grosso modo, às palavras francesas estimer e juger (“avaliar” e “julgar”); portanto, sob vários aspectos, essa correspondência falha. (CLG, [1916] 1989, p. 135, negritos nossos).
Nesse sentido, observamos que há uma diferença em relação à retórica antiga. Conforme vimos na seção anterior, a retórica considera um valor de verdade, isto é, uma significação inerente à linguagem. A partir do que lemos no CLG, por seu turno, sobretudo baseados no fragmento acima, podemos depreender como, ao dizer que não há “correspondentes exatos para o sentido”, a noção de valor entra em cena. Trata-se, portanto, de um ponto de virada sobre a questão da significação, uma vez
77 No CLG ([1916] 1989) lemos que não se pode olhar para um outro sistema como uma
81 que, conforme o CLG, só há significado no e dentro do sistema, em relação aos elementos presentes e ausentes nele. É evidente que muitas outras questões se colocam sobre esse corte teórico. No entanto, para nosso objetivo de pensar o significante, acreditamos ter tocado em um ponto que nos permite partir ao próximo passo, que é o de investigar de que modo Roman Jakobson dá novo alento à questão da dualidade significante-significado, uma vez que o autor se destaca pelos avanços no campo linguístico a respeito da comunicação, e tendo em vista que nos debruçamos sobre o discurso jornalístico on-line.