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3 POBREZA: DE QUE SE TRATA E COMO MENSURÁ-LA?

3.2 Amartya Sen e a pobreza como privação de capacidades

O economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1998, foi um dos principais responsáveis pela criação do IDH. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015g). Seus trabalhos sobre desenvolvimento e pobreza caminham na direção de uma perspectiva ampla desses fenômenos e apontam inúmeras insuficiências das concepções tradicionais, sugerindo um novo olhar sobre o quê, afinal, deve ser entendido como desenvolvimento e pobreza. Pela grande riqueza e influência de sua obra sobre os estudos e ações das Nações Unidas no campo do desenvolvimento, buscar-se-á, aqui, traçar um breve panorama dos principais aspectos de sua teoria.

apontando a insuficiência dos critérios mais largamente utilizados na literatura econômica, que, praticamente, se restringe a voltar o olhar para o aspecto da renda e do acúmulo de riqueza, identificando desenvolvimento com crescimento econômico.

Sem desprezar a importância do aspecto financeiro, o autor destaca que o acúmulo da renda é um meio e, não um fim em si mesmo. Para ilustrar sua ideia, utiliza-se de uma parábola da tradição indiana, em que um casal conversa sobre os meios para adquirir mais riqueza e, então, a mulher questiona o marido se “'o mundo inteiro, repleto de riquezas' […] lhe daria a imortalidade”. Ao receber a resposta negativa, a esposa, então, indaga “De que me serve isso se não me torna imortal”. (SEN, 2010, p. 27).

Com essa reflexão, Sen inicia sua argumentação, muitas vezes enriquecida com exemplos empíricos, para demonstrar que riqueza é apenas um meio não exclusivo para que as pessoas possam levar a vida que valorizam com razão. O autor aponta que já em Aristóteles há essa ideia de bens materiais como meio, ao citar trecho de “Ética à Nicômaco” no qual se afirma: “a riqueza não é evidentemente o bem que procuramos: é algo de útil, nada mais, e ambicionado no interesse de outra coisa.” (ARISTÓTELES, 1991, p. 11).

A partir da ideia supra, esclarece que liberdade deve ser compreendida não apenas no seu aspecto formal, isto é, enquanto “processos” que possibilitam as ações e decisões. Liberdade é, também, oportunidade para que as pessoas possam agir como acham melhor. Nas palavras do autor, “liberdade […] envolve tanto os processos que permitem a liberdade de ações e decisões como as oportunidades reais que as pessoas têm, dadas as circunstâncias pessoais e sociais”. (SEN, 2010, p. 32, destaque no original). O próprio autor admite que a liberdade, na concepção por ele adotada, assemelha-se à ideia de qualidade de vida. (SEN, 2010, p. 40).

Nessa perspectiva, liberdade diz respeito ao aumento de “capacidades”. Em outros termos, liberdade diz com a possibilidade de se tornar as pessoas mais capazes para alcançar os propósitos que, com razão, valorizam. E, nesse sentido, há uma via de mão dupla, pois as políticas públicas podem criar um ambiente propício ao incremento das capacidades e, do mesmo modo, o incremento da liberdade gera um ambiente propício para a adoção de políticas públicas voltadas para a valorização da qualidade de vida. (SEN, 2010, p. 33).

A liberdade, portanto, está associada à “condição de agente”, que, no contexto da obra de Sen, é “[...] alguém que age e ocasiona mudanças e cujas realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos, independentemente de as avaliarmos ou não também segundo algum critério externo”. (SEN, 2010, p. 34).

Como decorrência das ideias de desenvolvimento como liberdade e de liberdade como capacidades, a pobreza é compreendida como privação de capacidades. (SEN, 2010, p.

35).

Sen (2010, p. 120-150) tenta aprofundar o conceito de pobreza como privação de capacidades, mostrando, através de diversos e ricos exemplos empíricos, as distorções e equívocos que podem decorrer de uma análise baseada no critério exclusivo da renda.

Antes de apresentar os exemplos práticos, porém, o autor lista três importantes argumentos em favor da abordagem da pobreza enquanto privação de capacidades: primeiramente, essa abordagem se concentra em privações que são intrinsecamente importantes, ao contrário da concepção de pobreza como escassez de renda, que foca uma privação de caráter instrumental; em segundo lugar, existem diversas influências sobre a pobreza real, além da escassez de renda; e, por último, a relação instrumental entre escassez de renda e baixo nível de capacidades vária entre comunidades e, inclusive, entre famílias e indivíduos. (SEN, 2010, p. 120-121).

Como se observa, Sen não rejeita a importância da renda como instrumento para gerar capacidades. Pelo contrário, admite a enorme relevância da escassez de renda como fator gerador da pobreza real. Todavia, pontua a relatividade dessa variável, destacando, em seus argumentos, que a pobreza real não é uma decorrência exclusiva da baixa renda e que o elemento financeiro atua na vida das pessoas de formas diferentes.

A compreensão desse aspecto é especialmente relevante na formulação de políticas públicas voltadas à redução da pobreza e da desigualdade, por quatro fatores, como ressalta Sen (2010, p. 121-123):

a) a relação entre renda e capacidade é diretamente afetada pela idade, pelo sexo, pelos papéis sociais, pela localização, por condições epidemiológicas e outras variáveis cujo controle por parte das pessoas é nulo ou limitado;

b) pode haver um “acoplamento” entre privação de renda e adversidade na conversão de renda em melhores condições de vida, isto é, certas desvantagens, como a idade avançada, não só reduzem o potencial da pessoa para auferir renda, como representam um obstáculo para transformar a renda auferida em capacidades;

c) a renda nem sempre é distribuída igualitariamente dentro da família, podendo haver a preterição de membros, o que ocorre mais comumente com as mulheres; d) a privação relativa de renda pode ocasionar a privação absoluta de capacidades, como seria o caso de alguém relativamente pobre para os padrões internacionais, mas que habita em um país rico, onde os hábitos sociais são mais opulentos, ensejando um maior dispêndio de renda para desfrutar das condições de vida

medianas daquela sociedade.

Diante de todos esses argumentos, Sen (2010, p. 127-129) obtempera que, ao se tratar da desigualdade, impõe-se estabelecer, primeiramente, sob qual aspecto a desigualdade será estudada, pois “Desigualdade de rendas pode diferir substancialmente de desigualdade em diversos outros ‘espaços’ (ou seja, em função de outras variáveis relevantes), como bem-estar, liberdade e diferentes aspectos da qualidade de vida (incluindo saúde e longevidade)”. (SEN, 2010, p. 128).

Três casos empíricos, relativos a diferentes países, elucidam os argumentos sustentados por Sen: a diferença do nível de desemprego nos EUA e na Europa Ocidental; a Mortalidade dos negros nos EUA; e a situação de pobreza de alguns estados indianos em comparação com países da África Subsaariana. A seguir, cada um desses casos será pormenorizado.

3.2.1 A situação de desemprego nos EUA e na Europa Ocidental

Sen (2010, p. 129-131) destaca que a Europa Ocidental vem experimentando desde a década de 1990 índices alarmantes de desemprego, com taxas entre 10% e 12%, em países como Itália, França e Alemanha, que nas décadas de 1960 e 1970 experimentaram taxas de 5,8%, 2,3% e 1%, respectivamente. Nesses países, alinhados à política econômica do Bem- Estar Social, porém, é comum que pessoas em situação de desemprego recebam do governo algum tipo de auxílio compensatório, o que, em grande medida, atenua a desigualdade de renda para os desempregados. Nada obstante,

Há provas abundantes de que o desemprego tem efeitos abrangentes além da perda da renda, como dano psicológico, perda da motivação para o trabalho, perda de habilidade e autoconfiança, aumento de doenças e morbidez (e até mesmo de taxas de mortalidade), perturbação das relações familiares e da vida social, intensificação da exclusão social e acentuação das tensões raciais e das assimetrias entre os sexos. (SEN, 2010, p. 130).

Destarte, uma análise da desigualdade com apoio no critério exclusivamente da renda, pode mascarar situações graves de privação de capacidades.

Nos EUA, onde a política econômica é liberal, não há tantos benefícios para aqueles que se encontram em situação de desemprego. No entanto, lá as taxas de desemprego se mantêm entre 4% e 5% desde a década de 1960. Assim, em que pese haver nos EUA maior desigualdade de renda, comparativamente aos países da Europa Ocidental, o baixo índice de desemprego nos EUA pode demonstrar falaciosa a análise da desigualdade apenas pelo critério financeiro, já que além da privação da renda, o desemprego traz consigo inúmeras e profundas privações. (SEN, 2010, p. 131).

3.2.2 Mortalidade nos EUA – a situação dos negros

Outro exemplo bastante elucidativo da relatividade da importância da renda é o caso dos negros americanos. De início, a desigualdade entre brancos e negros nos EUA já se denuncia na renda per capta, estando os afro-americanos abaixo dos brancos nesse quesito. A taxa de mortalidade é maior e a expectativa de vida é menor, também, entre os negros. Comparando-se negros e brancos americanos e constatando-se que a renda daqueles é, em média, inferior a destes, poder-se-ia concluir pela existência de uma relação direta entre renda e mortalidade e entre renda e expectativa de vida. Outros dados empíricos refutam essa conclusão, todavia.

Primeiramente, a taxa de mortalidade dos negros é desproporcional à diferença de renda. Ademais, mesmo comparando negros e brancos dentro da mesma faixa de renda há uma enorme diferença nas taxas de mortalidade, diferença que se torna ainda maior se a comparação se der apenas em relação às mulheres. A taxa geral de mortalidade dos negros americanos é 2,3 vezes maior que a dos brancos. Isto é, para cada 100 brancos que morrem, contabiliza-se 230 mortes entre negros. Se a comparação for realizada com pessoas da mesma faixa de renda, a proporção diminui para 1,6, mas ainda representa um alto grau de desigualdade. No caso das mulheres, o índice geral é de 2,9 vezes, sendo 2,2 vezes para mulheres de uma mesma faixa de renda. (SEN, 2010, 132-133).

Além disso, a renda dos afro-americanos, embora menor que a dos brancos americanos, é substancialmente superior à renda per capta média de muitos países, como China, Costa Rica, Jamaica, além do estado indiano do Kerala, e, não obstante, a taxa de mortalidade nesses países é inferior à observada nos EUA em relação aos negros. (SEN, 2010, p. 132).

Mais uma vez, aqui, fica demonstrada a insuficiência da análise fundada apenas no critério da escassez de renda, principalmente para efeito de estabelecimento de políticas públicas voltadas à redução da pobreza e da desigualdade. No caso dos negros americanos, é inegável que o simples aumento da renda não é capaz de resolver os problemas da mortalidade, de modo que, ao que tudo indica, as políticas públicas devem se voltar para outros aspectos, como o guarnecimento de serviços de saúde e segurança nas localidades com maior incidência de mortalidade, por exemplo.

3.2.3 Mortalidade, nutrição e analfabetismo na Índia e na África Subsaariana

Caso interessante é o da Índia, quando comparada com países da África Subsaariana, onde se concentram os países mais pobres do mundo, sob o critério da renda. Essa

região, ao lado do Sul da Ásia, concentra, também, os países com as piores expectativas de vida. A Índia, por outro lado, apresenta, em média, expectativa de vida superior a 60 anos. No entanto, há enormes disparidades regionais. (SEN, 2010, p. 136).

Os dois estados da Índia com maior mortalidade infantil (Orissa e Madhya Pradesh), por exemplo, apresentam taxas superiores à média dos países da África Subsaariana. Ademais, esses estados da Índia apresentam quadros de subnutrição real que variam de 40% a 60% da população infantil, enquanto na África Subsaariana a média é de 20% a 40%. Outro aspecto importante, em que regiões da Índia apresentam índices piores em relação aos países mais pobres do mundo, é o analfabetismo. As taxas de alfabetização de distritos como Barmer, Kishanganj e Bahraich estão muito abaixo da média dos países da África Subsaariana e são inferiores às taxas observadas nos três países dessa região com as piores taxas. (SEN, 2010, p. 136).

A situação de certas regiões da Índia que, conforme relato acima, apesar de apresentarem padrões de renda superiores a países da África Subsaariana, experimentam piores condições de vida em termos de mortalidade, nutrição infantil e taxas de alfabetização, reforça, de um modo bastante convincente, a ideia que parece ser central na teoria de Sen: a renda é importante, mas, em última instância, o que deve ser avaliado para a caracterização da pobreza são as capacidades reais das pessoas, como a de experimentar uma vida razoavelmente longa e saudável.