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As contribuições da jurisprudência das cortes de direitos humanos

4 DIREITOS HUMANOS E O TRATAMENTO NORMATIVO DA

4.7 Polly Vizard e a pobreza como violação do direito humano a um nível

4.7.2 As contribuições da jurisprudência das cortes de direitos humanos

Há uma jurisprudência emergente no campo da pobreza e dos direitos humanos que corrobora o posicionamento dos órgãos oficiais da ONU. De início, destaca-se a interpretação ampliativa que vem sendo dada aos direitos civis e políticos, em especial o direito à vida, para reconhecer que mesmo essas liberdades podem gerar obrigações positivas para o Estado, ao lado dos deveres de não-interferência e não-intervenção.

No casos “Airey vs. Irlanda”, “Marckx vs. Bélgica”, “X e Y vs. Holanda” e “Ärzte für das Leben vs. Áustria”, a Corte Européia de Direitos Humanos reconheceu que o objetivo da Convenção Européia de Direitos Humanos é garantir que os direitos tenham resultados práticos e efetivos, de modo que, em certas circunstâncias, mostram-se necessárias ações positivas dos Estados, concluindo que o artigo 8º da Convenção, que protege o cidadão contra interferência arbitrária das autoridades estatais, não enseja apenas obrigações de não- interferência, mas, também, obrigações positivas para tornar efetivo o respeito à vida privada e familiar. (VIZARD, 2006, p. 174-175).

A ênfase nas obrigações positivas dos Estados-parte, inclusive as relacionadas a

54 No original: the obligation of conduct requires action reasonably calculated to realize the enjoyment of a particular right […] requires States to achieve specific targets to satisfy a detailed substantive standard

direitos tradicionalmente compreendidos como negativos, tem rendido ensejo ao surgimento do denominado teste da “diligência devida” (due diligence). Um caso emblemático apreciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos foi o caso “Rodriguez”, em que a Corte fixou o seguinte entendimento:

Um ato ilegal que viola os direitos humanos e que, inicialmente, não é diretamente imputável a um Estado (por exemplo, porque é o ato de uma pessoa privada ou porque a pessoa responsável não foi identificada) pode conduzir a uma responsabilidade internacional do Estado, não por causa do ato em si, mas em razão da ausência da diligência devida para prevenir a violação ou para reagir a ela conforme exigido pela Convenção. (CORTE INTERAMERICANDA DE DIREITOS HUMANOS, 1988, p. 31, tradução nossa).55

Nessa conjuntura, o direito à vida tem ganhado uma interpretação positiva, isto é, tem sido compreendido como um direito que gera para o Estado obrigações positivas. O próprio CDESC, no Comentário Geral nº. 6 assevera que:

O direito à vida tem sido muito frequentemente interpretado de modo restritivo. A expressão 'inerente direito à vida’ não pode ser adequadamente compreendida de forma restritiva e a proteção deste direito requer que os Estados adotem medidas positivas. Nesta conexão, o Comité considera que seria desejável que os Estados-parte tomem todas as medidas possíveis para reduzir a mortalidade infantil e aumentar a expectativa de vida, especialmente medidas para eliminar a desnutrição e as epidemias. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015h, tradução nossa).56

Há, outrossim, uma vertente interpretativa, como demonstram precedentes da Corte Suprema da Índia, no sentido de derivar o direito humano à alimentação do direito humano à vida. No caso citado por Vizard (2006, p. 178-179), a União das Pessoas por Liberdades Civis ajuizou ação alegando que o Estado falhou na implementação de políticas voltadas ao combate da fome e desnutrição, ocasionando várias mortes. A Corte Suprema da Índia reconheceu a falha do Estado indiano em evitar mortes por meio da correta implementação de políticas públicas e o condenou a diversas obrigações de fazer.

Outra jurisprudência doméstica interessante é a da Corte Suprema da África do Sul, que, embora reconheça como inexigível a implementação imediata dos direitos econômicos e sociais e a realização de um núcleo mínimo essencial a todos, tem fixado parâmetros para a avaliação racional das medidas adotadas pelo Estado Sul-Africano, a saber: as políticas devem ser capazes de facilitar a realização dos direitos econômicos e sociais, de modo que não se

55 No original: An illegal act which violates human rights and which is initially not directly imputable to a State (for example, because it is the act of a private person or because the person responsible has not been identified) can lead to international responsibility of the State, not because of the act itself, but because of the lack of due diligence to prevent the violation or to respond to it as required by the Convention.

56 No original: The right to life has been too often narrowly interpreted. The expression ‘inherent right to life’ cannot properly be understood in a restrictive manner, and the protection of this right requires that States adopt positive measures. In this connection, the Committee considers that it would be desirable for States parties to undertake all possible measures to reduce infant mortality and to increase life expectancy, especially measures to eliminate malnutrition and epidemics.

mostram razoáveis medidas que deixam de fora um segmento significativo da sociedade; e os programas devem levar em conta as necessidades de curto, médio e longo prazos. (VIZARD, 2006, p. 179-181).

No caso Gootbroom, a Corte Suprema Sul-Africana, deliberando sobre uma alegada violação ao direito à habitação de milhares de pessoas que se encontravam sem moradia, determinou que o governo daquele país desenvolvesse um programa compreensivo e coordenado para realizar o direito à moradia, progressivamente, de acordo com os recursos disponíveis, devendo tal programa incluir medidas razoáveis para aliviar a condição de quem não tem terras ou teto para morar. (VIZARD, 2006, p. 181). Na ocasião, a mencionada Corte fixou, entre outros, os seguintes argumentos:

É uma tarefa extremamente difícil para o Estado atender a essas obrigações nas condições em que o nosso país se encontra. Isto é reconhecido pela Constituição que prevê expressamente que o Estado não é obrigado a ir além dos recursos disponíveis ou realizar estes direitos imediatamente. [...] Apesar dessas considerações, trata-se de direitos e a Constituição obriga o Estado a torna-los efetivos. Esta é uma obrigação que os Tribunais podem e, em circunstâncias adequadas, devem impor. (ÁFRICA DO SUL apud VIZARD, 2006, p. 182, tradução nossa).57

Outro caso emblemático da jurisprudência Sul-Africana diz respeito ao direito a um tratamento médico adequado. No caso, conhecido como “Campanha de Ação para Tratamento”, o Estado havia desenvolvido uma droga para evitar a transmissão do vírus HIV da mãe para o filho em gestação, mas restringiu o acesso de determinadas regiões a essa droga, em razão de restrições geográficas. A Corte Suprema concluiu, porém, que um programa que deixe à margem uma parcela significativa da sociedade não pode ser considerado razoável e determinou que o Estado possibilitasse o acesso ao aludido medicamento em todas as suas regiões. (VIZARD, 2006, p. 182).

A Corte Interamericana de Direitos Humanos também possui jurisprudência bastante elucidativa acerca das obrigações positivas que decorrem de liberdades negativas e, especificamente, do direito à vida. No caso das “Crianças de Rua da Guatemala”, em que se tratou do assassinato de quatro crianças de rua pela própria força policial da Guatemala, a Corte fixou o seguinte entendimento:

O direito à vida é um direito humano fundamental, e o exercício desse direito é essencial para o exercício de todos os outros direitos humanos. Se ele não for respeitado, todos os direitos perdem o significado. Devido à natureza fundamental do direito à vida, abordagens restritivas dele são inadmissíveis. Em essência, o direito fundamental à vida inclui, não só o direito de todo ser humano de não ser privado da

57 No original: ‘[It] is an extremely difficult task for the state to meet these obligations in the conditions that prevail in our country. This is recognised by the Constitution which expressly provides that the state is not obliged to go beyond available resources or to realise these right immediately. […] [D]espite all these qualification s, these are rights, and the Constitution obliges the State to give effect to them. This is an obligation that Courts can and in appropriate circumstances, must enforce’.

vida arbitrariamente, mas também o direito de que ele não será impedido de ter acesso a condições que garantam uma existência digna. Os Estados têm a obrigação de garantir a criação das condições necessárias para que as violações deste direito fundamental não ocorram e, em particular, o dever de impedir que seus agentes atentem contra ele. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1999, p. 37, tradução nossa).58

Nessa mesma linha de pensamento, destaca-se o caso da “População de Ogoni”, apreciado pela Comissão Africana de Direitos Humanos. Nessa oportunidade, em que estava sob exame a alegação de diversas violações aos direitos humanos provocada por uma companhia de petróleo, a Corte aplicou a análise tripartite das obrigações decorrentes dos direitos humanos e entendeu que o estado da Nigéria violou os direitos humanos nos três níveis possíveis: respeito, proteção e promoção. (VIZARD, 2006, p. 186).