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O arcabouço teórico subjacente à abordagem da pobreza numa

4 DIREITOS HUMANOS E O TRATAMENTO NORMATIVO DA

4.2 O arcabouço teórico subjacente à abordagem da pobreza numa

Vizard (2006, p. 3) adota de modo expresso a concepção de pobreza como privação de capacidades, filiando-se, portanto, à acepção de pobreza criada por Amartya Sen, e defende que a pobreza se tornou um tópico central para os direitos humanos nas últimas décadas. Mais que isso, para Vizard (2006, p. 3), a pobreza é o pior problema que os direitos humanos enfrentam atualmente.

Para respaldar sua tese, apresenta inúmeros dados estatísticos demonstrando a relação entre aspectos relacionados à pobreza e as taxas de mortalidade e morbidade ao redor do mundo, destacando, de modo especial, a situação das regiões mais pobres, como a África Sub-Saariana e o Sul da Ásia. Nesse sentido, apresenta dados relativos à pobreza de renda, segundo o critério do Banco Mundial; à mortalidade decorrente da falta de acesso a bens essenciais como água potável e saneamento básico; à mortalidade relacionada à ausência de cuidados médicos básicos, como vacinas; e à situação das crianças que morrem de desnutrição e possuem educação inadequada. (VIZARD, 2006, p. 3-7).

Vizard (2006) volta a sua preocupação para as possibilidades de utilizar a estrutura dos direitos humanos como instrumento para a redução da pobreza, destacando que sua

[...] ênfase é sobre as maneiras pelas quais o embrionário, mas cada vez maior e mais profundo, quadro de compromissos ético, político e legal, no campo dos direitos humanos, pode fornecer uma base para fortalecer a responsabilização internacional e assegurar as ações individuais e coletivas necessárias a um programa sustentável de redução e eliminação da pobreza mundial. (VIZARD, 2006, p. 7, tradução nossa).19

Pontua-se que já na Declaração Universal dos Direitos Humanos a pobreza aparece como tópico de direitos humanos, na medida em que o art. 3º da Declaração prevê o direito à vida e os arts. 25 e 26 reconhecem o direito a um nível adequado de vida, o que inclui acesso à alimentação, roupas, habitação, cuidados médicos e serviços sociais essenciais. Além disso, outros tratados posteriores, como o PIDESC e PIDCP, trazem inúmeras previsões que podem ser associadas ao direito de obter um nível adequado de vida. (VIZARD, 2006, p. 8).

Para Vizard (2008, p. 8, tradução nossa),

Esses tratados criam obrigações internacionais juridicamente vinculativas para os Estados-parte para implementar progressivamente os direitos humanos à vida, à

19 No original: Rather, the emphasis is on the ways in which the embryonic but expanding and deepening framework of ethical, political, and legal commitments in the field of human rights can provide a basis for strengthening international accountability and securing the individual and collective actions necessary for a sustained programme of global poverty reduction and elimination.

alimentação e nutrição adequadas, à água potável e ao saneamento, aos serviços médicos adequados, bem como à educação, tanto individual quanto coletivamente, através da assistência e cooperação internacional.20

De acordo com Costa (2008, p. 89) é comum relacionar pobreza à violação de direitos humanos, como uma consequência da percepção moral de que a todos devem ser asseguradas condições mínimas de dignidade. Entretanto, do ponto de vista jurídico, ainda há a necessidade de se estabelecer, em termos mais precisos, a relação entre pobreza e violação de direitos humanos, pois nem toda condição de privação pode ser considerada uma violação perante o direito internacional dos direitos humanos. Para a autora, ainda há pouca discussão na teoria e na prática dos direitos humanos acerca dessa relação.

Segundo Costa (2008, p. 90), a distância entre a linguagem dos direitos humanos e a utilizada nos assuntos relacionados ao desenvolvimento tem raízes históricas, já que, desde o pós-guerra, os especialistas nas duas áreas têm trabalhado em órgãos intergovernamentais distintos, que, embora próximos, não trabalharam em conjunto. Somente a partir da década de 90 é que os discursos nessas duas áreas passam a convergir, sob o incentivo da ONU, sendo fundamental, nesse contexto, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos ocorrida em Viena no ano de 1993. Nessa conferência, declarou-se o caráter indivisível, interdependente e inter-relacionado de todos os direitos humanos.

Vizard (2006, p. 9) corrobora a afirmação de Costa e assevera que, embora o enfrentamento da pobreza como uma questão relacionada aos direitos humanos tenha sido negligenciada durante a Guerra Fria, na década de 90 a abordagem do assunto experimentou uma guinada e a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em 1993 na cidade de Viena, pode ser compreendida como um divisor de águas, na medida em que, entre os diversos compromissos assumidos pelos 131 Estados ali representados, firmou-se o entendimento de que os direitos humanos são indivisíveis, independentes e inter-relacionados.

A partir dali ganhou força a abordagem da pobreza numa perspectiva de direitos humanos, culminando com a Declaração do Milênio, por meio da qual os líderes mundiais se comprometeram a proteger e promover todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos e fixaram, entre outras, metas voltadas a ações coletivas no combate à pobreza. (VIZARD, 2006, p. 9).

Atualmente, vários órgãos da ONU, a exemplo do Fundo das Nações Unidas para

20 No original: These treaties create legally binding international obligations on state parties to implement progressively the human rights to life, to adequate food and nutrition, to safe water and sanitation, to adequate health care facilities, and to education, both individually and collectively through international assistance and cooperation.

a Infância (UNICEF), da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e do PNUD, de modo explícito, tratam a pobreza por meio de uma abordagem de direitos humanos. Até mesmo as instituições financeiras ligadas à ONU (Banco Mundial e FMI) tem demonstrado uma tendência de aproximação do discurso econômico com a perspectiva própria dos direitos humanos. (VIZARD, 2006, p. 10).

As organizações não-governamentais, como Human Rights Watch e Anistia Internacional, do mesmo modo, tem voltado suas ações para a utilização da estrutura dos direitos humanos como mais apropriada para o combate à pobreza. Como decorrência, essas organizações têm voltado seus esforços para questões jurídicas envolvendo a propriedade intelectual, subsídios agrícolas, práticas de dumping e restrições ao mercado de países em desenvolvimento. Essas ações têm gerado propostas práticas, como o fornecimento de vacinas por meio de facilidades para o financiamento internacional e a criação de um fundo de investimentos para as crianças, custeado pela renda de um imposto sobre transações financeiras internacionais. (VIZARD, 2006, p. 10-11).

Costa (2008, p. 90), entretanto, de maneira cautelosa, sustenta que, apesar do esforço que vem sendo feito pela ONU e por seus órgãos, a exemplo do PNUD e da UNESCO, no sentido de elaborar documentos com vistas a orientar os agentes que atuam na redução da pobreza, “[...] a afirmação de que a pobreza viola direitos humanos ainda é pouco clara do ponto de vista conceitual, especialmente perante o direito internacional dos direitos humanos”. A respeito do tema, a autora expõe os seguintes questionamentos:

Este enunciado expressa uma reprovação moral com valor meramente retórico ou se trata de uma pretensão jurídica? Caso tenha este viés jurídico, quais seriam as conseqüências jurídicas para os Estados e outros sujeitos de deveres? A negação de alguns direitos pode ser classificada como pobreza? Estes direitos estão expressamente previstos nos instrumentos jurídicos de direitos humanos? Estes direitos impõem obrigações vinculantes a detentores de deveres específicos? O cumprimento destes deveres é plausível? (COSTA, 2008, p. 90-91).

Costa (2008, p. 91) classifica as teorias que tratam desses problemas em três grupos: o primeiro reúne as teorias que consideram a pobreza como violação aos direitos humanos como um todo ou a um grupo determinado de direitos humanos; o segundo congrega as teses que relacionam a pobreza a um direito humano específico, a saber, o direito de ser livre da pobreza; por último, há o grupo das teorias que tratam a pobreza como causa ou consequência de violações de direitos humanos.

4.3 A pobreza como violação de um grupo específico de direitos humanos: A posição do