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4 DIREITOS HUMANOS E O TRATAMENTO NORMATIVO DA

4.4 Um direito humano a ser livre da pobreza

Nesta segunda abordagem, a pobreza é encarada não como a violação de todos ou de vários direitos humanos, mas como o desrespeito a um direito humano específico: o direito a ser livre da pobreza. A ideia central desse modelo é que todos têm direito aos meios essenciais para sobreviver. O enfoque aqui, portanto, é sobre a pobreza absoluta. (COSTA, 2008, p. 98- 99).

Dentro dessa abordagem é possível divisar as distintas concepções analisadas a seguir:

4.4.1 Liberdade da pobreza como uma pretensão de natureza moral: a abordagem da pobreza numa concepção ampla de direitos humanos

Dois importantes teóricos trabalham o problema da pobreza numa concepção ampla de direitos humanos, isto é, que incluem no rol dos direitos humanos certas pretensões de natureza moral: Thomas Pogge e Amartya Sen. Ambos suplantam a tese de Rawls, para quem

a igualdade seria uma demanda política e, não, moral, estando, portanto, circunscrita ao âmbito nacional. (COSTA, 2008, p. 100 e 115).

Como explica Costa (2008, p. 100),

Pogge defende um direito humano de natureza moral de toda pessoa a um nível de vida adequado para a sua saúde e bem-estar. [...] vai além ao definir este direito, defendendo que governos e cidadãos de democracias ricas possuem um dever negativo para com os economicamente desfavorecidos no mundo, a saber, dever de não apoiar uma estrutura global que viola os direitos humanos.

Para Costa, (2008, p. 99), porém, o pensamento de Pogge merece crítica, na medida em que trata o direito a ser livre da pobreza à luz de uma perspectiva afeita aos moldes liberais, isto é, prevendo, tão somente, obrigações de caráter negativo. Para essa autora,

Embora a liberdade da pobreza seja compatível com uma teoria que trate apenas da liberdade negativa [...], esta perspectiva teórica exclusivamente negativa tem sido tradicionalmente rejeitada, em essência porque impõe tão-somente obrigações negativas de não-intervenção e não-interferência, ao passo que a pobreza também demanda liberdades positivas. (COSTA, 2008, p. 99).

Costa (2008, p. 99) não nega a influência liberal como fundamento para a formulação dos direitos humanos. Pontua, no entanto, que existem outros fundamentos na base dos direitos humanos. Para ela,

A tradição liberal influenciou fortemente a teoria e a prática em direitos humanos e não é surpreendente perceber que a pobreza, em razão desta, foi concebida, na melhor das hipóteses, como um problema nacional de injustiça social e não como uma violação de direitos humanos universais. No entanto, o liberalismo não é o único fundamento filosófico dos direitos humanos. Nem mesmo a Declaração Universal de Direitos Humanos, o alicerce de todos os direitos humanos, possui um único fundamento filosófico, por ser produto de um compromisso político e não uma verdade óbvia. (COSTA, 2008, p. 99).

Sen elabora tese mais abrangente, como obtempera Costa (2008, p. 100), vislumbrando obrigações e deveres não apenas negativos, mas também prestações positivas, em correlação com o direito de ser livre da pobreza, como obrigações de assistência e auxílio àqueles que vivem em situação de pobreza.

4.4.2 Liberdade da pobreza como uma pretensão de natureza jurídica: a abordagem da pobreza numa concepção restrita de direitos humanos

Divergindo dos teóricos anteriores, há estudiosos que buscam fundamentar o direito de ser livre da pobreza no contexto de uma acepção mais restrita de direitos humanos, na qual apenas os direitos previstos nos tratados podem ser compreendidos como direitos humanos. Esses juristas buscam alcançar seus intentos por três caminhos distintos: entender que o direito a ser livre da pobreza decorre das obrigações jurídicas já reconhecidas nos tratados; defender que ele é logicamente correlato ao direito a um nível adequado de vida; ou o relacioná-lo com

o direito ao desenvolvimento.

4.4.2.1 O direito a ser livre da pobreza como decorrência das obrigações já reconhecidas nos tratados internacionais

A concepção jurídica do direito a ser livre da pobreza como decorrência das previsões normativas já existentes em diversos tratados de direitos humanos, em particular o PIDESC, já foi defendida em relatórios elaborados por Arjun Sengupta, enquanto Especialista Independente das Nações Unidas sobre Direitos Humanos e Extrema Pobreza, posição assumida institucionalmente, tendo apresentado dois argumentos no sentido de convencer a comunidade internacional a adotar estratégias para a solução do problema da pobreza no mundo: o primeiro, de ordem pragmática, consistia em afirmar que o foco dos direitos humanos devia se voltar para a pobreza extrema, com vistas a limitar a quantidade de pessoas que seriam consideradas vítimas e, com isso, motivar as nações a aceitar o desafio de livrar essas pessoas da pobreza; o segundo argumento, de ordem jurídica, apontava para a correlação entre o direito a ser livre da pobreza e diversos direitos previstos nos tratados internacionais, como os direitos à alimentação, à saúde, à educação, à seguridade social e a um nível de vida adequado, direitos previstos no PIDESC, além dos direitos à associação, à informação e à liberdade de expressão, previstos no PIDCP. (COSTA, 2008, p. 101).

Costa (2008, p. 101) critica tal entendimento, argumentando que:

Embora esta posição seja interessante, ela é problemática se submetida ao escrutínio dos direitos humanos, uma vez que pressupõe que seja necessário negociar direitos para que resultados práticos sejam alcançados, não obstante esta posição reconheça a negação ou violação de diversos direitos humanos das pessoas em condição de pobreza. Neste sentido, no intuito de convencer a comunidade internacional (um eufemismo para países doadores) a aceitar esta obrigação juridicamente vinculante, considera-se a possibilidade de “deixar de fora do acordo” um conjunto de pessoas que, embora também sejam vítimas de violações de direitos humanos, não vivem em condição de pobreza extrema.

Há duas razões para se criticar a posição adotada anteriormente por Sengupta. A primeira delas é a ausência de provas de que os governos se sentiriam mais motivados a abraçar a luta contra a pobreza, caso se reduzisse o universo de pessoas abrangidas pelo conceito de pobreza extrema. Ademais, “[...] as estratégias de redução da pobreza envolvem necessariamente concessões para que acordos sejam possíveis e que o movimento de direitos humanos deveria admitir este fato. Considero, contudo, inaceitável que concessões sejam feitas na esfera normativa [...]”. (COSTA, 2008, p. 102).

Apesar de, institucionalmente, ter assumido o entendimento de que a pobreza deveria ser compreendida em correlação com diversos direitos previstos do PIDESC e no PIDCP, Arjun Sengupta possui, pessoalmente, outra posição. Ele identifica a pobreza com a violação do direito ao desenvolvimento, direito reconhecido pela comunidade internacional na Declaração da ONU sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 e na Declaração de Viena de 1993. (COSTA, 2008, p. 102).

O direito ao desenvolvimento é, em si, um direito humano, embora possua natureza composta, pois consiste na construção de uma ordem social que facilite a implementação gradual de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. Para Costa (2008, p. 102), a principal vantagem dessa abordagem reside no fato de que para “[...] atestar quando o direito ao desenvolvimento for violado, basta verificar se algum dos direitos que o compõem sofreram um retrocesso ou foram violados.” Com isso, ademais, “[...] evita-se definir a pobreza em termos excessivamente amplos (ou seja, como violação de todos os direitos humanos), o que praticamente inutiliza o argumento como um todo.” (COSTA, 2008, p. 102).

A respeito da tese de Sengupta, Costa (2008, p. 103) acentua que:

A construção do consenso no âmbito internacional sobre o escopo, o núcleo e a natureza de muitos direitos econômicos e sociais já constitui uma tarefa tão árdua e lenta, contando com a atuação de órgãos de monitoramento que com dificuldade moldam o conteúdo destes direitos, embora tais direitos já se encontrem expressamente previstos no Direito Internacional de Direitos Humanos. Diante deste cenário, torna-se ainda mais difícil defender o direito ao desenvolvimento, levando-se em consideração que o debate travado na comunidade internacional sobre este direito tem sido penoso e extremamente politizado.

Como se observa, portanto, a perspectiva em exame é criticada em relação a uma aparente desvantagem significativa: a ausência de consenso acerca do conteúdo dos direitos econômicos e sociais, assim como em torno do próprio direito ao desenvolvimento.

4.4.2.3 Pobreza como violação a um nível adequado de vida

Ainda na abordagem jurídica do direito a ser livre da pobreza, existe a posição de Vizard, para quem a pobreza deve ser entendida como a violação do direito a um nível adequado de vida. A mencionada autora tenta articular a teoria das capacidades de Sen e o direito internacional dos direitos humanos, defendendo, em grandes linhas, que este último pode universalizar e complementar os conceitos subjacentes à tese das capacidades. (VIZARD, 2006, passim).

Analisando a teoria de Vizard, Costa (2008, 102, p. 104) sustenta que:

Ao admitir que a ‘perspectiva da capacidade’ é uma teoria substantivamente incompleta e que pode ser consistente e compatível com teorias valorativas distintas, ela propõe que o Direito e os parâmetros internacionais em direitos humanos sejam

usados como uma teoria subjacente. Na prática, esta proposta fundamentaria normativamente o “conjunto de capacidades básicas”, considerado um conceito indeterminado.

Acrescenta, ainda que:

[...] a autora ressalta que o Direito Internacional de Direitos Humanos e a “perspectiva da capacidade” são duas visões que se complementam e se fortalecem mutuamente; elas possuem elementos que fundamentam um modelo conceitual capaz de transitar entre estes dois campos ao definir a pobreza como uma questão de direitos humanos. O modelo conceitual proposto por esta autora é importante, particularmente por esclarecer os conceitos referentes aos vínculos de fato estabelecidos entre o “conjunto de capacidades básicas”, o Direito Internacional de Direitos Humanos e o sistema internacional de monitoramento e observância de direitos humanos. (COSTA, 2008, 104).

Apesar das vantagens da concepção de Vizard, para Costa (2008, p. 104), sua implementação esbarra em uma grande dificuldade: “o conjunto de parâmetros e indicadores usados para medir o cumprimento dos direitos econômicos e sociais pelo Estado – fundamental para que algumas capacidades básicas possam ser consideradas universais – ainda foi pouco elaborado.”

Com o escopo de dar seguimento à análise das teorias até aqui mencionadas, os tópicos seguintes abordam as principais ideias de modo mais minucioso, a partir da análise dos autores que as sustentam.