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Arjun Sengupta e a pobreza como violação do direito ao desenvolvimento

4 DIREITOS HUMANOS E O TRATAMENTO NORMATIVO DA

4.6 Arjun Sengupta e a pobreza como violação do direito ao desenvolvimento

Sengupta (2007, p. 325) entende que pobreza é um estado de degradação da dignidade humana e destaca o aspecto relacionado à exclusão social, pois ser pobre significa

43 No original: […] cases of severe poverty that are avoidable because they are preventable through alternative institutional design give rise to human rights-based claims.

não possuir os meios para levar uma vida dentro dos padrões observados na sociedade onde vive, o que debilita o respeito próprio e a capacidade de preencher a vida social. Para esse autor, a pobreza acompanha toda a história da humanidade e o intuito de acabar ou reduzir a pobreza tem sido reconhecido como um valor moral universal aceito na grande maioria dos países. Se a pobreza persiste até os dias atuais, porém, não é por escassez de recursos. Na opinião de Sengupta (2007, p. 325), a riqueza existente no mundo hodiernamente é mais do que suficiente para erradicar a pobreza da face do planeta Terra.

Diante desse contexto é que se aprecia a possibilidade de conceber a pobreza como violação de direitos humanos e a superação da pobreza como um meio para a realização de direitos humanos. Sengupta (2007, p. 325) destaca que os direitos humanos consagram valores morais que emergiram de uma longa história de ações humanas, remontando à Carta Magna, à luta pela independência americana e à Revolução Francesa, as quais converteram tais valores morais em prerrogativas perante aqueles que detém autoridade e poder em uma sociedade.

Mais que isso, os direitos humanos representam os valores máximos sobre os quais se funda a sociedade e o desrespeito grave a tais direitos inalienáveis pode, até mesmo, legitimar a destituição de um governo pelo povo, como já proclamava a Declaração de Independência Americana ao afirmar que “em qualquer lugar que uma forma de governo se torne destrutiva desses fins, é o Direito do Povo alterá-lo ou aboli-lo”. (SENGUPTA, 2007, p. 325, tradução nossa).44

Após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos passaram a integrar instrumentos internacionais, como a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que refletiram a “ampla convicção de que como os seres humanos são tratados em qualquer lugar interessa a todos em todos os lugares.” (HENKIN, 1989, p. 129, apud SENGUPTA, 2007, p. 325, tradução nossa).45

A realização dos direitos humanos, então, tornou-se uma obrigação não apenas dos Estados-nações, mas de toda a comunidade internacional. Logo, se a pobreza puder ser mostrada como uma violação dos direitos humanos, a luta para superá-la pode ser compreendida como uma obrigação vinculante para todos os países que pretendem fazer parte da comunidade internacional. (SENGUPTA, 2007, p. 326).

Contudo, abordar a pobreza como uma violação dos direitos humanos não é uma

44 No original: whenever any form of government becomes destructive of these ends, it is Right of the People to alter or to abolish it.

45 No original: the spreading conviction that how human beings are treated anywhere concerns every one, everywhere.

tarefa simples, pois suscita alguns problemas complexos. Isto é, para desenvolver uma abordagem consistente nesse sentido é necessário investigar se é possível identificar de modo específico quais são os direitos cuja negação ocasiona a pobreza; se tais direitos podem ser compreendidos como direitos humanos; se existem deveres correlativos a esses direitos; se é possível identificar quem estaria obrigado a cumpri-los; e se essas obrigações são plausíveis. (SENGUPTA, 2007, p. 326).

Após expor as principais questões, Sengupta (2007, p. 326-344) busca traçar parâmetros, a partir dos quais se possa construir os delineamentos necessários à compreensão da pobreza como violação dos direitos humanos. Primeiramente, sustenta que o titular de um direito humano deve ser, necessariamente, um indivíduo ou uma coletividade que se comporta como tal, pois somente a um indivíduo pode ser atribuída a condição de dignidade e a sensação de bem-estar. (SENGUPTA, 2007, p. 327).

Quanto ao direito propriamente dito, Sengupta (2007, p. 327) defende que o direito de não ser pobre deve ser especificado do modo mais objetivo possível, sob pena de não se tornar exequível. Além disso, a observância de tal direito deve envolver não apenas a disponibilização de bens e serviços necessários a uma vida digna, mas, também, é fundamental que o procedimento mediante o qual se fazem disponíveis esses bens e serviços seja adequado ao regime dos direitos humanos. Num caso prático de ajuda humanitária, em que determinada comunidade se encontra assolada pela fome, não se poderia conceber que, ao disponibilizar alimentos às pessoas desse local, fossem utilizados, por exemplo, métodos de distribuição discriminatórios, pois um procedimento nesses moldes afrontaria o regime dos direitos humanos. Em resumo, o autor busca destacar que o direito de não ser pobre implica a observância da dignidade não só em relação ao seu conteúdo, mas também no que concerne ao procedimento para sua efetivação.

Todo direito enseja pelo menos uma obrigação e toda obrigação deve ser atribuída a alguém (duty-bearer) que deve suportar os ônus dela advindos. A esse respeito, Sengupta (2007, p. 328, tradução nossa) obtempera que “[...] direitos humanos, os quais são normas fundamentais da sociedade, envolvem obrigações para todos os agentes ou membros da sociedade, cujas ações podem ter um impacto na efetivação dos direitos.”46 Em seguida, registra que, nos instrumentos das nações unidas, o Estado é tratado como o responsável primário (primary duty-bearer) pelos direitos humanos e assim, realmente, deve ser compreendido, em que pese o fato de não ser o único a quem possam ser atribuídas obrigações.

46 No original: [...] human rights, which are foundational norms of a society, entail obligations for all agents or members of the society, whose actions can have an impact on the fulfillment of the rights.

Os deveres que decorrem do reconhecimento de um direito podem ser diretos, indiretos ou contingenciais. Deveres diretos são aqueles relacionados a ações que impactam diretamente no gozo de um direito. É o caso da distribuição de alimentos diretamente à população pobre. Os indiretos atuam por meio da influência sobre outros agentes. Utilizando novamente o exemplo do direito à alimentação, pode-se imaginar que o Estado, através de uma política de incentivo à produção de alimentos, influencie, desse modo, o mercado, barateando o preço final dos alimentos, o que redundaria na facilitação do acesso à comida. Os deveres contingenciais dizem respeito a situações imprevisíveis e emergenciais, como a atuação da comunidade internacional que fornece ajuda humanitária em caso de calamidades. (SENGUPTA, 2007, p. 329).

Para Sengupta (2007, p. 330), um direito deve ser viável, para ser considerado como tal. Viabilidade, porém, não significa, para o autor, a possibilidade de realização imediata, nas presentes circunstâncias. Com isso, Sengupta destaca o caráter prospectivo dos direitos humanos. Isto é, entende-se que os direitos humanos motivam mudanças sociais e reformulações das instituições, de modo que não se pode esperar que o reconhecimento de um determinado direito deflagre a sua realização imediata. Ademais, sobretudo no campo dos direitos econômicos e sociais, é necessário tempo para que as políticas adotadas possam surtir os efeitos desejados.

Outra questão discutida por Sengupta (2007, p. 331-333), é a natureza dos direitos humanos: afinal, desrespeitar um direito humano é violar um direito positivo ou uma obrigação moral? Antes de apresentar uma resposta a esta questão crucial, Sengupta (2007, p. 331) esclarece que a principal característica dos direitos positivos é sua obrigação vinculante e não necessariamente a possibilidade de impô-los através de um processo judicial submetido a uma corte de justiça. Para o autor,

Dado o modo que os sistemas judiciais funcionam na maior parte dos países em desenvolvimento, não há razões para acreditar que as cortes de justiça seriam sempre um melhor mecanismo de decisão que outros. É a aceitabilidade da obrigação vinculante pela sociedade e a pressão social sobre os responsáveis que, em última análise, determina o nível de observância. (SENGUPTA, 2007, p. 331, tradução nossa).47

Esclarecido esse ponto, Sengupta (2007, p. 332) defende que todos os direitos humanos positivados são, igualmente, direitos morais e ensejam uma justificação moral. Para ilustrar a ideia de que os valores morais precedem os direitos humanos, cita o exemplo extremo

47 No original: Given the way the judicial systems function in most developing countries, there is no reason to believe that the courts of law would always be a better adjudicating mechanism than others. It is the acceptability of the binding obligations by the society and social pressure ono the duty-holders that ultimately determines the extent of compliance.

do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Naquela ocasião, o fato de não se poder atribuir aos nazistas nenhuma ilegalidade, já que agiam de acordo com as leis prevalecentes na Alemanha naquele período, não evitou e nem podia evitar a ação de outros países em relação às atrocidades cometidas contra a dignidade humana. Os valores morais precedem, portanto, os direitos humanos. Mais que isso, para Sengupta e outros filósofos da moral, como Sen (2000 apud SENGUPTA, 2007, p. 332), certos valores morais universalmente aceitos podem gerar obrigações, tal qual ocorre com os direitos humanos expressamente previstos em instrumentos normativos.

4.6.1 Identificando o direito, seus beneficiários e a obrigação

Ao buscar identificar de modo mais específico o direito de ser livre da pobreza, Sengupta (2007, p. 335) patrocina a tese de que, para ser reconhecido internacionalmente, não é essencial prevê-lo de modo expresso em tratados internacionais. Trata-se, pois, de um valor moral universalmente aceito, com aptidão para gerar obrigações.

Conforme Sengupta (2007, p. 336) preceitua, pobreza pode ser compreendida, inicialmente, como a ausência de bens e serviços necessários para garantir o atendimento de necessidades básicas, como alimentação, moradia, vestimenta, cuidados médicos básicos, etc. Não ter tais necessidades atendidas corresponde a viver sem dignidade, sem auto-respeito ou liberdade, em uma palavra, sem qualquer direito fundamental observado. Destarte, pode-se dizer que pobreza é a violação dos direitos às necessidades e liberdades básicas. Desse modo, fica posta a relação entre pobreza e direitos humanos.

Essa formulação, entretanto, traz uma grande dificuldade: se a pobreza for compreendida como a violação de todos os direitos às necessidades básicas, sua incidência pode ser bastante limitada. Em outros termos: se for considerado pobre apenas aquele que não possui qualquer necessidade básica atendida, a quantidade de pessoas identificadas como pobres tende a ser substancialmente limitada. Por outro lado, se pobreza for identificada com a violação do direito a qualquer necessidade básica, ainda que individualmente considerada, certamente o escopo dessa definição deixaria de ser razoável. (SENGUPTA, 2007, p. 337).

Para Sengupta (2007, p. 337-338), então, a melhor forma de compreender a pobreza é como a violação de um direito humano específico e que está diretamente relacionado à adoção de políticas públicas pelos Estados, a saber: o direito ao desenvolvimento. Nas palavras do autor:

[...] o direito cuja violação é compreendida como pobreza, ou mais simplesmente o direito à erradicação da pobreza, poderia ser melhor enfrentado em termos de políticas apropriadas de desenvolvimento, que são mais aptas a remover ou erradicar a pobreza

e as quais podem ser exigidas como direitos em si mesmas. Esses direitos podem ser formulados de modo mais eficaz nos termos do direito ao desenvolvimento, um direito que foi reconhecido como um direito humano pela comunidade internacional por meio da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento da ONU (1986), seguida pela Declaração de Viena de 1993. (SENGUPTA, 2007, p. 338, tradução nossa).48

Nesses termos, isto é, compreendendo a pobreza como a violação do direito ao desenvolvimento, identifica-se como obrigação correlativa desse direito a adoção de uma política de desenvolvimento. (SENGUPTA, 2007, p. 338). Desenvolvimento, nesse contexto, é concebido como um processo que envolve arranjos sociais e a ordem internacional e que, de maneira progressiva, efetiva todos os direitos humanos, observando a interdependência entre eles. (SENGUPTA, 2007, p. 338). Essa abordagem mostra-se, na opinião de Sengupta (2007, p. 339), mais realista e flexível do que a concepção baseada na fixação de patamares específicos de atendimento de necessidades básicas, pois direciona o foco para a criação de condições que possibilitem a superação da pobreza de renda e da privação de capacidades.

O principal garantidor ou responsável pela realização do direito o desenvolvimento, assim como de todos os direitos humanos, para Sengupta (2007, p. 340), é o Estado. É ao Estado que cabe o dever de formular e implementar políticas de desenvolvimento, observando a necessidade de estabelecer medidas setoriais de acordo com as necessidades básicas relacionadas à pobreza: alimentação, moradia, saúde, etc.

Em que pese o papel preponderante do Estado, Sengupta (2007, p. 341) não descarta a atuação do mercado a da ordem internacional, embora, ao contrário de Pogge (2007), discorde da possibilidade de responsabilização da ordem global pela atual situação da pobreza no mundo. De todo modo, cabe ao Estado definir os papeis dos diversos atores que possuem a capacidade de influenciar na resolução do problema da pobreza, contribuindo para a política de desenvolvimento: organizações internacionais, corporações, entidades não-governamentais, etc.

4.7 Polly Vizard e a pobreza como violação do direito humano a um nível adequado de