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O ambientalismo, o papel das ONGs e as disputas que movimentam a relação

A crítica sobre a apropriação do discurso do desenvolvimento sustentável também é feita por Diegues (2003) em relação a diferentes grupos, inclusive ambientalistas. Diz o autor:

Assim muitos empresários e financistas pensam no desenvolvimento sustentável como um meio de alcançarem “lucros sustentáveis”, certos governos rotulam suas políticas públicas de sustentáveis, frequentemente como estratégia para conseguir apoio financeiro de instituições financeiras internacionais; determinados grupos ambientalistas definem sustentabilidade como princípio inerente à natureza, independentemente de sua relação com a sociedade (Diegues, 2003, p. 1).

Essa crítica de Diegues de certa forma tem a ver com o panorama que se formou com a organização da sociedade civil em torno de questões ambientais, cuja participação foi ampliada nos anos seguintes à publicação do relatório Nosso Futuro

Comum e culminou, de alguma forma, com a conferência que ficou conhecida como

ECO-92 ou ainda Rio-92. Este evento organizado pela ONU, há duas décadas, reuniu mais de 150 países que estabeleceram compromissos e tratados em relação a diversos temas, da biodiversidade à Educação Ambiental.

Estes compromissos e tratados tiveram a participação de representantes do Poder Público, de organismos internacionais, como a própria ONU, e também mais de duas mil organizações da sociedade civil à época. A influência das ONGs até hoje é forte nos processos decisórios relacionados a temática ambiental, seja no Brasil, seja em nível mundial, e ainda em setores como a produção científica sobre as relações entre homem e natureza, as políticas públicas, ou ainda pautando a mídia sobre temas de seu interesse.

Ferreira (1999, p. 41) lembra que o movimento ambientalista brasileiro, a partir da década de 1990, “passou a reconhecer-se como um ator social ao motivar-se a constituir-se como um grupo de conflito, portador de um projeto cultural de sociedade”, e que “essa parcela do ambientalismo brasileiro desempenhou um papel bastante significativo, tanto por sua visibilidade pública quanto por sua influência sobre seus parceiros”. Ferreira (1999) lembra ainda:

De fato, no Brasil, o ambientalismo político das décadas anteriores ressurgiu nos anos de 1990 voltado à resolução direta de problemas considerados urgentes e revestido de um design específico para uma atuação que poderia ser chamada de “para- institucional”, uma vez que as ONGs nacionais ou transnacionais com atuação no Brasil procuraram, nesses últimos dez anos, dividir responsabilidades com governos, universidades e centros de pesquisa. Isso se deu em parte em função de fatores como a globalização da economia, a pulverização do poder e fragmentação dos projetos utópicos e metas coletivas, mas também muito em função dos esforços globais para a definição de um pacto social pela recuperação e conservação ambientais, que começou a ser esboçado na Conferência das Nações Unidas em 1992 (FERREIRA, 1999, p. 46).

Ferreira (1999) aponta que a atuação das ONGs ambientalistas vai desde a difusão de conhecimento tecnológico junto a comunidades que vivem em meio à natureza, à viabilização de estudos científicos sobre a biodiversidade, e ainda a elaboração e execução de projetos como os de Pagamentos Por Serviços Ambientais (PSA)15. As ONGS ambientalistas, teriam essa grande contribuição, a de “transmitir o conhecimento técnico-científico interdisciplinar a coletividades anteriormente apartadas do direito a usá-lo em seu benefício” (FERREIRA, 1999, p. 47).

A crítica inicial de Diegues (2003) é a de que grupos ambientalistas também se apropriam do chamado “discurso sustentável” com foco maior na conservação ambiental, visão que influencia processos relacionados a decisões políticas. Em outro

15 O PSA é um mecanismo de compensação financeira onde os fornecedores de serviços ambientais são

pagos pelos beneficiários dos serviços. São exemplos de serviço ambientais, por exemplo, a preservação de nascentes e olhos d´água. Não há dados atualizados sobre quantos projetos e programas de PSA existem no Brasil, mas muitos são realizados por órgãos como secretarias de Meio Ambiente e/ou recebem apoio técnico de ONGs e OSCIPs, por muitas vezes também são responsáveis pelo gerenciamento de recursos financeiros provenientes de fontes privadas, impostos e taxas municipais ou ainda, no caso de projetos que envolvem comitês de bacias hdirográficas, de recursos arrecadados com a cobrança pelo uso da água.

artigo, Diegues (2008, p. 3) faz críticas específicas a algumas ONGs com foco ambientalista, sobretudo as transnacionais, com atuação em várias partes do mundo e que exercem grande influência política internacionalmente. Aponta o autor que existiria a tendência de algumas dessas organizações ao que ele denomina ecologismo

preservacionista, que, entre outros, tenderia a “separar os aspectos sociais e ambientais,

baseando sua estratégia na criação de parques sem gente, no controle demográfico, etc.”. Embora existam ONGs que pautam sua atuação interligando meio ambiente e questões sociais, Diegues (2008) cita que grandes organizações conservacionistas transnacionais, que tiveram origem nos Estados Unidos e a partir da década de 1980, passaram a atuar em países considerados subdesenvolvidos, com a missão de proteção da biodiversidade, principalmente em áreas protegidas de conservação desabitadas:

Em suas ações são guiadas pelo preservacionismo, pela noção da importância da vida selvagem (wilderness), por filosofias como a da ecologia profunda, que confere um sentido quase religioso à natureza e pelo valor conferido às ciências naturais na identificação das áreas prioritárias de conservação nos países do Sul (sobretudo através da biologia da conservação). Uma característica da maioria delas é a ausência de uma crítica mais profunda do sistema de produção e consumo da sociedade urbano industrial como ocorreu com o ambientalismo mais combativo dos anos 60/70. A prioridade delas tinha se voltado para a proteção das espécies e ecossistemas ameaçados de extinção através da implantação de Unidades de Conservação das quais as populações tradicionais tinham que ser retiradas em favor da chamada “ vida selvagem” (wilderness). Muitas dessas organizações sequer criticavam o “ aquecimento global” por tratar-se, segundo elas, de uma questão política que nada tinha a ver com a conservação do mundo natural (Diegues, 2008, p. 6).

Para Diegues (2008), as ONGs com foco preservacionista influenciaram as políticas ambientais inclusive economicamente, pois financiaram atividades para governos e ONGs locais nos países em que atuam, a partir de recursos provenientes de fontes como o Banco Mundial.. De fato, uma ONG internacional, por exemplo (a WWF – World Wide Fund for Nature, em português, Fundo Mundial para a Natureza), foi uma das proponentes do programa ARPA (Áreas Protegidas da Amazônia), que prevê um aporte de investimentos em projetos de UCs amazônicas.

Diegues (2008) aponta ainda que o papel dos cientistas, especialmente os ligados às Ciências Naturais, teria tido grande influência nas práticas preservacionistas das grandes ONGs ligadas a conservação. Para Diegues (2008), os modelos de ciência para a conservação teriam a ver com a visão reducionista da natureza que o olhar antropocêntrico também se dirige; mas ao invés de subjugar o ambiente, a visão conservacionista considera esse meio ambiente numa dimensão somente biológica. Na visão reducionista biológica, Diegues (2008) afirma que se parte do princípio de que a natureza seria modelo para a vida social e têm dificuldade de integrar processos culturais e sociais na interação com o ambiente, privilegiando “o estudo dos ecossistemas menos tocados pelo homem, ainda que sua quase totalidade já tenha sofrido a intervenção humana”.

A partir dessa crítica, Diegues (2008) afirma que é preciso a construção de novos modelos e práticas de conservação a partir da interface entre as ciências naturais e sociais, o que já se desenvolve dentro da cultura científica, a exemplo do que apontou o projeto temático A Questão Ambiental: Interdisciplinaridade, Teoria Social e Produção

Intelectual na América Latina, organizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp (Nepam)16.

Essa interface, no entanto, se faz necessária também na atuação das ONGs ambientalistas. Sem equilíbrio no pensar e agir sobre questões ambientais, seja no que se refere a Unidades de Conservação ou outras categorias de áreas protegidas, como a flexibilidade (ou não) da legislação, teria entre as consequências o agravamento de conflitos sociais em tais áreas. Outra consequência grave seria a reação do discurso antiecológico, como apontam Accioly & Sánchez (2015). A oposição ao que propõe o discurso ambientalista surgiria “nos momentos em que não aparece economicamente viável tomar certas posturas ou qualquer postura ambientalista” (Accioly & Sanchéz, 2015, p. 124). Para estes autores, o grande perigo está na contradição entre defesa e destruição do meio ambiente como constituintes do modo de produção capitalista:

16 Trata-se de um projeto temático da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo),

coordenado pela pesquisadora Leila da Costa Ferreira, do Nepam, que analisou a produção intelectual latino-americana voltada às relações entre ambiente e sociedade. O resultado foi publicado em livro, em 2010, com o debate sobre a interdisciplinaridade entre as diferentes áreas das ciências que se dedicam às questões ambientais.

O Brasil, enquanto país capitalista dependente, aprofunda esta contradição: de um lado a tentativa de “conversão” (sob o nome de “conscientização”) da população ao ideário ambiental da sustentabilidade (enquanto tendência mundial) e do outro lado a necessidade de manutenção do ideário antiecológico, que dará o suporte para que setores produtivos possam continuar destruindo a natureza em nome de um suposto “desenvolvimento” que geraria empregos e acabaria com a miséria e a fome. (...) A busca incessante por matérias-primas e força de trabalho barata e os consequentes limites sociais e ambientais deste movimento, contraditoriamente fazem conjugar ecologismo e antiecologismo como a solução para a manutenção das bases deste modo de produção. (Accioly & Sánchez, 2015, p. 134-135)

Nessa perspectiva, alguns grupos sociais que vivem dentro e no entorno de áreas protegidas por lei, como é o caso das Unidades de Conservação, podem ser vistos como protagonistas importantes da conservação dessas áreas e da proteção da biodiversidade17, ainda que existam contradições no processo, consequência de “um

paradigma teórico e político das áreas protegidas compreendidas como ilhas de biodiversidade circundadas por paisagens alteradas pela ação humana predatória” (FERREIRA, 2004, p. 48).

Embora o perfil de muitas organizações atualmente tenha ampliado seu olhar para as questões sociais que envolvem a temática ambiental e ainda tragam uma grande preocupação com populações tradicionais, entre outras, o histórico de criação de Unidades de Conservação, sobretudo no Brasil, carrega um pouco desse contexto e disputas inerentes a esse processo, como será apresentado a seguir.

17 A Convenção sobre Diversidade Biológica, um dos tratados resultantes da ECO-92 que foi transformada

no Decreto Legislativo no 2/1994, define como biodiversidade a “variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte, compreendendo ainda a diversidade de espécies, entre espécies de ecossistemas” (MMA, 2000).

1.3. Dos primeiros parques aos dias atuais, natureza e gente nas Unidades de