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4.4. Um olhar sobre a dinâmica das reuniões do Conapam

4.4.1. Disputas x diálogo

Tanto as pautas quanto os conflitos expostos direta ou indiretamente nas reuniões entre 2013 e 2014 teriam a ver com a configuração do Conapam desde 2010, quando muitas entidades do lado paulista (entre outros) buscaram representação no

Conselho após os conflitos envolvendo a tentativa de criação do Parque Nacional dos Altos da Mantiqueira, descrita no capítulo III. Embora alguns dos conselheiros não o tenham admitido diretamente nas entrevistas, é perceptível que parte da motivação inicial para a participação de determinados segmentos no Conapam seria defender a não criação de um Parque Nacional na região, embora o processo do parque tenha sido arquivado.

Parte do Conapam, no entanto, é formado por representantes da sociedade civil, incluindo algumas organizações que defendem a bandeira de estratégias de conservação que incluam a proteção integral das montanhas da Mantiqueira. Muitas dessas organizações participam de outros fóruns e colegiados onde também se debate e se articulam as referidas estratégias. Reunidos no Conapam, essas forças antagônicas em relação ao entendimento sobre conservação influenciaram bastante o andamento das reuniões, tanto do ponto de vista de sua dinâmica, no que diz respeito à polarização de falas concentradas em poucos representantes, quanto com relação a ruídos e manobras que tomaram bastante espaço na pauta do conselho da APA (principalmente em 2014).

Houve tentativas por parte do órgão gestor ICMBio, como responsável pela organização e mediação das reuniões, em diminuir o excesso de falas de alguns conselheiros por meio de dinâmicas - como a vez em que sugeriram distribuição de cinco balas doces, simbolismo para que cada conselheiro tivesse direito a cinco perguntas ou falas durante uma reunião – mas tanto a disputa de interesses, quanto o posicionamento de conselheiros sobre seus pares, é que determinam ou paralisam o andamento do diálogo proposto nas reuniões.

É preciso destacar três falas dos entrevistados para entender um pouco sobre as disputas que existiriam. O problema, ao que parece, não seria a APA ou o órgão gestor; o problema... é o outro. São falas carregadas de pré-conceitos, que revelam sobretudo o incômodo com o posicionamento de segmentos com interesses diversos dos seus próprios:

- As ONGS, o que elas querem? Preservação máxima, e querem ganhar dinheiro! Elas vivem disso! Nós queremos é continuar produzindo; mas lógico que a preocupação com o Meio Ambiente é cada vez mais crescente. (Fala de representante de associação de moradores 1)

- Os conflitos principais que observo são de entidades que têm missão de desenvolver ações voltadas estritamente para a preservação e a Prefeitura

tem necessidade de atender aos moradores, que tem que fazer alguma coisa ali, de forma sustentável. (Fala de representante do Poder Municipal 3)108 - Minha sensação é a de que estávamos, antes, numa rede de amigos empenhados em proteger aquele território, em buscar caminhos para o fortalecimento da APA, para o fortalecimento da sustentabilidade, uma solidariedade; hoje sinto que é um espaço de embate político, de disputas de poder. Hoje uma intensificação da disputa de interesses diferentes. (Fala de representante de ONG ambientalista 4)109

- A perda da propriedade da terra, o “não sou mais dono” é que a grande implicação deles. (Fala de representante do segmento de extensão rural 2, sobre os produtores rurais)110

Essa fala final, de representante do segmento de extensão rural, resume um pouco sobre a postura defensiva de determinados segmentos em relação a suas práticas produtivas, em detrimento de uma postura que, acreditam, seria a das ONGs ambientalistas, especialmente as que tiveram atuação na mobilização a favor de um parque nacional na região da APA. Por outro lado, a fala destacada do representante de ONG ambientalista revela o incômodo com a presença de forças antagônicas que, anteriormente a essa gestão do Conapam, não eram tão presentes.

Ao afirmar que antes do grupo atual, os participantes do Conselho estavam mais empenhados em fortalecer a APA, esse conselheiro também assume uma postura defensiva, cujo resultado se reflete no debate truncado e, por vezes, exaustivo, que ocorreu nas reuniões do Conapam entre 2013 e 2014.

É preciso considerar que disputas de poder ocorrem em qualquer sociedade, e coletivos como conselhos refletem essas disputas, que não se dão de forma simples como às vezes as falas dos conselheiros entrevistados apontaram. A situação é bem mais complexa. Há interesses legítimos de todos os segmentos e um domínio da plenária das reuniões do Conapam por determinados representantes de segmentos, e não reconhecer as diferenças naturais em um espaço como um Conselho desmobiliza a participação em uma instância que deveria ser participativa. É preciso estar atento ao que Foucault (1979, p. 183) explica sobre o poder como “um fenômeno de dominação maciço e homogêneo

108 Entrevista realizada em abril de 2014. 109 Entrevista realizada em junho de 2014. 110 Entrevista realizada em junho de 2014.

de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras”. O poder, segundo Foucault,

... deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer esse poder e sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Não se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou estraçalhando-os. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos do poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder; é um de seus primeiros efeitos (Foucault, 1979, p. 183).

O processo de comunicação que ocorre entre os conselheiros do Conapam é um exemplo que como o poder circula e quais são as suas consequências, especialmente nas relações ali dispostas. O incômodo de determinados segmentos uns com os outros em outras instâncias de poder para além do conselho amplia a desconfiança e inibe o compartilhamento de informações que seriam de interesse comum, o que, por sua vez, gera mais ruídos. E vai contra os objetivos do espaço gerador de debates e articulações que está descrito na Instrução Normativa sobre os conselhos gestores de UCs federais.

A tentativa de tombamento da Serra da Mantiqueira é um tema que circulou nas reuniões do Conapam e, de certa forma, associado a tentativa de criação do parque nacional no território da APA, há alguns anos. Uma das ONGs ambientalistas, com representação no conselho, foi uma das proponentes do processo de tombamento da porção paulista da Serra da Mantiqueira, que acabou não se concretizando.

A ONG optou por não utilizar o fórum do Conselho para mobilizar pela proposta de tombamento, ou ao menos informar sobre ele; e alguns conselheiros alegam ter sido “pegos de surpresa” sobre o tema. E embora citado várias vezes nas reuniões seguintes, o tema tombamento não teve uma apresentação oficial nas reuniões do Conapam para informar os conselheiros sobre as consequências, sejam positivas ou negativas, e de que forma influenciariam os objetivos da APA, já que o processo seria

dentro do território da UC. Conselheiros presentes, que tomaram posição contra o tombamento e chegaram a participar de reuniões junto ao Condephaat, abordaram o tema em breves informes, até o momento em que a iniciativa do processo foi arquivada pelo órgão responsável. Além disso, poucas informações sobre o tema circularam no e-group do Conapam e na página da APA no Facebook. No entanto, em março de 2013, meses antes da segunda reunião ordinária do Conapam, houve uma apresentação oficial sobre o tema feita por membros do Condephaat no Mosaico de UCs da Mantiqueira, onde analistas do ICMBio e outras instituições que fazem parte do Conapam participaram.

Houve no período uma circulação de abaixo-assinados a favor e contra a proposta, nos municípios paulistas. Segundo conversa informal com moradores do bairro rural de Pilões, que estiveram presentes à reunião do Conselho da APA em 28 de maio de 20014 (em Cruzeiro, SP), um desses abaixo-assinados circulou na comunidade, mas eles não souberam informar o que significaria o tombamento e quais seriam os argumentos prós – relacionados a fortalecer mais mecanismos de preservação da parte alta da Serra – e contra – relacionados a burocracia na gestão do território tombado, que teria dependência do órgão Condephaat, entre outros, para autorizações de construções na área tombada. No espaço do Conapam, perdeu-se a oportunidade de tentar se esclarecer sobre o tema.

Na primeira reunião ordinária de 2014, a disputa de interesses se acirrou, apoiada no aparelho burocrático do Estado em relação ao funcionamento dos Conselhos Gestores. A posse dos conselheiros anteriores só se daria a partir de uma portaria publicada no final de 2013, e o ICMBio apontou a necessidade de validação de ações anteriores e do Regimento Interno. Assim, nessa reunião um grupo de conselheiros sugeriu a exclusão da ONG responsável pela iniciativa do tombamento, justificando suas ausências em reuniões anteriores como passíveis de punição pelo próprio Regimento. Após votação, nesse dia a ONG em questão foi excluída de sua cadeira no Conselho Gestor da APA, após debate e tentativas de persuasão de conselheiros nos corredores da sala onde ocorria a reunião do Conapam para influenciar o voto pela exclusão dessa ONG. Posteriormente a essa reunião, a ONG ambientalista entrou com recurso junto ao departamento jurídico do ICMBio em Brasília (DF), solicitando a sua reintrodução no Conselho alegando que parte de suas faltas foram justificadas, e que sua atuação no

Conselho não se limitava à presença em reuniões, uma vez que a entidade participou da Câmara Técnica do Plano de Manejo, por exemplo. A reinclusão da ONG no Conselho foi tema da pauta também de reunião em 2014, que contou com uma mediadora de outra UC para dar apoio à equipe local do ICMBio. Foi apresentada a recomendação do ICMBio de Brasília sobre a reinclusão da instituição ao conselho, e ainda houve a convalidação de todos os atos do CONAPAM desde 2013 até o momento111.

Foi uma reunião tensa, com os presentes desconfiados sobre o processo até mesmo de solicitação de gravação da reunião; um conselheiro alegou que assim se expõem demais; outro, que poderia haver mau uso dessas gravações – mesmo em se tratando de reuniões públicas. Até mesmo o processo de criação do Parque Nacional dos Altos da Mantiqueira foi citado, na ocasião como exemplo de “falta de transparência”, na fala de um conselheiro que questionou a falta de informação sobre o processo encaminhado ao ICMBio pela ONG em relação a sua exclusão. Ao final, além da re- inclusão dessa instituição no Conselho e dos das duas instituições representantes do Poder Público, houve ainda a inclusão da Fundação Florestal em vaga de Poder Estadual, posse do novo conselho e formação de um GT para revisar o Regimento Interno. Mas grande parte dessa reunião foi voltada para o tema da reinclusão dessa ONG à vaga no Conapam, restando pouco tempo para informes e articulações.

Qual o papel do produtor social (Toro & Werneck, 1996), em relação ao processo de comunicação, frente a conflitos que culminam com a situação acima descrita? E dos editores sociais, que seriam responsáveis também pela mobilização em torno de objetivos compartilhados?

Fica visível, na observação direta das reuniões entre 2013 e 2014, a falta de uma melhor ação mediadora do órgão gestor ICMBio dentro do Conselho, a quem caberia assumir uma postura de facilitação do diálogo entre forças e interesses diversos nessa

111 O posicionamento técnico do ICMBio à época sugeriu que as entidades com faltas não poderiam ter sido

excluídas, pois legalmente o CONAPAM só poderia ter tomado posse após a portaria citada na reunião anterior, datada de dezembro de 2013, e que o regimento interno também deveria ser revisto, por conta de apresentar tratamento diferenciado para as instituições públicas e da sociedade civil. Então, nessa reunião houve a necessidade de nova posse do Conselho, convalidação de todos os atos desde 2013 e recondução da ONG e ainda dos dois parques para o CONAPAM. Durante a reunião, o órgão gestor conselho afirmou que, embora na reunião anterior os atos do Conselho já tivessem sido validados, fariam de novo para segurança jurídica essa validação e ainda se seguiria a posse do CONAPAM – como a portaria é de dezembro de 2013, os novos conselheiros teriam o mandato de 2014-2015.

instância participativa desde o início da gestão que começou em 2013. A forma como se deu o processo de comunicação sobre temas como o tombamento mostra que disputas de interesses interferem, e muito, na relação entre os conselheiros; diferentes entendimentos (ou pelo menos a defesa deles) sobre o uso de recursos naturais e o papel das instituições presentes no Conselho, a interpretação do que pode ou não ser feito sobre este uso, entre outros fatores, dificultam a comunicação; e a desconfiança mútua com relação aos objetivos e motivações para a participação (e as falas) nas reuniões do conselho diminuem a possibilidade de entendimento mútuo.

Da ONG ambientalista, também faltou comunicação sobre o processo de tombamento da Serra da Mantiqueira, que poderia, inclusive, ter oferecido informações para desmistificar o tema, se fosse o caso. A ONG optou por não divulgar este processo tanto nas reuniões do Conselho, quanto no e-group de comunicação entre os conselheiros. Dos conselheiros que alegaram o que consta no Regimento Interno para excluir do Conselho uma instituição que os incomodava, seria interessante uma postura de maior tolerância, já que o espaço do Conselho é também o do diálogo entre diferentes, e ainda de transparência com relação a insatisfação por determinados temas serem “bandeira” de algumas instituições que do Conselho participam.

Ribeiro (2005) observa que a comunicação é componente da ação coletiva e que deveria ser trabalhada com atenção pelos grupos sociais diferentes que precisam cooperar – partilhar e se mobilizar em torno de objetivos comuns. A depender da maneira como as relações são trabalhadas numa instância coletiva como o Conselho – uma das funções do mediador de uma reunião ou grupo de trabalho, por exemplo – a cooperação pode ocorrer ou não.