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CAPÍTULO 00 (um ante capítulo)

2.4 CONSTRUTOS E CÓDIGO-FONTE COMO FAZER

2.4.2 Amor de Clarice

Rui Torres61 é um poeta digital português que não somente

dialoga com as produções do Po-Ex em termos criativos e críticos, mas também é responsável por manter, organizar e disponibilizar o arquivo

mecânico. Trata-se de pensar a arte a partir de uma diferenciação lexical grega, portanto, não como αὐτόματον (autómaton), mero automático sem possibilidades de alteração, mas sim como μηχανή (mēkhanḗ) – este epíteto atribuído a Odisseu –, como engenhosidade e habilidade, como portando múltiplas possibilidades de constante alteração e, até mesmo, auto-alternação.

61 A produção do autor, inclusive o poema Amor de Clarice, se encontra no sítio Telepoesis.net poesia digital, ensino & investigação. Disponível em:

digital do grupo62. Uma de suas obras, Amor de Clarice (2005)63, merece ser olhada mais de perto, por ser bastante representativa no conjunto das produções do autor.

Imagem 23: tela inicial do Amor de Clarice.

Trata-se de um poema (como marca o paratexto no início da obra) que retoma o conto Amor (1974), da escritora Clarice Lispector, porém, essa retomada é realizada alterando-o – picotando, deslocando, condensando e imitando trechos – e solicitando a ação do leitor/usuário para essa nova configuração de mundo da personagem Ana64. No conto de Clarice, a personagem Ana tem a estrutura de seu mundo abalada ao ver um cego mascando chiclete. Depois dessa experiência epifânica, Ana perde o eixo norteador de seu mundo e é forçada a se readequar a

62 Veja o sítio Arquivo Digital da Po-Ex (2015). Disponível em: <http://po-

ex.net/>.

63 Obra contendo texto, voz, som e vídeo; criado por Rui Torres, com a

participação de Carlos Morgado (som), Luis Aly (som), Ana Carvalho (vídeo) e Nuno M. Cardoso (voz). Há tanto uma versão em CD-ROM, quanto uma versão digital acessível em: <http://telepoesis.net/amorclarice/>.

64 Alckmar Santos faz uma interessante comparação entre os ritmos e

andamento do conto de Clarice e o poema de Rui Torres em seu artigo Novas

estratégias de antropofagia na literatura digital (2011). E eu mesmo abordei o

poema de Rui Torres em minha dissertação A Interatividade na poesia digital (2010).

sua nova estrutura. O poema, de certa forma, dramatiza essa perda do eixo, executada, porém, por meio de uma construção textual.

Imagem 24: exemplo de tela com vídeo do Amor de Clarice.

Ao abrir o poema, o leitor começa em uma tela-título (onde recebe as instruções mínimas para navegar). Um índice é mostrado, a partir do qual o leitor pode navegar (para frente, para trás, aleatoriamente e/ou voltando ao começo) entre duas séries de 26 telas. Mas se apresento essa ordem e modo de navegar de forma clara é porque se trata de uma análise posterior. O usuário, uma vez iniciado seu percurso, não terá referente algum de qual tela ele está em certo momento ou para onde pode ir. O percurso assim se assemelha muito ao de um labirinto em que só podemos ver nosso lugar imediato e. além disso, lentamente perde-se a memória do locais por onde se passou em razão da similaridade das telas. Cada uma delas contém um subpoema (ou uma estrofe do poema maior se quiser), que aparece sob a forma de uma série de conjuntos de versos (de extensões diversas) que são recitados à medida que surgem ou sobre um fundo de textos (compostos a partir do conto de Clarice), ou sobre um vídeo em loop (dependendo da série em que se está). Ao mesmo tempo, se ouve uma trilha sonora de estilo de música eletrônica com pulsação rítmica bem marcada (nas telas com emaranhados de textos ao fundo) ou se ouve a leitura abafada de trechos do conto (nas telas com vídeo). O leitor pode, então, rearranjar os textos espacialmente na página e refazer sua ordem de recitação

(inclusive, pode fazer uma mesma palavra ser recitada indeterminadamente). Não há limites ou restrições a esse ato que, se vinculado à possibilidade livre de navegação pelas telas, coloca o leitor/usuário em uma situação de constate refazer da obra, dando-lhe a possibilidade de mudar sempre o texto, o som, as imagens e o caminho que trilha. Assim, ele é forçado a agir para construir um mundo, sempre provisório, diante daquela originalidade desmantelada e sem eixo, que se coloca diante dele como com a personagem Ana.

Imagem 25: exemplo de tela com emaranhado de palavras do Amor de Clarice. De uma expressão mais ou menos conteudística de Clarice Lispector, passa-se a uma obra que torna a metáfora de ação num mundo sem eixo em uma realidade necessária para leitura da obra de arte. Ou melhor, Amor de Clarice performtaiza um fato semântico – o conto Amor – que queria dar conta de relatar uma experiência – a de Ana –, mas que, como texto, é limitado em seu dizer uma experiência. O Amor de Clarice submete o elemento textual a uma primazia da ação, em que é preciso agir materialmente para ler.

Isso que descrevi concerne ao funcionamento da obra, como ela está disposta ou opera quando ligada no computador. É com esse construto/artefato que se tem contato quando o poema é aberto. Todos os possíveis desenvolvimentos de como o leitor poderá arranjar os versos, leituras e sequências estão em potência na obra e no código. Por conseguinte, estes podem ser entendidos como esquemas para uma

ação. E o usuário deve compreender esse esquema, esse modo de operar – engenho –, na ação.

2.5 POEMAS MÁQUINAS – CONSTRUTOS DE CONSTRUIR