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CAPÍTULO 00 (um ante capítulo)

2.3 DOIS TIPOS DE COMPREENSÃO

2.3.1 Liberdade regras e restrições

O melhor exemplo que tenho em mente é aquele cujo processo de elaboração pude presenciar, que é a obra Liberdade (2014)51. Construída na plataforma Unity, ela teve sua produção iniciada como uma proposta de trabalho do Grupo de Criação Digital do II Simpósio Internacional e VI Simpósio Nacional de Literatura e Informática, organizado pelo NuPILL – Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística, na Universidade Federal de Santa Catarina, durante duas semanas no final de 201352.

51 Uma versão da obra pode ser baixada no sítio 1maginário0:

<http://www.1maginari0.art.br/liberdade/>.

52 Como um dos organizadores do evento, tive a oportunidade de acompanhar

Imagem 20: Visão de uma parte inicial de Liberdade.

Visto que parte da equipe responsável pela produção da obra Liberdade também havia participado da criação do Palavrador – Chico Marinho, Álvaro Garcia, Alckmar Santos, Lucas Junqueira – , e a própria proposta de modelo de produção conjunta de Liberdade no Simpósio foi baseada e inspirada naquela do Festival de Inverno, que deu vida ao Palavrador, há certo grau de relação entre estas duas obras, algumas semelhanças quanto ao seu layout gráfico, à jogabilidade da obra e ao mundo digital a ser navegado.

Já que pude acompanhar o processo, seria interessante descrever brevemente como ocorreu. Uma vez que o grupo – de formação bastante heterogênea englobando programadores, literatos, músicos, vídeo-artistas, entre outros – havia se formado, iniciaram-se os diálogos primeiros via imeios. De início, houve a sugestão de elaborar uma obra baseada na memória ou que tivesse alguma relação com memórias. Muitas das conversas versavam acerca do que o usuário seria capaz ou teria que fazer no ambiente. A base era a ideia de um ambiente (como no Palavrador) no qual uma diversidade de mídias pudesse convergir e no qual o usuário pudesse navegar. À medida que as conversas seguiram, houve uma crescente preocupação sobre a liberdade do usuário. Surgiram ideias como a de que ele somente poderia se movimentar em um tabuleiro à medida que jogava dados; ou ele teria que cumprir certas tarefas para poder executar outras, o que foi lentamente sendo descartado pelo grupo. Finalmente, chegou-se ao ponto em que o usuário deveria livremente coletar e organizar as memórias (seu contato com o mundo). ,Estando todos de acordo quanto

a esse aspecto, foi-se construindo protótipos e testando a possibilidade dos planos. Houve, então, inúmeras mudanças e intercruzamento entre ideias distintas (que acabaram convergindo em algum momento) sobre, por exemplo, como o usuário se movimentaria. Em suma, o grupo começou a esboçar ideias a partir do que se supunha ser o funcionamento de memórias e, à medida que as conversas foram se desenvolvendo e o objeto foi sendo testado e construído, os membros passaram a pensar em novas possibilidades com base no que viam ser feito materialmente. Uma nova visão do ambiente ou o funcionamento efetivo de algo durante o período de teste se tornava um propulsor de novas ideias e relações de operação (sempre com a preocupação quanto à viabilidade da execução dos planos, tendo-se em vista as limitações computacionais e de tempo). Assim, muitas concepções tiveram que ser alteradas ou abandonadas devido à necessidade de exequibilidade, e muito teve que ser pensado a fim de buscar saídas que dessem conta de limitações computacionais.

Em geral, a obra Liberdade, assim como o Palavrador, tem um modo de operar próximo dos videogames em primeira pessoa, em que o jogador está livre para explorar um universo 3D53. Trata-se de um ambiente com uma geografia diversificada – lagos, montanhas, rios, pontes –, cercado por um mar do esquecimento (que reinicia o jogo). O ambiente inclui vídeos, música instrumental, canto, poemas escritos, diálogos sonoros, poemas recitados e uma série de elementos visuais diversos que abrangem desde origamis de tsurus e sapos até uma chuva de haikais. A estrutura geral do ambiente é soltamente baseada em locais do bairro da Liberdade – restaurante, shopping, praça, uma prisão, etc. – e seu design se utiliza de referências orientais e de texturização de papel (remetendo a pergaminhos e origamis).

53 Não se deve aqui confundir o "mundo 3D" da obra Liberdade com a noção

romântica de que a arte está segregada do mundo ontologicamente. O "mundo" da obra Liberdade – como o de qualquer outro jogo –, e qualquer interação com ele, ainda existe como parte deste único mundo em que vivemos. Ele é uma construção no mundo. Não há segregação, mas continuação de uma mesma vivência. Jogar a obra Liberdade ainda é viver. Voltarei a esse assunto na segunda parte dessa tese.

Imagem 21: Terreno montanhoso e um tsuru voando em Liberdade. Ao entrar no ambiente, o jogador surge no que seria a saída do metrô da Liberdade. Em suas perambulações, ele deve se confrontar com três elementos: encontros, desencontros e solidão em forma de esferas luminosas, respectivamente, vermelhas, azuis e brancas, sendo que cada uma delas é um elemento de mídia. Por exemplo, na chuva de haicais, cada um destes se enquadra em um tipo de lembrança. Ao entrar em contato com essas mídias, ele coleta lembranças alheias relacionadas àquele estado, em forma de poemas, vídeos ou áudios, elaborando uma espécie de mosaico de fragmentos de lembranças coletadas. Este conjunto coletado altera o brilho do próprio personagem com relação ao seu estado predominante (se ele tem presenciado mais encontros do que desencontros, ele se tornará mais vermelho; mais desencontros, ele se tornará azul; solidão, ele ficará com um brilho branco).

Estes três elementos se encontram em outras localidades, como, por exemplo, no que seria um restaurante japonês. Trata-se de um conjunto com silhuetas de cabeças e tigelas. Ali o usuário escuta uma briga entre casais na forma de um poema-diálogo dramatizado, marcando um ponto de desencontro. Outra localidade é o labirinto. Ali o usuário escuta uma trilha sonora cantada e perambula por poemas sonoros. Ainda outra localidade, baseada num shopping de quinquilharias, é constituída por um conjunto de imagens de pequenos objetos sendo que cada um está ligado a um poema acerca da memória do objeto em questão e, semelhantemente aos shoppings lotados, os poemas começam a se entrecruzar à medida que o usuário caminha entre

as imagens de objetos. Então, há memórias soltas pelo ambiente, tanto quanto memórias em conjunto nos locais.

A intenção é que o ambiente comporte vários usuários simultaneamente via rede, possibilitando que estes transmitam (ou roubem) memórias entre si, em um diálogo de recordações alheias e encontradas. Também é possível que os usuários exibam suas memórias em grandes televisores no ambiente (tornando público aquilo que coletaram). Nesse sentido, as memórias seguem o modo de operar de uma série de dispositivos de mídia atuais, como Grooveshark ou Instagram em que o usuário tem a possibilidade de organizar e mostrar o que obtém (sua biblioteca), de selecionar o que quer ter, ordenar seus dados (mundo). Em outras palavras, a obra lança mão de um mecanismo bastante corrente do dia-dia e toma emprestado o seu modo de operar para produzir a forma de existir do usuário em uma obra de arte. Assim, além de poder perambular livremente pelo ambiente, o usuário também tem a possibilidade – liberdade – de se fazer através de fragmentos. No caso, trata-se da possibilidade de se construir como ser, de coletar memórias alheias para compor um ser.

Nesse sentido, é importante entender a escolha dos meios utilizados para as memórias, sempre privilegiando som, vídeo e a palavra oral (a palavra escrita mal aparece nos haicais, que,são recitados) como uma maneira de possibilitar uma vivência imediata em um meio móvel e que acaba por construir uma forte noção de imersão através de uma arquitetura visual e sonora. A navegação por um ambiente visual – no espaço tridimensional – está alinhada à configuração sonora. O som das coisas aumenta e diminui com relação à aproximação ou afastamento delas. Isso leva a uma forte imersão do usuário através de uma espacialidade sonora que imita um dos elementos que dão a sensação de tridimensionalidade no dia-dia. A grande quantidade de sons (músicas e recitações) e de elementos visuais, vinculada com a possibilidade de movimentação livre no ambiente cria um cenário de vivência no digital.

Além disso, uma plataforma Wordpress permite aos autores alimentar e alterar seus textos, vídeos, e sons, possibilitando que a obra possa mudar continuamente54.

54 Existe uma série de possibilidades na obra Liberdade que ainda não foram

implementadas, como é o caso do murmúrio dos avatares, em que o personagem de cada usuário teria um murmúrio ou algo que é constantemente dito por seu personagem (podendo ser ouvido por outros), dependendo das memórias

Imagem 22: Visão aérea de um labirinto e um rio amarelo (também é possível ver alguns pontos luminosos de memórias).

A construção da obra teve vários participantes, alguns que programavam, uns produziam vídeos, outros compuseram textos e ainda outros gravaram as vozes e canções. Alguns transitavam por múltiplas atividades e todos interagiam na concepção da obra, discutindo os limites e possibilidades do que poderia ou seria feito. Nesse sentido a obra, dentro dos limites de uma construção, se constitui como um diálogo em grupo, entre ideias e limites conjuntos. A sua concepção e produção não compreendeu propriamente uma hierarquia, mas um diálogo de um coletivo.

Dentro desse cenário, existe uma consonância entre o que o usuário pode fazer na obra e como ela mesma foi composta, pois ambos são resultados de uma construção coletiva. Explico-me melhor. Se a obra foi composta por múltiplos gestos em diálogo, sem uma hierarquia hígida e estável55 (programadores, vídeo arte, sons, poemas, etc.) o

coletadas, ou ainda, a possibilidade de fazer o upload de toda playlist de memórias que ele teria coletado.

55 No caso, havia uma movimentação de coordenação em que para tarefas

diferentes haviam coordenadores diferentes e aquele que dirigia certa função seria dirigido por alguém em outra tarefa. Havia também um grupo que construía o objeto – programava, editava e articulava concretamente as partes no ambiente –, e, nesse sentido. coordenava certos aspectos materiais, levando a certas marcas visuais que, por exemplo, lembram o Palavrador (o que pode dar

usuário deve construir seu ser a partir das interações e perambulações no mundo de Liberdade com outros que ali habitarão. Tautologicamente, as possibilidades de ação nesta obra são bastante livres, não tão restritas como no Oratório ou Looppoesia. Há a possibilidade de explorar e, ademais, há o fato de que a ação do usuário produz algo distinto, algo que a programação possibilita e permite sem que o tenha prescrito antes de sua ação, pois o usuário vai fazer seu próprio ser através dos elementos coletados e, com a rede, as possibilidades do que poderá ser feito ou encontrado deixam de estar restritas aos elementos iniciais para se estenderem também aos jogadores online, à maneira dos MMOGs56. Nessa via, Liberdade usufrui plenamente das possibilidades tecnológicas de comunicação em rede e se torna uma obra local de interação da ação de múltiplas pessoas, uma totalidade maior do que a soma de suas partes. Ela é uma potencial rede de relações. A obra coisa- programada é um esquema disso como possibilidade. É uma máquina local para isso.

Mas para compreender a obra como artefato potencial é necessário compreender como ela opera em um sentido material. No caso digital, isso se dá na programação de um código-fonte operando em um computador. E para não compreender mal a liberdade de ação, tanto no agir na obra, quanto no produzir, deve-se entender esse ato de produção como fazer técnico (e não como criação ex nihilo). Destarte, entender que a liberdade apenas pode se dar diante de obstáculos, diante de impedimentos à minha ação, ou seja, a liberdade só existe diante de restrições.

2.4 CONSTRUTOS E CÓDIGO-FONTE COMO FAZER