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CAPÍTULO 00 (um ante capítulo)

1.4 ENGENHO E ARTE / ARTE DE ENGENHO

1.4.4 Artifício como dramatização e o constante decifrar do modus

operandi

Se concordamos com Pérez (2010), a obra de Baltasar Gracián seria um meio termo entre as regras preceptivas do início do século e os extremos engenhos de um Metametricam (1663) de Juan Caramuel. Pérez entende um movimento que vai das regras universais pré- legitimadas para um de engenho extremo fundado na experiência e fazer, cujo valor está na construção ou invenção de um engenho que supere/emule o outro, sem estar atrelado a um padrão pretensamente universal. O extremo engenho seria, conforme sua perspectiva:

un ingenio desaforado y entregado al juego de formular los artificios más complejos y elaborados para someter a ellos la inventiva de los alardes, en una práctica donde la constricción previa se

36 Nesse sentido a Arte Poética seria até melhor do que um Metametricam de

Juan Caramuel (1663) que, apesar de ser totalmente voltada as criações labirintos, já é criado assumindo um engenho e artifício extremado.

convierte en el sustituto del arte (PÉREZ, 2010, p. 69).

Eu não diria precisamente que a constrição prévia se torna um "substituto" da arte, pois se entendemos que estamos, como mencionei anteriormente, num sistema institucional em que as regras retórico- poéticas sempre prescrevem as bases do fazer, e em que também há prescrições para o agir social, como é o Oráculo Manual y Arte De Prudencia de Gracián entre tantos outros, então, a noção de arte e técnica sempre se vinculam a uma constrição, ou seja, trata-se de um sistema em que o engenho e o artifício estão plenamente estabelecidos e sempre subentendidos em todo ato de fazer e decifrar (até mesmo, como vimos, quando se compõe redondilhas "simples" para leitura pública).

O engenho e o artifício se encontram em tal difusão e complexidade que é constantemente necessário emular, permutar e reutilizar os elementos do sistema regrado. Todo ato deve ser engenhoso. Dessa forma, não há lugar para uma padronização fixa, mas a necessidade de constante invenção dentro das possibilidades das prescrições existentes. Eu argumento então que essas mudanças ou invenções são subentendidas pelo fazer engenhoso e sempre se dão nas próprias bases das regras e normatização do agir e fazer. Seria o caso em que ser engenhoso estaria associado à arte de maneira que não se poderia mais propor uma distinção ou assumir uma espécie de externalidade (e daí o possível erro de dizer que ela substituiu a arte, ou que não há mais arte). O agir e fazer seriam sempre engenho e artifício em devir, estes seriam a base pra toda ação.

À medida que a valoração da obra se baseia no engenho e artifício, os autores passam a se preocupar mais com estes do que com os resultados, atuando em um sistema no qual a elaboração de regras e modos de operar dos artefatos são os aspectos que interessam, ou seja, o engenho e artifício são o mais importante como fonte de valoração e, por essa razão, são o ponto central das obras. Com efeito, pode-se entender o ato de Juan Caramuel, Alonso de Alcalà y Herrera, Luis Nunes Tinoco e muitos outros de apresentarem um misto de tratado e obra de arte, em que as obras propriamente ditas estão envoltas por explicações e justificações constantes, a ponto de não se poder distinguir claramente se se trata de uma obra teórica ou "artística". Logo, considerar que as constrições prévias não são arte ou que elas estariam substituindo a arte, é compreender mal a ligação absoluta entre arte e técnica e esquecer que o modo de fazer seiscentista é sempre um fazer regrado ou técnico e com plena ciência de sê-lo dessa forma. Um poema

como o Labirinto Cúbico se funda (adquire valor) através da sua engenhosidade extrema, por jogar bem com os motes dados em ocasião da primeira reunião da Academia Brasílica dos Esquecidos.

Vale lembrar aqui que se movemos de um sistema de regras de fundação universal absolutas para um no qual estas mesmas regras são fruto de fazer técnico mundano – baseadas também no ofício e na ciência adquirida no fazer –, a consequência é que estas podem ser alteradas, não de fora – já que estamos em um cenário institucional mundano –, mas de dentro, compreendendo as possibilidades daquele sistema e usando-o para alterar a si mesmo, ou seja, estando imerso nele. A emulação, como apreender e avançar (ao invés de imitar e repetir), tão prescrita no pela compreensão seiscentista37, somente é plenamente

possível nesta situação.

Ao recordar, conforme o que foi exposto anteriormente, que o artifício regra o engenho e que este – a lógica engenhosa – é uma potência que vale tanto para apreender quanto para produzir/fazer, nota- se um sistema que sempre subentende a constante necessidade de decifrar, de saber desmantelar os modi operandi das obras através do mesmo conjunto de regras e prescrições utilizado em sua produção. E como a artificialização subentende uma tecnicidade mundana em oposição ao absoluto-universal, este se fundamenta não em uma estabilidade transcendente, mas no elemento relacional e situacional.

Para Gracián, o artificialismo absoluto – a constante dramatização ou artificialização de toda ação, perceber, fazer e dizer – faz com que o artifício seja a verdade fenomênica do mundo, pois todo ato humano é sempre artificial, todo agir humano é sempre performático:

La Verdad queda, por tanto, confinada al mismo mundo artificial de la Mentira: los medios usados serán análogos, sólo la intención (es decir, el fin) los distinguirá. El desvelamiento del artificio puede seguir siendo — como lo es, de hecho, en El Criticón — el propósito último de la Verdad, pero la auténtica e inmediata verdad es que el artificio ha pasado a ser la verdad fenoménica del mundo. Como hemos visto, el sentido antropológico y cultural, pero también en cierta medida ontológico y gnoseológico, del artificio en

37 Por exemplo, no aforismo 75 do Oráculo manual y arte de prudencia, de

la vida humana es el presupuesto legitimador que faculta a Gracián para lanzarse a un uso inteligente y rentable del artificialismo en el ámbito pragmático en el que se inserta su obra (DICCIONARIO DE CONCEPTOS DE BALTASAR GRACIÁN, 2011, p. 66).

De onde se podia falar no Seiscentos, como o faz Gracián na segunda Crisis de seu El Criticón, em "El gran teatro del Universo", visto que toda ação é performática (como artifício) e todo humano é ator e receptor simultâneo no teatro do mundo. Se toda ação humana é artifício, o modo de distinguir – de fugir ao relativismo completo – está na existência de uma finalidade, e ao descobrir esse fim é possível marcar a diferença entre um e outro. Com isso, Gracián aponta uma necessidade de distinguir – decifrar – os tipos de artifício, ou seja, de abrir a percepção e o raciocínio engenhoso para captar como estes operam.

Em resumo, tenho um cenário de fazer regrado/técnico. Este fazer regrado não é uma restrição no sentido negativo, pois não prescreve precisamente o que deve ser e sim um campo de possibilidades, tornando-se então uma potência para o fazer. Posso alterar o sistema, mas somente ao conhecer sua operação, ou seja, de dentro dele. Por ser um sistema técnico – mundano – ele é indistinto com relação ao ato de fazer e de decifrar; ambos se servem do mesmo sistema de regras. O que houve, segundo à crítica de Pérez, é que as regras, o artifício e engenho se tornaram mais importantes do que qualquer resultado, sendo assim, é o fazer e decifrar desses modos de operar que interessam. Em um momento em que todo agir, fazer e dizer estão envoltos do artificial, como uma dramatização destes, não há naturalidade, mas sempre um modus operandi em funcionamento, sempre algum artifício que deve ser compreendido, decifrado e recriado. É considerando tal aspecto que se pode utilizar a produção seiscentista para compreender a arte digital contemporânea, um momento em que o modus operandi se torna o mais importante como um propulsor de ação: a obra sendo um artefato que proponha este ato de agir com a obra (e agir sendo o modo de compreender esta).

Neste momento, retorno ao alforismo 251 do Oráculo manual y arte de prudencia de Gracián, que diz: "Hanse de procurar los medios humanos como si no huviese divinos, y los divinos como si no huviese humanos"(1996, p. 218). Entendo-o ao modo do Grande Teatro do Universo que é a obra, como expõe Gracián em El Criticón, do Supremo

Artífice. Este é o que cria uma máquina do mundo ou um mundo- máquina e a deixa operar sem necessitar de seus meios (a dupla autonomia). O lugar do humano – de natureza artificial – é o de eternamente performar – agir artifício – nesse espetáculo; é compreender as rubricas do teatro ou as operações dessa máquina – os engenhos – para poder agir – engenhar – bem dentro do campo de possibilidades estipuladas na grande obra (lembrando que o teatro da época não especificava realisticamente como a encenação deveria ocorrer, havia meramente uma breve indicação). Assim, podemos compreender a ligação entre ação, artifício, engenho dentro do Seiscentos.

Como define o Diccionario de Autoridades: "MACHINA. Se llama tambien un todo compuesto artificiosamente de muchas partes heterogéneas, con cierta disposición que las mueve o ordena: por cuya semejanza se llama assí el universo"(1734, [digital]), pode então ser entendida como próxima ao engenho, como um engenho produzido e autônomo. A obra de arte engenhosa seria então um construto, uma máquina. Apreender a obra, é apreender seu engenho, seu modo de operar, e agir.

Se levado ao extremo, esse modo de funcionar pode ser considerado uma maquinização, uma coordenação de meu agir, dizer e perceber, com relação a um sistema de regras que, enfim, significa me artificializar38. E se a arte e a condição humana sempre foram a de se artificializar, não seria então este um modo de aprendermos como a lidar com um crescente sistema tecnológico que nos engole? Através de nosso próprio fazer?39

38 Vale ressaltar que a mecanização nunca era total no Seiscentos,

provavelmente por causa da constante necessidade de emulação, de superação e de invenção dentro do sistema. A maquinização como automatização dos processos – no sentido de autores que meramente reproduzem um padrão estabelecido retórico-poético sem variação –, pode ser percebida em muitas das produções acadêmicas posteriores ao século XVII. Nesse caso, estamos em um cenário sobre o qual Hansen (2004) diz que há diluição das agudezas, que se pode pensar também como um desgaste de um mesmo modelo.

39 Talvez esse compreender (ação) do modo de operar da obra também sirva

para entender o uso constante desse tipo de poema para fins religiosos, tanto no caso dos jesuítas – como reiteração de um contexto teológico-monárquico, em especial do sacramento (Deus está em toda parte, porém é necessária uma técnica, reservada ao clero, para encontrá-lo ou decifrá-lo) –, mas também por correntes que incorporam aspectos do misticismo judaico cabalístico – ou em livros como o Sêfer Yetzirá, no qual o mundo é criado através de procedimentos

Adiante, ver-se-á como isso tudo se conjuga com a arte digital,

máquinas efetivas e irrestritas.

numéricos-textuais de permutações e combinações dos caracteres hebraicos –, a ponto mesmo de se confundirem com textos e sistemas propriamente ocultistas. Essa união de sistema acaba aumentando muito o grau de complexidade dos engenhos, a ponto de se criarem tabelas de correspondências e chaves de compreensão, como faz Alonso de Alcalà y Herrera em seu Jardim

Anagramático de Divinas Flores Lusitanas, Hespanholas e Latinas (publicada

em Lisboa em 1654) e Luis Nunes Tinoco em A Pheniz de Portugal Prodigiosa

em seus Nomes D. Maria Sofia Isabel Raynha Serenissima, & Senhora Nossa em cuja Augustissima Entrada por Artes Liberaes em curiozos Anagrammas se mostra felizmente renovada a Idade de Ouro do Anno de 1687 (também

publicado em Lisboa em 1687) e Juan Caramuel em sua já mencionada

Metametricam de 1663. Encontrar o divino, romper a autonomia de humano e

divino, seria compreender o modo de operar do mundo. Os poemas engenhosos seriam esse caminho ao divino (autônomo), como um agir regrado – e aqui é bom lembrar a complexidade dos sistemas cabalísticos – que leva a outro grau de conhecimento ou compreensão, que é o de se alinhar com algo que não nos toca, mas que deixou sua marca em uma operação (a operação não é o divino, mas seu traço). O regramento dos poemas pode talvez ser compreendido como um colocar-se em certo modo de perceber, dizer e agir, ou seja, ao se coordenar dessa forma, pode-se interligar com o divino. Disso resulta que um texto que não é somente compreensão intelectual, mas ação efetiva, um modo de ser.

CAPÍTULO 02

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DA ARTE DIGITAL

Por arte digital entendo a arte contemporânea que tem sua origem, no contexto de língua portuguesa sobre o qual me debruço nessa tese, a partir de movimentos de vanguarda experimentalistas tanto das artes visuais quanto das artes literárias dos anos 1950-197040. A divisão, que até então era mais ou menos nítida, entre literatura e artes visuais começa a se diluir nesse período, sendo que os grupos literários que aproximam a literatura dos meios tecnológicos e midiáticos de massa – o Po-Ex, grupo de Poesia Experimental Portuguesa, em Portugal, e o grupo da Poesia Concreta (e seus vários desdobramentos como Noigandres, Neo-concretismo, Poema Processo, Poesia Praxis), no Brasil – são também os que, ao mesmo tempo, aproximaram a literatura das artes visuais.

Esta relação entre artes visuais e literatura também ocorreu no âmbito do aparato teórico e crítico, produzido pelos próprios membros do grupo e por seus críticos e leitores posteriores. Nesse sentido, vários conceitos das artes visuais e da literatura se entranharam, alterando tanto as concepções de obra de arte, quanto o próprio ato de fazer dos artistas desse período, influindo, consequentemente, na elaboração de obras de arte digital contemporânea. Sendo assim, torna-se bastante problemático, e até mesmo contraditório, tentar estabelecer uma linha rígida entre artes literárias e artes visuais na atualidade da arte digital. Se adicionarmos a isso os hábitos de desenvolvimento e trabalho derivados de áreas técnicas, como as engenharias e a computação, ver-se-á que as bases desse período, de onde a arte digital surge, foram bastante alteradas com relação a noções clássicas da obra de arte.