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CAPÍTULO 00 (um ante capítulo)

4.1 PROBLEMAS INICIAIS DA ANÁLISE ESTÉTICA DA

4.1.2 Gadamer e a recusa da estética em prol de uma arte como

A concepção de arte como aletheia e hermenêutica são as bases para Hans-Georg Gadamer formular uma ontologia da arte em sua obra magna Truth and Method (2006), cuja primeira parte é dedicada diretamente a uma complexa crítica à estética filosófica – sobretudo, suas bases kantiana e schilleriana –, na forma de uma recusa ao subjetivismo na arte, e àquilo que Gadamer denomina de "diferenciação estética". Isto é, a partir do princípio de desinteresse, a recepção estética abstrai tudo que não é estético (tudo que não é afecção sensível), homogeneizando aquilo que é apreendido esteticamente (tudo que é percebido como belo) e, assim, segregando o estético do mundo. Segundo a análise estética, tudo que é apreendido como estético por uma consciência estética do humano é posto à parte do mundo e de seus elementos mundanos contingentes. Logo, há na estética uma "diferenciação" do que é estético com relação ao mundano e ao mesmo tempo uma "indiferenciação" de tudo que é estético, pois tudo que é estético se torna nivelado/universalizado diante da subjetivação. Segundo Gadamer, tal perspectiva não permite compreender a obra de arte em sua mundanidade, como experiência do/no mundo. A partir dessa crítica, o autor formula sua própria filosofia da arte na qual, com um enfoque ontológico, coloca a arte como um acontecimento de sentido (Sinn), (i.e. como um acontecimento semântico) e apreensão de sentido, que tem seu modo de se dar como jogo (Spiel)99. Porém, Gadamer livra esse conceito da carga subjetivista estética (kantiana e schilleriana):

When we speak of play in reference to the experience of art, this means neither the orientation nor even the state of mind of the creator or of those enjoying the work of art, nor the freedom of a subjectivity engaged in play, but

99 A palavra Spiel em alemão indica uma gama de significações inexistentes no

português. No caso de que trato aqui, Spiel significa tanto peça teatral quanto jogo, e, ao mesmo tempo, a execução da peça também é jogar (e não encenar). A raiz da palavra também coloca os atores como "jogadores" (nesse sentido há certa proximidade com a palavra "play" em inglês que significa também tanto peça teatral quanto jogo e jogar, sendo os atores "players" que "play their part", "fazem sua parte").

the mode of being of the work of art itself (GADAMER, 2006, p. 102).

O que interessa à análise de Gadamer é, ontologicamente, o modo de ser da obra de arte, e não a recepção desta. Mais do que isso, a afirmação de Gadamer se encaminha para a noção de que uma recepção subjetiva não é ter experiência plena da obra de arte, pois à recepção contemplativa estética sempre faltará algo. Como Heidegger (1991, 2002) em sua busca de superação das limitações da relação sujeito- objeto, Gadamer mostra que jogar não é uma relação do jogador (sujeito) diante de um objeto. Não é possível compreender o modo de ser da obra de arte – jogo – através da subjetividade estética: "The players are not the subjects of play; instead play merely reaches presentation (Darstellung) through the play"(GADAMER, 2006, p. 103). Tal ocorre porque o jogo na concepção de Gadamer é considerado como um acontecimento/movimento independente do jogador em questão. Por exemplo, no futebol, o jogo acontece a despeito dos jogadores individuais, a despeito de suas consciências ou psiques específicas. O jogo é um agir a despeito de si, é algo maior do que eles, de suas vontades subjetivas particulares. Os jogadores agem pelas regras do jogo, pelos objetivos e modos de agir requeridos daquele modo de ser100. É o jogo que produz aquele movimento-jogo. Desta forma, o jogo – obra de arte – é um acontecimento emergente (algo maior do que as partes). De forma mais direta, jogar é agir por uma configuração (Gebilde), é ocupar um papel ou conjunto de regras, e o jogo emerge dos atos conjuntos, por ser permeado por essas regras de ação. Ao mesmo tempo, o espectador não está fora dessa totalidade. O jogo tem uma característica intencional como "ser para...", isto quer dizer que o espectador é tão jogado quando o jogador, ambos tem igual posição dentro dessa totalidade constituída (GADAMER, 2006).

Com essa formulação de jogo focada sobre a configuração (Gebilde) propulsora de uma ação, dilui-se a identidade "sujeito" e se anula a relação sujeito-objeto, pois essas posições se tornam alteráveis e relacionais a partir da configuração da obra. E o que surge com elas em ato é jogo. A interação no jogo – a partir de sua configuração –, para

100 O jogo como agir por regras não é uma maneira de suprir uma necessidade

lúdica do humano (isso seria uma noção demasiadamente subjetiva de prazer), mas sim o modo de a obra de arte se dar no sentido de que agir por essas regras é ser jogado; é ter sua vontade artificializada pela configuração do jogo.

Gadamer (2006), é uma situação em que jogar é ser jogado, agir é ser agido pelo jogo:

The reason for this is that the to-and-fro movement that constitutes the game is patterned in various ways. The particular nature of a game lies in the rules and regulations that prescribe the way the field of the game is filled. This is true universally, whenever there is a game (GADAMER, 2006, p. 107, grifo meu).

Jogo é, assim, o que Gadamer chama de transformação em configuração (Gebilde). "Transformação", no caso, indica o jogo – obra de arte – como uma totalidade emergente. Em ato ele emerge, anulando a individualidade das partes, para tornar-se um ser maior, i.e.:

transformation means that something is suddenly and as a whole something else, that this other transformed thing that it has become is its true being, in comparison with which its earlier being is nil (GADAMER, 2006, p. 111).

Com a transformação, há uma alteração ontológica em que o todo/arte vem a ser. A totalidade – obra de arte/jogo – em questão está acima dos elementos – jogadores, espectadores, criadores, etc. – e tem uma autonomia com relação a estes e suas subjetividades particulares. Logo: "It is clear that to start from subjectivity here is to miss the point. What no longer exists is the players—with the poet or the composer being considered as one of the players"(GADAMER, 2006, p. 111). Essa autonomia do jogo pode ser compreendida quando, mesmo assistindo a duas encenações diferentes de The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark [1599~1602], diremos que assistimos Hamlet, pois o que está em questão, na visão de Gadamer, é a configuração de sentido "Hamlet". E esta deve ser distinguida da apreensão sensível da obra, i.e., estética.

Como um acontecimento ou apresentação (Darstellung) de sentido, é somente em ato que há obra de arte. O que é dizer que ela só existe em jogo: "it is in the performance and only in it [...] that we encounter the work itself"(GADAMER, 2006, p. 115). A obra de arte tem assim um caráter inalienável da sua apresentação contingente:

Here it becomes clear why starting from the concept of play is methodologically advantageous. The work of art cannot simply be isolated from the "contingency" of the chance conditions in which it appears, and where this kind of isolation occurs, the result is an abstraction that reduces the actual being of the work (GADAMER, 2006, p. 115).

Sendo assim, a estética, ao focalizar a recepção subjetiva, ao isolar a obra de arte dos elementos contingentes – históricos, contextuais, de sentido, etc. – como mera afecção subjetiva, eliminando o seu caráter de acontecimento no mundo, é largamente redutora em seu modo de apreender a obra de arte. A estética abstrai a obra de arte de seu ser, deixando apenas uma universalidade vazia homogênea, fruto da afecção. A tese de Gadamer fica claramente formulada da seguinte maneira:

My thesis, then, is that the being of art cannot be defined as an object of an aesthetic consciousness because, on the contrary, the aesthetic attitude is more than it knows of itself. It is a part of the

event of being that occurs in presentation, and

belongs essentially to play as play (GADAMER, 2006, p. 115).

Fica claro, dessa maneira, que o conceito ontológico de jogo permite a Gadamer, metodologicamente, compreender estética como subserviente ao jogo e seu modo de ser (logo, sem primazia com relação à arte). Consequentemente, a obra de arte, como configuração, é um todo significativo que pode ser constantemente reiterada e compreendida, mas que depende da apresentação – ato – para ser, para ser transformada. É isso que se quer dizer por acontecimento de sentido que tem no jogo o seu modo de se dar:

Let us recall the phrase used above, "transformation into structure."[Gebilde] Play is structure—this means that despite its dependence on being played it is a meaningful whole which can be repeatedly presented as such and the significance of which can be understood. But structure is also play, because—despite this theoretical unity—it achieves its full being only

each time it is played. That both sides of the question belong together is what we have to emphasize against the abstraction of aesthetic differentiation (GADAMER, 2006, p. 116). Para Gadamer o sentido é o cerne da obra de arte. A estética erra ao segregar do mundo aquilo que é sensível (em ter a apreensão sensível como arte) e em não levar em conta o sentido da obra de arte, sua configuração: "What the actor plays and the spectator recognizes are the forms and the action itself, as they are formed by the poet"(GADAMER, 2006, p. 116). É a configuração de sentido que é a base do ser-arte. Este elemento e essas relações e modos de agir é que são a identidade da obra de arte e que a constituem como tal:

What we have called a structure [Gebilde] is one insofar as it presents itself as a meaningful whole. It does not exist in itself, nor is it encountered in a mediation (Vermittlung) accidental to it; rather, it acquires its proper being in being mediated (GADAMER, 2006, p. 117).

Como já dito, a estética passa, então, a um elemento secundário submetido à configuração de sentido. Notem aqui que há um nítido descolamento de elementos estéticos e elementos artísticos, em que a alteração do material não necessariamente altera a configuração de sentido, ou seja, o cerne da obra de arte. Não importa o quão controverso isso possa parecer, sobretudo no teatro contemporâneo101; o que importa é que se estabelece um conceito de obra de arte que pretende outro modo de lidar com o artístico, que não esteja submetido à, e nem subentenda, afecção sensível, mas que focalize a configuração de sentido e, o que importa mais para presente tese, a obra de arte como acontecimento ou ato.

É verdade que Gadamer se concentra, principalmente, na peça teatral como seu exemplar análise, porém, é na obra de arte literária em que a recusa da estética atinge seu ápice:

101 Gadamer, em seus textos posteriores – principalmente em A Atualidade do Belo (2010) –, irá revisar essa compreensão e irá, pelo conceito de jogo, alterar

a noção de obra de arte para a de uma configuração de sentido peculiar/singular, ressaltando uma particularidade do evento.

Literary art can be understood only from the ontology of the work of art, and not from the aesthetic experiences that occur in the course of the reading. Like a public reading or performance, being read belongs to literature by its nature. They are stages of what is generally called "reproduction" but which in fact is the original mode of being of all performing arts, and that mode of being has proved exemplary for defining the mode of being of all art (GADAMER, 2006, p. 154, grifo meu).

Isso se deve ao fato de que a literatura, como textual, é uma compreensão de sentido – um enunciado –, i.e., sua apreensão envolve a participação em um conjunto regrado comunitário linguístico e como tal é interpretação e deciframento. Procedimentos estes que marcam diretamente o textual como histórico contextual, impedindo de localizá- lo sob a rubrica da afecção subjetiva ou de compreender o texto através da recepção sensível, já que o sensível no texto consiste, em grande parte, de marcas gráficas simbólicas, em que o elemento simbólico não pode se apreendido como meramente sensível, sempre havendo um ato hermenêutico envolvido. O que é dizer que a literatura é paradigmaticamente não-estética e deve ser abordada por outros meios. O que também pode ser notado aí é a mudança de foco metodológico da estética para ontologia da arte, pois compreender a afecção do leitor diante de um texto não é compreender o modo de operar da obra de arte literária. Focalizar a recepção do leitor, como quer a estética, é um passo em direção ao psicologismo negado pela linhagem fenomenológica de Heidegger, da qual Gadamer também se utilizou. O foco ontológico anti-estético pode ser compreendido, em parte, tanto em Gadamer (2006) quanto em Ingarden (1973a), como uma recusa do psicologismo.

Sendo a obra de arte um acontecimento de sentido em jogo, é de se notar que o paradigma de arte em Gadamer gira em torno da peça teatral (Spiel) e também da obra de arte literária (ou do objeto textual), compreendidos por uma arte e técnica de interpretação textual, ou seja, pela hermenêutica:

Every work of art, not only literature, must be understood like any other text that requires understanding, and this kind of understanding has to be acquired. This gives hermeneutical consciousness a comprehensiveness that surpasses

even that of aesthetic consciousness. Aesthetics

has to be absorbed into hermeneutics. This

statement not only reveals the breadth of the problem but is substantially accurate. Conversely, hermeneutics must be so determined as a whole that it does justice to the experience of art. Understanding must be conceived as a part of the event in which meaning occurs, the event in which the meaning of all statements — those of art and all other kinds of tradition — is formed and actualized (GADAMER, 2006, p. 157). Assim, Gadamer sustenta que toda obra de arte deve ser entendida como texto e linguagem, e como tal, necessita de uma educação ou treinamento para se poder "ler". Desta forma, não há como haver uma apreensão "pura" ou isolada da obra de arte. Não existe pura afecção. Toda apreensão é sempre situada e mediada por um mundo fático. Assim, é necessário dominar técnicas e modos de interpretação para poder experienciar uma obra de arte e compreendê-la como arte. Sob a tese hermenêutica de Gadamer de que o ser que pode ser compreendido é linguagem – próximo da noção de Heidegger que liga sentido e verdade dentro de um todo racional (espiritual humano) –, a obra de arte se retira da compreensão estética e se aproxima da hermenêutica em um movimento – via compreensão da arte como jogo – de que compreender é ser na arte. Com a tese de Gadamer (2006), torna- se possível olhar a obra de arte a despeito de sua "diferenciação" e "indiferenciação" estética. Enfim, é possível pensar a arte sem identificá-la com estética ou com qualquer sistema que segregue a arte de seu acontecer, de sua execução mundana contingente. E, mais do que isso, é possível pensar a arte, em consonância com a presente tese, como configuração e execução – ação operatória – performática e como apenas ocorrendo em ato, muito próximo ao que propôs Lygia Clark quando disse: "A obra é o seu ato"(CLARK, 1964, p. 2).

4.2 A DISTINÇÃO ENTRE ARTÍSTICO/ESTÉTICO NA