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CAPÍTULO 00 (um ante capítulo)

0.2 PALAVRADOR

O Palavrador (MARINHO et al., 2006), produzido por um grupo interdisciplinar no 38º Festival de Inverno da UFMG em Diamantina em julho de 2006, consiste num mundo digital onde o leitor/usuário, controlando um cubo de faces (retiradas de chafarizes de Diamantina) com asas no qual se mostram as palavras Caos e Eros, pode lançar versos pelo ar, navegar e interagir com ciclones de poemas recitados (ouvindo duas leituras se cruzarem), labirintos de haicais, cascatas de textos, tornados de letras, pequenos "seres" de vida artificial que viajam pelo espaço em comportamento de bando, vídeos, entre outros materiais plásticos e sonoros. Essa obra se assemelha muito a um jogo digital – um videogame – por seu modo de propor a interação, por

meio de um personagem (o cubo) que o usuário controla em terceira pessoa4 através de um joystick ou de comandos no teclado num pequeno

mundo em 3D. Entretanto, diferente de muitos jogos, não há objetivo específico a ser completado ou atingido, somente um mundo com o qual interagir e a explorar5.

Imagem 01: Palavrador diante do labirinto de haicais.

O Palavrador pode ser acessado online6 (sua primeira versão software para baixar) e o usuário pode controlar o cubo através do teclado (a tecla "h" abre as instruções de uso). Esta versão utiliza o sistema operacional e o hardware padrão de um computador para operar e logo pode ser acessada e utilizada em qualquer lugar e em qualquer

4 Jogos em primeira pessoa são, aqueles em que o jogador não vê seu

personagem (como Doom, Hexen, Wolfenstein 3D, etc); os de terceira pessoa, aqueles em que o jogador fica bem atrás de seu personagem (como Syphon

Filter, Legacy of Kain: Soul Reaver, etc.).

5 Essa proposta se assemelha a alguns jogos que têm sido lançados como Flow

(2006) <http://interactive.usc.edu/projects/cloud/flowing/> e Journey (de 2012) desenvolvidos pelo Thatgamecompany, mas, obviamente, sendo anterior a eles.

6 Ficha técnica do Palavrador e dos criadores no sítio Ciclope (2010):

máquina que possua os requisitos mínimos7 para fazer funcionar o software.

Imagem 02: Palavrador Open Book 2.0.

Depois da versão online foi construída uma versão ―física‖ chamada Palavrador Open Book 2.0 (MARINHO et al., 2007), que consiste numa espécie de livro-coisa (imagem 02) que leva a obra a mais um grau de interação por meio de sua forma de objeto-livro. Essa versão

7 Hoje em dia isso se tornou um pouco mais difícil já que um dos programas

necessários foi atualizado e a versão nova não é mais compatível com o

Palavrador. Para utilizá-lo é necessário uma versão antiga do programa. Ou

possui hardware próprio em que placas Arduino8 (imagem 03) são utilizadas para controlar aspectos materiais que normalmente não existiriam em um computador de uso caseiro9.

Imagem 03: Placa Arduino e a conexão dos sensores dentro do Palavrador

Open Book 2.0.

Na versão física existe um pequeno livro de lona (Imagem 02) que contêm sensores de luz e sombra, pressão e toque que captam a presença física do usuário, sua ação sobre o objeto, e causam alterações no ambiente 3D (exposto na tela) e no sistema sonoro/musical a partir da presença desse usuário e da página em que ele se encontra (dirigindo- o ao espaço no ambiente digital correspondente à página do livro). No grande livro também existem controles para navegação direta como joystick e botões (Imagem 02 à esquerda). Todos estes itens tornam a experiência da obra fortemente colada à materialidade sensível e às ações efetivas do usuário.

8 Arduino é uma plataforma de hardware livre que permite uma série de

interconexões interativas entre software e hardware, incluindo sensores, motores, luzes, captadores de ação, câmeras, placas de som e extensões de rede, o que a torna imensamente popular para criações digitais.

9 Infelizmente essa versão do Palavrador também não se encontra atualmente

disponível, pois não houve verbas para transportá-la de volta dos Estados Unidos (onde ela foi exposta na ACM SIGGRAPH 2007 Art Gallery - Glogal Eyes).

Imagem 04: Megálitos de faces cantantes no Palavrador.

Assim, a totalidade da obra – os sensores de toque, sombra, joystick, etc –, complexificam e totalizam a ação do usuário no ambiente de forma que não podemos falar meramente de recepção da obra, já que todo ato, até mesmo os mais involuntários, constitui o modo de ser da obra. De acordo com um dos principais autores, Francisco Marinho, o Palavrador é um ―‗livro dentro de outro‘ que, ao ser manuseado, ‗percebe‘ que está sendo lido e, por meio de sensores embutidos em páginas, produz um mundo virtual tridimensional de poesias e sons, ao gosto de cada leitor‖(MARINHO, 2008, [digital]).

Imagem 05: as quatro páginas do livro de lona com seus sensores (pequenos pontos) da direita superior para a esquerda inferior: capa, elementos, ventos,

estações.

Esse elogio à materialidade também se encontra na temática e na forma da obra. O usuário controla um cubo de faces que tem como asas as palavras (nome de deuses) Caos e Eros, ou seja: Caos, ausência de forma; Eros, o que ordena e une. Entre eles, o cubo, símbolo da materialidade perfeita, que é de onde se vê e se interage com o mundo digital, é seu lugar de encarnação, tanto do poema quanto do leitor/usuário, na matéria. Esse motivo cúbico/quaternário se repete constantemente na obra, em suas referências aos quatro elementos, aos quatro ventos, às quatro estações, aos quatro eixos cardeais – temas que estão presente nas quatro páginas do pequeno livro de lona. Por fim, temos o fato de o cubo voador personagem navegar dentro de um ambiente digital em forma de cubo, que parte de um livro cúbico num suporte cúbico, como uma materialidade dentro de outra, como se a união desses diversos quatro pontos unidos resultassem num mundo-

construto10. Entretanto, não como estaticidade absoluta, como seria a de um cubo parado, mas de um fluxo-construto, um constante dissolver- unir/construir (marcados por Caos e Eros). São elementos que são tematicamente centrados no cubo como símbolo e efetivados no Palavrador por ser ele um aparato construído e programado, uma coisa movente por ter a capacidade de ser moldada pelas ações e reações do usuário diante do objeto-livro.

Imagem 06: Elementais (água, vento, terra, fogo) e cachoeira de palavras no

Palavrador.

No Labirinto Cúbico havia algo a ser dito ou ilustrado, na forma de um louvor a Vasco Fernandes César de Meneses dizendo que este é tão grande quanto César Augusto. Todavia, se olharmos atentamente, notaremos que esse dizer, se descolado da forma em que é executado, se perde. Se podemos ainda pensar em um dizer como um sentido que a obra quer passar no Labirinto Cúbico, não o podemos no Palavrador. Nele, há a exploração, há a temática quaternária, há, segundo o que

10 Para mais detalhes sobre a obra mencionada, conferir o vídeo Palavrador: Vídeo explicativo <http://youtu.be/0htOJgmEeEs>.

intento expor, uma manifestação da materialidade, mas não algo que possa ser transcrito e dito, e sim um agir.

Logo, como no Labirinto Cúbico de Anastácio Ayres de Penhafiel, existe uma ligação absoluta entre conteúdo e forma, entre estes e como ambos os cubos operam, nem tanto como dizer, mas como ação potencial a ser efetivada. Não posso meramente me deixar ao gozo da obra, nem mesmo a uma leitura no modo clássico, pois se assim o fizer, a obra não acontece. Faltaria minha ação sobre ela para que ela seja constituída. Assim, prazer estético e sentido parecem ser elementos que apenas podem surgir (se é que eles têm lugar) quando o usuário tiver agido.

Trata-se de algo muito próximo a uma peça teatral; sem a montagem e encenação ela não é plenamente. A peça teatral é engendrada na ação performática. Não é à toa que se pode falar de dramatização ou mundo como teatro na produção letrada seiscentista. A obra, em ambos os casos, é algo pronto para ação, que aguarda a ação para começar, para que haja obra. É necessária a ação explícita do usuário – e não meramente interpretativa – para que tal coisa se dê ou que se possa chegar a qualquer lugar. Isso não implica, entretanto, que elas sejam obras "inacabadas". Elas são acabadas como obras de arte, mas ser acabada/completa como obra de arte implica ser um objeto potencial para ação. A concreção pela ação não é algo extra, mas uma necessidade integral do ser obra de arte – tanto nos caminhos possíveis de efetivação do Cubo, quanto na navegação e interação com sensores do Palavrador.

Passemos agora de uma visão particular destas duas obras para uma visão macro de sua localização e de como compreendo tanto a produção letrada seiscentista quanto a arte digital.

CAPÍTULO 01

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DA PRODUÇÃO LETRADA SEISCENTISTA

O que entendo por produção letrada seiscentista nesta tese são as produções que vão de um período mais ou menos entre a União Ibérica entre Portugal e Espanha em 1580 até a Reforma Pombalina em 1750 na península ibérica e sua colônia Brasil. Trata-se da periodização utilizada por João Adolfo Hansen (2002, 2004), com relação a Portugal e Brasil, e que é muito próxima à periodização apresentada por Pedro Ruiz Pérez (2010), de 1598 a 1691, como "el siglo del arte nuevo", do Siglo de Oro espanhol (séculos XV-XVII)11.

Longe de ser um todo cronológico homogêneo, e Pedro Ruiz Pérez (2010) aponta bem as mudanças ao longo deste período, trata-se de uma delimitação por elementos históricos institucionais que marcaram material e socialmente o modo de vida e de produção da península ibérica, e consequentemente da colônia ultramarina, tendo como principais características: uma monarquia absolutista, a Contra- Reforma e a maciça presença jesuíta no sentido da proliferação de um método pedagógico, retórico e poético, dentro de certa linha aristotélica apropriada pela escolástica, na forma da Ratio Studiorum, e encerrada pela expulsão dos jesuítas em 1759 com o fim de seu método educativo escolástico aristotélico12.

11 Vale ressaltar que Hansen recusa o termo "barroco", optando por utilizar o

termo "seiscentista", para assim evitar uma série de equívocos conceituais gerados ao associar o termo "barroco" às noções de Wölfflin (1989a, 1989b).

12 Apesar de ser um período que abrange mais do que o século XVII, trata-se de

um conjunto de práticas, reconhecimentos e instituições que têm certa proximidade e perduraram durante este período. Portanto, subscrevo à tese de Hansen no sentido de compreender a produção seiscentista dentro de padrões pragmáticos históricos: "'o Barroco' é Wölfflin, ou seja as categorias dedutivas do idealismo adaptado teleologicamente em programas de invenção de tradições nacionais e nacionalistas, sem a maior pertinência ou interesse para dar conta da primeira legibilidade normativa da poesia do século XVII"(HANSEN, 2004, p. 27). A adoção desta perspectiva diferencia minha tese de outras que tentam ligar "o barroco" ao digital, pois estas tendem a considerar "barroco" um estilo universal ou transhistórico, identificando algo como "barroco" a partir de um conjunto de categorias universais a prior, corroborando a tese de caráter neo- kantiana essencialista de Heinrich Wölfflin (1989b) (como o fazem vários dos chamados neobarrocos e outros como Eugeni D'Ors e Affonso Ávila). Ou ainda,

1.1 RETÓRICA, POÉTICA E PRODUÇÃO INSTITUCIONAL