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CAPÍTULO 00 (um ante capítulo)

3.1 UM CONCEITO

Na primeira parte desta tese explicitei uma proximidade entre as obras literárias seiscentistas e as obras de arte digital, mostrando que é possível compreendê-las através dos conceitos de ação, de artifício (construto) e de engenho, ou melhor, que é possível compreender as obras em questão como artefatos feitos por um agir regrado (técnico) e que tem um engenho/maquinação (funcionamento) que necessita de uma ação operatória para serem efetivadas. Dando mais um passo, posso formular que: arte é ação, atividade, acontecimento. A obra de arte é um artefato/construto (concreto ou abstrato), um artifício produzido e que existe através de uma ação artificializadora. Ela é o resultado objetivo da ação-artifício-fazer.

Assim, pretendo nesta segunda parte da tese explorar e formular esse conceito instrumental de arte como ação e da obra de arte como artefato/artifício, levando em conta que essa formulação implica em distanciá-los das noções de sentir e dizer, justamente duas categorias que fundamentam as pré-compreensões de arte como estética e como sentido semântico. É, então, necessário elaborar uma breve revisão crítica sobre essas duas concepções de arte – observando suas implicações e consequências –, para poder apontar para outra possibilidade de conceito de arte.

Trata-se de outra perspectiva que visa ressaltar aspectos operatórios/manipulatórios do fato artístico. Se o analiso somente pela estética – recepção sensória subjetiva –, fica difícil compreender os exemplares dos dois grupos abordados anteriormente78. O que proponho

78 João Adolfo Hansen em seu texto Barroco, Neobarroco e Outras Ruínas

(2008) elabora uma crítica veemente à utilização de conceitos e parâmetros de origem iluministas e românticos – uma concepção estética da arte – para pensar a produção seiscentista, no sentido de que: "A representação colonial não conhece, evidentemente, a divisão dos regimes discursivos produzida a partir do Iluminismo: não é 'literária', objeto de uma estética que teorize sua contemplação desinteressada"(HANSEN, 2008, p. 30). Aplicar esse tipo de visão sobre o seiscentos, como muito tem sido feito, implica a anulação dos

é que há outros elementos mais relevantes – outros modos de compreensão – para as obras do corpus em questão. Para tal, torna-se necessário primeiramente distinguir entre propriedades estéticas e propriedades artísticas, a partir das quais se pode chamar algo de "arte" até mesmo se esteticamente não tiver relevância (p. ex. o caso de "Tudo pode ser dito num poema" e do Sintext, obras em que os elementos estéticos são secundários).

Para tal, lanço mão de autores da atual filosofia da arte anglófona, como George Dickie (1997), Randall R. Dipert (1986, 1993), Amie L. Thomasson (1999, 2007), Risto Hilpinen (1992, 1993), Gary Iseminger (1973), Stephen Davies (1991), Jerrold Levinson (2007, 2011) e John R. Searle (1997)79, que têm tratado, pela abordagem da

ontologia da arte, a noção da obra de arte como artefato pareado a um modelo acional institucional contextualista80. À leitura desses autores,

junta-se a de Roman Ingarden (1973a; 1973b; 1989) que servirá de fundamentação para pensar os princípios da noção de obra de arte como artefato dentro de uma concepção de ontologia da arte, visto que em

procedimentos retórico-poéticos fundamentais para a produção letrada seiscentistas, já que estes são diametralmente avessos a uma autonomia estética.

79 Obviamente, John Searle não se ocupa diretamente de uma filosofia da arte,

entretanto, seu trabalho acerca da ontologia social (1997, 2009) pode servir grandemente para entender uma ontologia da arte se adequadamente lida juntamente com os outros autores mencionados. Isso porque ele, como esses outros autores, parte de uma preocupação comum, ontológica, por um viés intencional-pragmático. Isso será abordado detalhadamente nos últimos capítulos.

80 Esta é uma linha que emergiu a partir do final do século XX e tem atingido

atual importância no cenário de filosofia anglófana. Os debates que surgem dela podem ser acompanhadas sobretudo no âmbito de periódicos, principalmente o

The Journal of Aesthetics and Art Criticism e o The British Journal of Aesthetics, em forma de artigos, réplicas, resenhas e afins, formando uma

discussão bastante viva que, em alguns momentos, podem ser difícil de adentrar pela quantidade de interlocutores (as referências feitas uns aos outros, nem sempre explícitas) e por ser uma discussão em andamento (grande parte das publicações em livros são coroamentos de discussões já bastante adiantadas, que viram suas teses testadas e argumentadas anteriormente nos periódicos). Stephen Davies, em seu livro Definitions of Art (1991), apresenta algumas dessas discussões feitas até a época da publicação de seu livro, como também o faz Noël Carrol na coletânea Theories of Art Today (2000). Outros compêndios bastante abrangentes são The Blackwell Guide to Aesthetics (2004), editado por Peter Kivy, e o The Oxford Handbook of Aesthetics (2005), editado por Jerrold Levinson.

seus trabalhos, o filósofo polonês distanciou a noção de arte tanto da análise estética – movimento já empreendido por Martin Heidegger a partir dos anos 30 e Hans-Georg Gadamer partir dos anos 60 quando apontam que irão analisar o fato artístico por um viés não subjetivo – quanto da análise de sentido semântico. Por fim, lanço ainda mão de autores que, também por um viés analítico e uma preocupação ontológica, permitem fundamentar uma distinção entre estético e artístico, como Arthur Danto (1981, 1986), Graham Mcfee (2005, 2011) e Noël Carroll (2002, 2003). Conforme nota Mcfee (2011), se essa distinção contrastiva, fundamental para compreensão do fato artístico, tem sempre estado presente no cerne das concepções de arte, ela raramente tem sido abordada de modo direto. É sobre essa base que pretendo elaborar e fundamentar os argumentos desta segunda parte da presente tese, tirando as devidas consequências do uso dos conceitos de ação e artefato. Comecei pelos dados da arte – pelos exemplares digitais e seiscentistas; a partir de agora, pretendo construir um conceito de arte e de obra de arte que indiquem caminhos para melhor compreensão do caráter geral da arte.

A primeira crítica a esta empreitada seria a da impossibilidade de definir ou conceituar "arte", geralmente pautada pela constatação de que há uma grande quantidade de usos diferentes da palavra "arte" e de que há inúmeras tentativas de conceituá-la, mas que acabam se tornando estanques diante da sempre mutável produção artística. Na verdade, muitas dessas teorias se veem ou se viram forçadas a elucubrações e distorções tanto de si quanto do objeto artístico, para poderem "funcionar". Que não há um único conceito ou uma única definição de arte, é claro. No entanto, tal não é um privilégio da arte, mas é uma condição inerente à formulação conceitual, pois todo conceito ou definição sempre subentende vários outros conceitos e definições possíveis (inclusive a própria definição de conceito)81. Ora, a

multiplicidade conceitual não implica a impossibilidade de se estabelecer um conceito, nem na inadequação de tal empreita. A crença na impossibilidade da conceituação da arte resta fundada sobre: 1) a concepção da homogeneidade ontológica da arte – no sentido em que as diferentes formas de arte seriam apenas modos diferentes da mesma e única substância; 2) uma mistura entre a visão romântica – da arte como

81 Para um exemplo das várias possibilidades de argumentar sobre o que é um

conceito, veja o livro Concepts: core readings (2007) editado por Eric Margolis e Stephen Laurence.

fora do mundo – e uma visão positivista de fundo utilitarista extremo (BRAIDA, 2014a).

A segunda crítica poderia ser a de que uma teoria ou uma elaboração conceitual nada tem a ver com a arte ou que ela em nada afeta a produção artística, como se se tratassem de dois domínios absolutamente isolados. Todavia, se for lembrado que, no Seiscentos, a elaboração de diversos tratados de retórica e poética ocorreu entre diversos preceitos, ver-se-á uma situação em que construções técnicas – pautadas sobre uma filosofia aristotélica – afetam o modo de compor. O mesmo vale para outras épocas, nas quais se pode verificar autores que elaboram com maior ou menor grau suas concepções acerca da arte – como o caso de Horácio, Juan del Encina, Lope de Vega, Wolfgang Goethe, William Wordsworth, Joseph Kosuth, Donald Judd e adiante –; muitos se veem influenciados por elaborações filosóficas – como os seiscentistas operando sobre categorias aristotélicas, William Buttler Yeats pelo neoplatonismo, Paul Celan por Heidegger, Marcel Proust por Henri Bergson ou Samuel Beckett por Descartes82. Outra vezes, graças a um grau de aceitação conjunta dos preceitos, nota-se que artístas se apropriam de tais modos de ver o objeto artístico, o que acaba por determinar, até certo ponto, o que produzem e como veem o que produzem. Sendo assim, um conceito é um modo de entender aquilo que está diante de mim e, nesse sentido, ele pode ser visto como uma indicação do que é possível haver. Logo, posso dizer que um conceito de arte influi no fazer.

A busca por um conceito deve ser visada como um modo de compreensão possível, como um passo para entender isso que denominamos arte. Não se trata de estipular uma normalização do tipo, por exemplo, "a obra deve conter tais e tais elementos", mas de estipular um conceito formal. Como expõe o filósofo Celso R. Braida em seu artigo A forma e o sentido da frase "Isso é arte", a pergunta a ser feita é: "quanto aos conceitos e esquemas básicos pelos quais nós vamos conceber a arte e pelos quais nós poderemos compreender a atividade artística e o resultado dessa atividade, as obras de arte"(2014a, p. 30). Não se trata assim de elaborar um modelo estanque, mas categorias dinâmicas pelas quais pode-se compreender acontecimentos, nesse caso, apontar para outros modos de compreensão da arte e a partir da arte. Mas para que seja possível construir um conceito de arte, torna-se

82 Trata-se de referência, às vezes, bastante rasa, e não de uma determinação

necessário perceber o caráter contingente da nossa compreensão de arte, além de recusá-la quando ela é baseada em uma arte oficial:

Para isso ser efetivo, faz-se necessário se desligar ou abandonar o dar-se do artístico de suas formas e suportes oficiais; os ofícios e as artes reconhecidas devem ser vistas apenas como figuras contingentes pelas quais se exerce e se fixa o artístico, que resta sempre como um acontecimento maior, que não se esgota nesse modo de fazer arte e nessas obras de arte que uma determinada época, uma determinada comunidade, pode aceitar como exemplares da arte. O que eu quero dizer é que o acontecer artístico, o acontecimento da arte extrapola as formações históricas nas quais ela se apresenta e pelas quais ela é apreendida; dito de modo breve, a vigência do artístico não se confunde com o que é tido como ação ou obra válida artisticamente para uma determinada época ou local (BRAIDA, 2014a, p. 31).

Trata-se de recusar nossa tendência de pensar a arte por meio das obras e modos já dados, já aceitos e sacramentados como tal, recusar aceitar algo como arte porque se comporta como os exemplares já dados e autorizados como arte. Recusar tais modos e exemplares como forma única seria uma maneira de entender a arte como um sempre possível que nunca está esgotado, de entender a arte como um constante fazer. Tal como bem afirma Celso R. Braida:

Por definição, ou quase, ao dizermos "Arte é isso e aquilo", já estamos sempre indicando os dados do que foi tido como "arte", algo ultrapassado pelo fazer artístico atual, pois o artístico mostra-se sob a rubrica da novidade, da criação e da invenção. A repetição é a ausência de arte, embora o artístico tenha como característica principal a reiterabilidade. Uma obra de arte seria sempre reiterável, um dispositivo de reiteração, não de repetição. Se alguém faz uma obra idêntica a uma outra obra de arte, ou não se trata de arte, ou se trata de uma obra diferente (BRAIDA, 2014a, p. 24).

Em coerência com a noção retórica de emulação, como reiteração de um procedimento técnico de forma engenhosa, e afirmando ontologicamente uma sempre-diferença inerente ao artístico (a impossibilidade de haver "o mesmo" ou igualdade), o autor lança bases necessárias para a formulação de um conceito que funcione de forma a dar margem para a mudança daquilo que ainda não foi feito, de forma a dar conta de possibilidades e não de negar aquilo que existe. A escolha em alinhar arte a ação, talvez indique que deve-se compreender que, como uma atividade ou evento, a arte não está limitada ou contida nos elementos normalmente analisados na formulação de teorias da arte: autor, espectador e obra de arte. Talvez seja o caso de entender esses três elementos como efêmeros em um contexto de ação, como marcadores de lugar. Seria, resumidamente, pensar a produção letrada seiscentista ou digital como um ato e as obras como artefatos para essa ação, como configurações para um agir. Pretende-se então um conceito de arte tendo-se em conta que "a arte atual impõe novos regimes ontológicos e extrapola os limites do que foi tido legitimamente como arte"(BRAIDA, 2014a, p. 49). Tal ponto de vista é necessário para poder revisar as propostas existentes e constituir um conceito adequado da arte.

3.2 O PROBLEMA DE ENTENDER ARTE COMO "BELAS-