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CAPÍTULO 00 (um ante capítulo)

3.3 TEORIAS FORA DO LUGAR

Como frutos das belas-artes, estética e sentido semântico são duas pré-compreensões nossas bastante comuns acerca da obra de arte, visíveis quando dizemos "isso é uma obra de arte porque é belo" ou quando afirmamos "isso é arte porque faz sentido" e inversamente quando negamos o estatuto de arte a algo ou "porque não agrada", "é feio" ou porque "não faz sentido". Até mesmo quando afirmamos a impossibilidade de definir arte, tendemos a nos prostrar perante o artístico – utilizar a palavra "arte" – tendo essas duas teorias por base, mesmo sem pensá-las. Ou seja, são teorias ou modos de lidar com o artístico que carregamos, mas não tematizamos e sim damos como naturais ou pré-dados (absolutos ou universais), sem nos darmos conta de que, como explicitei acima, são formulações contingentes datadas dentro de contextos histórico-pragmáticos (em geral de tradição culta europeia87), que pressupõem ontologia da arte, geralmente construídas focalizando um dado tipo de obra ou atitudes artísticas de tempos passados e que nem sempre dão conta do objeto artístico fora de seu tempo. Logo, é necessário compreender a ontologia que os perpassa para

87 Não ignoro aqui a possibilidade de outros locais terem formulado teorias

parecidas, apenas marco que a tradição que nos chegou tem uma origem europeia.

poder tirar as efetivas consequências que essas visadas teóricas propõem e se elas dão conta, realmente, do fato artístico que propõem compreender.

O que pretendo aqui é uma mudança de visada. Ora, ao se ressaltar apenas o estético (afecção do sujeito) fica difícil valorar algo que não focalize o estético. Se mudo o eixo – digamos, para o operatório/manipulatório, como é minha intenção aqui – , posso valorar outras coisas que não sejam afecção e beleza. É o caso do que já acontece quando se passa do foco sobre a afecção de um sujeito para, como empreende Danto (1981, 1986), o foco sobre o sentido semântico. Se me for permitido uma explicação metafórica para o que pretendo, seria como o caso do pato-coelho.

Imagem 32: Pato-coelho da edição de 23 de Outubro, 1892 da Fliegende

Blätter.

Temos uma figura – pato-coelho – que é materialmente um pato e um coelho ao mesmo tempo. Se escolho ver como um pato, acabo por ignorar certos traços; se escolho ver como um coelho, ressalto certos elementos e ignoro outros. O que é dizer que, a concepção de arte de que parto para compreender o fato artístico, por sua visada e pela ontologia que a sublinha e fundamenta, altera o que vejo e o que dou como valorativo. Se eu olho um artefato sempre como utensílio, por exemplo, tendo a não ver relações de proporção, contraste, inter-relações históricas, entre outros, elementos que noto quando sei que estou diante de uma obra de arte. A concepção de arte pela qual abordamos o fato artístico muda até mesmo a condição de necessidade para ter algo como arte, ou seja, o que distingue arte de não-arte. Uma concepção estética identifica ser estético – afecção de um sujeito (beleza, bem gosto, graça, agradabilidade, etc.) – como condição necessária para ser arte. Isto é, dentro da concepção estética o ser-arte de algo está fundado sobre um elemento subjetivo de ser afetado. É necessário então mudar um vício ou preconceito, dado por uma pré-compreensão da arte como afectivo para que possamos ver diferente, por meio de outro modo

de olhar que seja mais relevante para os dois períodos abordados nos capítulos anteriores.

Quando mudo esse eixo e me concentro sobre o agir manipulatório, não estou nem recusando que haja elementos estéticos em obras de arte nem recusando que elementos estéticos possam ter importância em obras de arte, mas sim recuso que toda obra de arte necessite ser estética para ser arte. Enfim, o que estou recusando é essa ligação direta "estética = arte". Ademais, estou afirmando que se há elementos estéticos, estes são secundários com relação ao artístico; que o meu modo de perceber elementos estéticos numa obra está sempre já submetido ao como concebo aquele artefato como arte dentro de um contexto institucional-pragmático e por uma série de fatores sociais, culturais e históricos (i.e. contextuais). Trata-se então de aceitar que existam obras que não são bem compreendidas por meio das noções estéticas, que fogem à compreensão de tal pressuposto e que pedem outras perspectivas.

Normalmente, quando se recusa uma análise estética – como o fizeram Martin Heidegger (1991, 2002), Hans-Georg Gadamer (2006), Nelson Goodman (1968, 1978) e Arthur Danto (1964, 1981) –, ou se passa para uma noção de verdade ou para uma teoria que tem o sentido (Sinn) como dizibilidade lógico-semântica (dentro de um princípio de racionalidade) como condição necessária para arte, como elemento distintivo entre arte e não-arte. Um exemplo é quando se diz que algo é arte porque "fala sobre X e Y" ou porque "é sobre tal e tal coisa" (um elemento conteudístico referencial). Geralmente, as obras que são difíceis de compreender pela estética – como é o caso da arte conceitual ou de certos experimentalismos –, são apreensíveis pelo dizível, sendo possível permanecer entre estas duas concepções de obra de arte por um longo tempo. Entretanto, certos exemplares artísticos irão escapar também a essa compreensão. O que é afirmar que o sentido dizível ainda é insatisfatório para compreender certas obras de arte, tornando-se necessário mudar o foco desta concepção e aceitar um "sentido" como direcional de ação contextual, possibilidade de ação ou modo de agir (i.e. aceitar um "sentido" não-linguístico) como possível para o artístico.

Mais do que uma negação da necessidade de sentido para obra de arte, trata-se de negar e alterar uma compreensão de sentido, fundada sobre uma concepção de linguagem lógico-semântica com certo grau de independência do contexto amplo, por uma concepção intencional- pragmática, via John L. Austin (1999) e John R. Searle (1984), que considera a linguagem como ato. Assim, digo que, a partir dos exemplares aqui abordados, é possível recusar a noção de sentido –

entendido como conteúdo semântico – como condição necessária para arte. Aceito, todavia, que pode haver obras de arte que não pretendam "fazer sentido", aceitando a compreensão de que existem obras que nada "dizem". Ora, não se trata de negar toda forma de sentido, mas de problematizar e rearticulá-la para um sentido não- linguístico, um sentido que seria ação, co-ação ou interação. Trata-se de pensar o dizer retórico como ato em ocasião.

Aponta-se, dessa maneira, para uma revisão crítica dessas duas formulações teóricas do conceito de obra de arte na sua condição de necessidade, diante do conjunto de exemplares analisados nos capítulos anteriores. Ou seja, é uma crítica a duas posições teóricas que pretendem dar conta de identificar o que é arte – diferenciar arte de não-arte –, mas que falham diante de grande parte das produções seiscentistas e digitais contemporâneas. Fato que me força a optar entre: 1) dar a posição teórica como inadequada diante do objeto artístico,; ou 2) negar o estatuto de obra de arte ao objeto artístico analisado. Como parto do pressuposto de que o dado da arte possui autonomia, fico com a primeira opção, no sentido de que não cabe ao crítico ou ao teórico negar o estatuto de arte a um dado exemplar (artefato que é amplamente reconhecido como arte). Cabe, isso sim, tentar compreendê-lo e também o sistema – pressuposições ontológicas – que o institui e o aceita como arte. Assim, por meu ponto de vista ontológico, recuso a possibilidade de negar o estatuto de arte a uma dada obra, e prefiro construir uma crítica ao posicionamento teórico e conceitual de arte que dá fundamento para que certas obras sejam arte e que, ao mesmo tempo, se mostram incapazes de compreender certos dados artísticos (negando, consequentemente, o estatuto de arte a determinadas obras). Logo, minha crítica e análise, a partir desse capítulo, são voltadas, sobretudo, para as concepções teóricas – seus pressupostos e consequências – e não para as obras de arte. Estas servirão para esclarecer as teses acerca do fato artístico, além de servir de base que eu possa construir minha tese. Tendo, analisado os exemplares na primeira parte, poderia tornar minhas as palavras de Randall Dipert para essa segunda parte: "What is important for me is less what the work 'is' in some physical or otherwise externally concrete sense but what our concept of the work is"(1993, p. 193), isso porque, como nota Dipert, nossa conceitualização de arte pode sempre carregar um componente normativo, afetando como compreendemos os exemplares, jamais sendo uma descrição crua de como concebemos de forma limitada objetos complexos. Assim, os exemplares dos primeiros capítulos servirão como base crítica para os aparatos teóricos a serem analisados. E é somente a partir disso que

poderei construir um conceito de arte que seja capaz de compreender os exemplares adequadamente, que será guiado pela ideia de que a obra de arte é um artefato e o artístico é pautado sobre um agir operatório88.

88A crítica às duas concepções de arte supracitadas, também implica na crítica

destas como base para a valoração de obras de arte. Ao propor um conceito instrumental de arte e obra de arte como ação e artefato, proponho outra base a partir da qual se pode valorar as obras em questão, sobretudo, pelas noções de engenho e artifício. O que deve ficar claro aqui é que não existe julgamento de valor "puro" ou a-contextual, sendo, portanto, necessário se perguntar e explicitar quais são os pressupostos e implicações das concepções de arte que fundamentam um juízo de valor.

CAPÍTULO 04

A DISTINÇÃO ENTRE ARTÍSTICO E ESTÉTICO

4.1 PROBLEMAS INICIAIS DA ANÁLISE ESTÉTICA DA ARTE