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CAPÍTULO 00 (um ante capítulo)

3.2 O PROBLEMA DE ENTENDER ARTE COMO "BELAS-ARTES"

artes"

Grande parte de nossas noções acerca da obra de arte estão pautadas nas concepções elaboradas durante os séculos XVIII e XIX como beleza, sentido, expressão, verdade, gênio, emoção, unidade das artes, autonomia, valor intrínseco das artes, etc. Essas noções podem ser subsumidas no conceito de "belas-artes", formulado durante o século XVIII e subentendido em grande parte das teorizações sobre arte empreendidas durante o século XIX. Trata-se de um conjunto de visões ainda tão culturalmente enraizado na nossa maneira de lidar com o objeto artístico que não nos damos conta de que quando falamos de "Arte" geralmente estamos subentendendo-a a partir do conceito de "belas-artes"; isso tanto no senso comum, diário, quanto indiretamente nos estudos acadêmicos (até mesmo em muitos daqueles que partem de teorias ditas pós-modernas ou contemporâneas).

O sistema das belas-artes, como bem coloca Paul Oskar Kristeller em seu The Modern system of the arts: a study in the history of aesthetics (1951, 1952), pode ser situado como parte de uma longa

cronologia de sistematização das práticas artísticas dentro da sociedade europeia. Estas incluem as tentativas renascentistas de colocar a pintura como uma arte liberal (e não uma arte mecânica como era vista), uma crescente comparação e discussões acerca da superioridade de uma prática artística sobre outra e, finalmente, a partir do final do século XVII na França, pela Querelle des Anciens et des Modernes, com uma reorganização das antigas artes liberais e arte mecânicas em novos conjuntos. Essa reorganização, com base em diferentes princípios, gerava sistemas bastante discrepantes e distantes do sistema das belas- artes como o conhecemos. Alguns desses sistemas se pautavam pelo princípio de beleza, criando conjuntos em que haveria a beleza moral, a beleza visual, etc.; outros, como o apresentado no Le Cabinet des Beaux Arts (publicado em 1690) de Charles Perrault, incluem práticas como a ótica e mecânica como belas-artes.

Em geral, o sistema das belas-artes como o conhecemos hoje foi plasmado no tratado de Charles Batteux – professor de retórica e poética –, originalmente publicado em 1746, intitulado As Belas-artes reduzidas a um mesmo princípio (2009). Dentro do projeto iluminista de união racional dos saberes humanos, Batteux pretende simplificar um todo complexo de regras de composição em um princípio único, estabelecendo um laço de união entre partes múltiplas e permitindo a criação através de um elemento somente83. Trata-se de estabelecer uma homogeneidade ontológica das artes, i.e., de dizer que as artes são todas da mesma forma, funcionam e são apreensíveis sob o mesmo conceito sem que este signifique algo distinto para cada. Trata-se de uma proposição ontológica de garantir a priori a substância única e intrínseca da arte em todas as suas etapas – produção, obra, recepção – independente de qualquer contingência, ou seja, trata-se de colocar a união antes da coisa ou do ato de fazer e forçá-la a existir em todas as situações84. Belas-artes são então

83 Apesar de ambos, Charles Batteux e Baltasar Gracián, alegarem partir da

observação como base, pode-se notar a gritante diferença com relação aos planos e sistema. Se o primeiro queria unificar e simplificar em um único princípio, o segundo pretendia dar conta do fenômeno em sua complexa pluralidade relacional. Logo, a mera pretensão à observação não implica uma metodologia igual.

84 Não se deve confundir aqui a proposta iluminista de "unidade ontológica da

obra de arte" com a possibilidade, válida, de estabelecer um conjunto comparativo por via de uma análise posterior. Na proposta de Batteux, graças à

constituídas como um conjunto de cinco artes – música, poesia, pintura, escultura e dança85 – produzidas através da imitação da bela natureza e

tendo o prazer – pelo reconhecimento da imitação da bela natureza – como sua finalidade. O princípio único da imitação da bela natureza fundamenta seu sistema numa fonte clássica – a Poética (1987) de Aristóteles (recusando, porém, a base tomista escolástica do Seiscentos) – e seu desenvolvimento é dado como um raciocínio natural, como se fosse o caminho natural da razão. Ao fazer isso, ele, à maneira iluminista, o afirma mais como um "descobrimento" "natural" do que uma formulação de um sistema – construção – artificial.

O tratado parte assim de uma base regrada clássica – simplificada ao seu limite – que prescreve o ato de produção de forma mais solta (em comparação ao que foi visto do Seiscentos ibérico e seus tratados de retórica e poética), para depois caminhar à recepção, abordando o gosto como aspecto subjetivo. Ambas, produção e recepção, se baseiam no mesmo princípio, isto é, a bela natureza como aquilo que deve ser atingido, pois, como afirma Batteux em seu prólogo: "se as artes são essencialmente imitadoras da bela natureza, segue-se que o gosto da bela natureza deve ser essencialmente o bom gosto nas artes"(BATTEUX, 2009, p. 18).

Assim, o tratado de Batteux se encontra no limiar entre um tratamento normativo do assunto (presente nas retóricas e poéticas) e uma formulação filosófica da arte que abstrai (considerada como de menor importância) a especificidade dos métodos e procedimentos técnicos de produção. O discurso acerca da arte sai da mão dos produtores, que a tomam como um fazer técnico, para cair nas mãos dos apreciadores que a tomam como recepção e prazer (WERLE, 2009). Ou seja, antecipando-me um pouco, em um cenário em que a arte se torna consumo e há uma segregação entre produtor (aquele que compreende os métodos de produção) e consumidor (agora leigo), estes últimos começam a ditar o que é a boa arte e, inclusive, o que é arte, i.e. há um credenciamento da arte pela filosofia e pelo público e arte se torna o que o consumidor cortês credencia como arte.

A partir da metade do século, o sistema de belas-artes de Batteux é incorporado ao discurso preliminar da Encyclopédie editada por Jean le Rond d'Alembert e Denis Diderot, dando ao sistema a força e

uma unidade intrínseca, nunca se trata de construir um conjunto, mas de "descobrir" uma unidade que sempre essencialmente esteve lá.

85 Estas estão separadas das artes mecânicas e das artes que conjugam prazer e

notoriedade desta publicação e, ao mesmo tempo, é também popularizado com o Dictionnaire portatif des Beaux-Arts de Jacques Lacombe (originalmente publicado em 1752). Finalmente, as belas-artes adquirem poder institucional quando se tornam a base para a fusão das diversas academias francesas na Académie des Beaux Arts.

As gerações posteriores – século XIX – tomaram o sistema das belas-artes como dado e como base para seus desenvolvimentos teóricos. O sistema é subentendido na formação da estética como disciplina filosófica, na visão da arte como expressão86, nas elaborações do romantismo e nas formulações do idealismo alemão acerca da arte. O sistema adquire tal grau de naturalidade, que foi possível, às correntes posteriores, descartar a imitação como princípio base, e ao mesmo tempo manter a união "intrínseca" entre as artes (KRISTELLER, 1952).

Essa aceitação um tanto que geral talvez seja explicável no sentido em que, como bem coloca Kristeller (1952), não se trata de uma teoria apresentada por algum autor com notoriedade e dali em diante divulgada, mas de uma noção que foi desenvolvida por vários autores "menores" (mas influentes) nos círculos culturais e salões entre Paris e Londres ao longo do século XVIII, cujas formalizações apenas estariam refletindo o clima de tais círculos culturais vigentes, algo que já seria bastante divulgado e aceito em formas um pouco mais soltas e diversas e que, eventualmente, adquire poder institucional de um modo de arte oficial.

Aqui há algo importante a ser notado: o sistema das belas-artes teria surgido a partir de um momento – início do século XVIII – em que a 1) arte se torna consumo. A literatura, por exemplo, com o forte estabelecimento da imprensa, sai da situação dos patronatos e passa a ser objeto de venda e consumo, levando os autores a preocupações de mercado e publicação. Situação na qual a própria noção de autoria se torna necessária justamente por uma questão financeira de poder lucrar com a produção (CHARTIER, 1998); 2) há uma crescente separação entre produtor e receptor/consumidor, tanto por uma profissionalização do fazer artístico quanto por uma classe que consome o objeto artístico (não há mais, como no Seiscentos, um sistema comum relacional de produção e recepção, o receptor assim não necessita conhecer os

86 A ideia que permanece é a de que as Belas-artes são unas e a única diferença

entre elas é o meio. Isso irá perdurar com a noção romântica de que todas as artes são expressão de sentido ou sentimento, mas de modos diferentes. Ou seja, posso "dizer" a mesma coisa tanto em um quadro, quanto em um poema ou em uma música.

procedimentos técnicos de produção para "degustar" uma obra); 3) há um crescente interesse de leigos por pintura e música; 4) há a publicação de textos compostos por leigos e para leigos acerca das artes; e 5) surgem inúmeros tratados comparativos entre as artes derivados justamente dessa virada para o receptor leigo. Jean-Baptiste Dubos, por exemplo, sustenta em seu Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture, de 1719, que o público educado, em lugar do artista profissional, seria o melhor juiz com relação a pinturas e poesia. Ou seja, temos um momento em que o julgamento acerca das artes passa da mão do artista construtor técnico para a do receptor ou teórico leigo. A união "intrínseca" entre as artes só é possível a partir da abrangência daquele que a observa e não a fabrica, não conhece as especificações de sua produção:

the rise of an amateur public to which art collections and exhibitions, concerts as well as opera and theatre performances were addressed, must be considered as important factors. The fact that the affinity between the various fine arts is more plausible to the amateur, who feels a comparable kind of enjoyment, than to the artist himself, who is concerned with the peculiar aims and techniques of his art, is obvious in itself and is confirmed by Goethe's reaction. The origin of modern aesthetics in amateur criticism would go a long way to explain why works of art have until recently been analyzed by aestheticians from the point of view of the spectator, reader and listener rather than of the producing artist (KRISTELLER, 1952, p. 44).

O estabelecimento do sistema das belas-artes acaba por anular a heterogeneidade técnica de cada tipo de produção artística e, por partir do ponto de vista do espectador "culto", as agrupa sobre um princípio único – imitação e beleza natural –, formulando, assim, a noção de "Arte" homogênea e única. Então, a visão estética da arte tem um início no momento em que se passa a pensar a arte, não pelas mãos de quem produz, mas pelos olhos leigos de quem a degusta. O que leva a inevitáveis erros na compreensão do objeto, pois o que está em jogo na "arte" não é mais os seus artefatos ou ações de construção, mas a visão de quem os olha. O erro não está em aceitar discutir e analisar o gosto, mas em presumir que isso é a compreensão mais adequada da arte.

Não se trata aqui de criticar a possibilidade de fusão entre diferentes artes como ato constituído no fazer – como quando se constroem objetos que usam texto e imagens ou construções visuais que também utilizam aspectos sonoros –, fato presente tanto no Seiscentos quanto em diversos tipos de produção contemporânea, mas de criticar a pretensão de uma união "intrínseca" pré-dada ao ato de produção e que pretende um nivelamento ou apontar para a irrelevância técnica entre as artes ao abordá-las como sendo todas desdobramentos de uma mesma substância, independente das diferenças de sua produção. Ou seja, é uma crítica a uma visão de homogeneidade ontológica das obra de arte e ao fato de considerá-las por meio de uma posição teórica que pretende tomar o ponto de vista do espectador como o ideal, não uma crítica às obras. Não se trata então de dizer que é impossível um conceito de arte. O ponto central, neste momento, é criticar a noção das belas-artes que pensa as artes como manifestações diferentes de uma mesma unicidade. O objetivo é desenvolver, ao longo da tese, uma noção que contemple a pluralidade ontológica da obra de arte.

O que importa notar aqui é que a noção de arte como uma coisa única, tendo por consequência um único modo de operar – i.e., sua homogeneidade ontológica –, é uma formulação teórica bastante recente. O problema está quando tal sistema é aceito como verdade atemporal e absoluta, quando em realidade se trata de uma elaboração, uma construção teórica, a partir de um ponto de vista e de uma situação material pragmática das obras bastante específicas. Se assim a tomamos, pode-se dizer que talvez essa visão de arte ou belas-artes, tão fortemente enraizada em nossa cultura, é datada e limitada para a compreensão das obras que não foram produzidas no seu período de maior vigência, isto é, o século XVIII e XIX. Pode-se afirmar que aplicar os conceitos base desses sistemas dos séculos XVIII-XIX em momentos históricos anteriores à sua elaboração teórica – assumindo estes sistemas teóricos como universais – pode ser considerado um anacronismo, e que aplicá- las na arte contemporânea irá levar a uma má compreensão do objeto ou uma recusa explícita destes como obras de arte.

No caso específico, seria dizer que a noção de belas-artes não dá conta ou é uma forma bastante limitada de compreensão das obras seiscentistas e das obras digitais contemporâneas, pois estas, tendo sido produzidas fora do seu escopo de compreensão, com materiais, métodos e meios distintos daqueles em vigor durante o período, têm como uma de suas características principais evidenciar e necessitar de uma compreensão de sua produção e funcionalidade – técnica operatória –

para que haja uma apreensão da obra. Tanto a retórica, como conjunto técnico que entende os mesmos preceitos técnicos para a apreensão e julgamento das obras, quanto as produções digitais que subentendem um conhecimento de mecanismos operacionais para a utilização e julgamentos de valor são incompatíveis com um sistema teórico que parte da nítida divisão entre produtor e público espectador, que se pauta pelo gosto do receptor e que evidentemente afasta a compreensão da arte do seu extrato de produção, de um fazer e ação manipulatória.

A minha escolha e proposta teórica é a de deslocar a arte dessa noção de belas-artes, na forma de suas duas principais e abrangentes proposições, isto é, da identificação da arte como sensibilidade estética e da identificação da arte como sentido semântico apreensível, e tentar pensar as artes como vinculadas à produção técnica e a um sentido que se perfaz na ação, ou seja, trata-se de considerar a obra como um artifício e afirmar um sentido que é ato. Continua-se, adiante, primeiro com a crítica e, depois, com a construção.