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PARTE I: HISTÓRIA DO CONCEITO DE REVOLUÇÃO BRASILEIRA E CLASSES

1.3 REVOLUÇÃO BRASILEIRA E CLASSES DOMIANTES: DA QUARTELADA AO

1.3.2 AMPLIAÇÃO DO REGIME DEMOCRÁTICO E ESTATIZAÇÃO DA

Nelson Werneck Sodré17 publicou, no ano de 1958, durante o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck, Introdução à revolução brasileira, um livro de grande importância para o debate público em torno da revolução brasileira. Desenterrou, fazendo novo uso, o velho conceito criado por Urias da Silveira, o qual mais tarde foi retomado por tenentistas e comunistas nas décadas de 1920 e 1930. Um conceito que, até então, era compreendido de forma eminentemente golpista, insurrecional e épica.

Vinte anos após o Estado Novo, durante o governo de Juscelino Kubitscheck, o conceito de revolução brasileira foi retomado no debate intelectual e político graças a Sodré, que usa o conceito de forma inovadora junto às forças políticas de esquerda, ao tirá-lo da cartola, fazendo uso processual. O livro representa um lance importante no debate intelectual na linha da Declaração de Março, pois também suscitou um conjunto diverso de reações e de respostas, em razão do uso que faz do conceito de revolução brasileira. Pois esse uso, como lembra Skinner (2007a), tem implicações morais e políticas, no sentido de transmitir valores, fomentar e legitimar novas condutas.

Sodré (1958) endereça seu livro para as forças da revolução, a vanguarda do povo, os estudantes, operários, militares, campesinato e a burguesia nacional interessada nos problemas nacionais. Pretendia questionar o uso golpista do conceito de revolução brasileira feito por tenentistas e comunistas. Diz: ―[...] procuramos realizar uma tentativa de esclarecimento político, no sentido de cooperar para a aceleração do mencionado processo [...]‖ (p.3). Almejava sustentar teoricamente a frente única. Talvez por isso, Sodré apostou nas frações da burguesia nacional comprometida com problemas nacionais como meio de justificar a frente única até 1964.

17 Nelson Werneck Sodré (1911-1999) foi um militar, historiador e crítico literário de orientação marxista e nacionalista membro do PCB desde a década de 1940, que publicou 58 livros e centenas de artigos. Fez carreira militar e somou com as forças políticas nacionalistas e comunistas no interior do exército, participando como diretor cultural do Clube Militar na gestão do general Newton Estillac Leal, a qual atuou na Campanha do

Petróleo é Nosso, defendendo a tese do monopólio estatal, engajamento que custou a Sodré transferências para

bases do exército nos rincões do Brasil. Também foi professor de história militar da Escola de Comando e Estado Maior e professor do Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Colaborou como crítico literário para os jornais Correio Paulistano e Última Hora. Foi professor visitante da universidade de Brasília (UnB). Em agosto de 1961, o historiador militar ascendeu na carreira militar a coronel, último posto dos Oficias Superiores na carreira do Exército. Duas semanas após o golpe de 1964, porém, Sodré teve os seus direitos políticos cassados por dez anos pelo ―Comando Supremo da Revolução‖, que expurgou nas forças armadas militares nacionalistas e comunistas. Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. Nelson Werneck Sodré (depoimento); 1987. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV SERCOM/Petrobrás, 1988.

Nas vésperas do golpe, Sodré (1976) publica um livro no qual discute o papel da burguesia na revolução brasileira, investigando a particularidade do desenvolvimento histórico desta classe social no Brasil. Mostra que a mesma nasce do ventre das classes dominantes e do movimento de imigrantes a parir da segunda metade do século XIX e início do XX. A sociedade brasileira, ainda no século XIX, era influenciada pelas metrópoles europeias, era uma economia de base escravista e exportadora que convivia com relações pré- capitalistas, feudais e semi-feudais no grande território brasileiro. A queda do escravismo como regime de produção teria levado a uma regressão feudal, uma vez que não existiam relações capitalistas de produção. Assim como o capitalismo industrial é tardio no Brasil, a burguesia também é tardia e, para se afirmar como classe social dominante naquela atualidade, ela tinha de enfrentar suas contradições com o imperialismo e com o latifúndio, obstáculos para a burguesia brasileira tornar-se classe para si.

Segundo Sodré (1976) o impedimento do artesanato e da manufatura pela Metrópole teria impossibilitado um processo de gestação da classe semelhante ao europeu. Pelo fato de a burguesia brasileira ter surgido na fase do imperialismo e em razão de haver uma articulação histórica do imperialismo com o latifúndio no Brasil, Sodré, apesar de algumas reservas, acreditava que era do interesse da burguesia nacional, representada pelo governo Goulart, promover as reformas de base quando, na verdade, a burguesia nacional conspirava contra Goulart, conforme demonstrou Dreifuss (1981).

Na historiografia prevaleceu a visão caricatural dessa aliança. Sodré (1979), porém, reconhece que a burguesia entre as forças populares e o imperialismo prefere se aliar ao elo mais forte. Em vez de lutar pelo desenvolvimento capitalista independente da dominação dos EUA, a burguesia industrial brasileira optou pela associação com o imperialismo, escolha que não foi uma fatalidade ou necessidade histórica, conforme Moraes (2000).

Embora fosse um quadro fechado do PCB desde os anos 1940, as ideias de Sodré se aproximam das diretrizes oficiais do PCB somente após 1956. Ainda assim, não dá para reduzi-las à visão presente nos documentos oficias do partido. A diferença entre Sodré e a concepção terceiro internacionalista do PCB existe. Sodré é um dos grandes intérpretes do Brasil, não sucumbe ao mecanicismo presente nos documentos do partido após ser banido da ordem burguesa, os quais pressupunham a revolução como um golpe de Estado, insurreição ou episódio épico. Ao defender a democracia e a frente única, Sodré não reduz a política a

uma percepção golpista, economicista e instrumental como fizera o PCB entre 1928 a 1943, e 1947 a 1956. No dizer de Tragtenberg (1999, p.IX):

Obedecendo a um centro único que não considerava a realidade específica de cada país, o PCB oscilava entre ir a reboque do empresariado, como em 1945-47, ou apostar em aventuras militaristas como a chamada revolução de 1935, último suspiro do tenentismo, do prestismo e do estalinismo no país.

Conforme Segatto (1995, p.95), o conceito de revolução do PCB ―estruturou-se da seguinte forma: etapa = nacional e democrática; estratégia = anti-imperialista e anti-feudal e tática = variável segundo as inflexões políticas periódicas‖. A expressão ―etapa‖ implicaria as noções retiradas do vocabulário militar de estratégia e tática. A ‗questão nacional‘ ganhava proeminência ante a ‗questão democrática‘. Segundo Segatto (1995), mesmo depois da

Declaração de Março, o partido subordinava a democracia à estratégia, como expediente

tático. Até aqui concordamos com o crítico, porque os marxistas anuem minimamente que a democracia é o melhor campo de batalhas para o socialismo. O problema levantado por Segatto, é que o PCB mantinha no horizonte a visão da revolução ‗explosiva‘, da ‗ruptura violenta‘, na qual a vanguarda e o partido revolucionários tomariam de assalto o Estado burguês para instituir a ditadura do proletariado, conforme a experiência soviética.

Como já observou Moraes (2000), Sodré é mais refinado do que as concepções manifestas pelo PCB em seus documentos, sobretudo nos períodos de radicalização do partido. Para Sodré, a democracia está em contraposição ao poder político dos latifundiários e dos agentes do imperialismo. Precisa ser instaurada na realidade do país e não se reduz a mera forma de dominação de classe da burguesia. Tanto, que em seu livro, Sodré destacava a democracia como critério para a consecução da revolução brasileira.

Como Revolução Brasileira entendemos o processo de transformação, que o nosso país atravessa, no sentido de superar as deficiências originadas de seu passado colonial e da ausência de revolução burguesa no seu desenvolvimento histórico. Tal processo, que se opera diante de nós com a nossa participação, tende a superar os poderosos entraves que se antepunham, e ainda hoje se antepõem em parte ao desenvolvimento do país. Discriminando as origens das forças interessadas no processo nacional, e mostrando o que existe de negativo no quadro brasileiro, procuramos realizar tentativa de esclarecimento político no sentido de cooperar com o mencionado processo, que tem por fundamento a manutenção e ampliação do regime democrático, de um lado, e a solução nacionalista dos problemas, de exploração econômica de nossas riquezas, de outro lado (SODRÉ, 1958, p.3).

Sodré resgata e usa o conceito de revolução brasileira porque o mesmo fora criado pelas forças progressistas nacionais em situações históricas anteriores, por republicanos centralistas e tenentes. O utiliza, porém de modo distinto, para assinalar a necessidade de uma transformação substantiva em relação ao nosso passado colonial. Para apontar a necessidade de suplantar o que há de negativo no quadro brasileiro ao longo de séculos, quebrar os obstáculos que se antepõem ao desenvolvimento de um capitalismo nacional.

Sodré faz um uso processual do conceito. Antes de descrevê-lo começa tratando da evolução das classes sociais no Brasil, desde a revolução comercial, posição de Portugal e feitorais (―fase proto-histórica‖), até seu presente histórico. Em seguida deslinda a evolução da economia, partindo da era colonial até chegar à estruturação da economia nacional de seu presente histórico. Remete também à evolução da cultura, da cultura colonial ao esboço de uma cultura nacional. Trata da evolução militar, com ênfase na formação do exército nacional e a participação desta instituição nos principais eventos políticos da sociedade brasileira, capítulo suprimido na segunda edição do livro. Sodré também analisa a evolução racial da sociedade, destacando a miscigenação.

Para Sodré a revolução brasileira é um processo tardio de revolução burguesa, no qual os latifundiários e elementos da alta burguesia se colocam do lado da contrarrevolução, e a burguesia nacional, a pequena burguesia, os estudantes, o campesinato e o proletariado se colocam de outro lado. A revolução brasileira teria se iniciado em 1930, quando surgem as bases para a formação de uma economia nacional. O diagnóstico situa Sodré no conjunto dos intelectuais que reconhecem a revolução de 1930 e os governos de Getúlio Vargas como fatores de transformação da sociedade brasileira de agrária para industrial.

Sodré (1962) acreditava que a revolução burguesa brasileira não havia sido concluída, estava em disputa entre as classes dominantes. Dai que seu encaminhamento deveria consistir em romper com imperialismo e com o latifúndio para ―tornar o Brasil um país capitalista nacional e democrático, contra a ―economia dependente, com estrutura de produção entravada ainda pelos remanescentes coloniais‖ (SODRÉ, p.32). A luta democrática, pacífica, pelo poder de Estado envolvia, além dos partidos políticos, outras organizações, como sindicatos, organizações estudantis, forças armadas, igrejas e a influência ponderável no campo, além da reação do imperialismo.

Os critérios usados por Sodré (1958, 1962, 1963) para pensar o conceito de revolução brasileira são: a manutenção das liberdades democráticas para impedir que a reação

conflagrasse a contrarrevolução, a libertação do Brasil do imperialismo, nacionalizando o capitalismo por via do Estado e a emancipação do latifúndio, através da reforma agrária com distribuição da propriedade em pequena propriedade, para integrar latifúndio na economia de mercado. Era, pois, ―uma revolução democrático-burguesa, mas de tipo novo, em que a componente burguesa não terá condições de monopolizar os proventos da revolução‖ (SODRÉ, 1962, p.39) Sodré, assim como o PCB, defendia o protagonismo do proletariado na frente única, apesar de considerar frações da burguesia como aliadas.

A primeira edição do livro Introdução à revolução brasileira é de 1958 e a segunda de 1963. Nesta última, Sodré retirou o capítulo relativo à ―Evolução Militar‖ e acrescentou dois novos: um sobre a evolução política, Raízes históricas do nacionalismo

brasileiro e outro sobre evolução popular, Quem é o povo no Brasil? É neste texto, primeiro

publicado em 1962 como segundo volume da coleção Cadernos do Povo Brasileiro, que Sodré desenvolve a questão democrática. Admitindo a premissa de Engels, conforme a qual a democracia é o melhor terreno de luta para alcançar o socialismo, Sodré recusa a visão tenentista, golpista e sectária presente no conceito de revolução brasileira, ao considerar a revolução brasileira como um processo histórico que tem como um de seus fundamentos a manutenção e ampliação do regime democrático. Para Sodré (1962, p.35)

[...] a manutenção das liberdades democráticas permite o esclarecimento político, e o esclarecimento político permite a tomada de consciência pelo povo, e a tomada de consciência pelo povo permite a execução das tarefas progressistas que a fase histórica exige.

Faculta mudar a correlação de forças, mobilizar as forças populares através do trabalho de base, de esclarecimento político. O regime democrático é indispensável, pois assegura a liberdade de pensamento, de reunião e de associação.

Por mais precário que fosse o regime democrático brasileiro, Sodré argumenta que o mesmo podia conduzir as classes dominantes a derrotas e a situações difíceis, como havia ocorrido em 1961 com a renúncia de Jânio Quadros. Para conter as transformações exigidas pelo povo, Sodré denuncia as forças articuladas contra a democracia brasileira. Segundo Sodré, o conceito de povo é político, no sentido de criação de uma vontade política, varia conforme tempo e lugar, evoluindo de acordo com a mudança da sociedade.

Na situação brasileira do pré-1964, o povo seria constituído pelas frações da pequena, média e alta burguesia não comprometida com o imperialismo, facções burguesas supostamente defensoras de valores democráticos e nacionais, pelo campesinato, pelo semi- proletariado e, sobretudo, pelo proletariado. O povo é uma categoria que une indivíduos com posições diferentes no processo produtivo. O povo se divide em vanguarda, consciente, e massa ou parte do povo que tem pouca ou nenhuma consciência de seus interesses, que não se organiza para defendê-los. Cada situação histórica contém suas tarefas progressistas.

Ademais, em relação à questão democrática, Sodré argumenta que existe uma exclusão histórica do povo no poder de Estado no Brasil. Desde a Constituição de 1824 até a

Constituição de 1946, diferentes critérios foram usados pelas classes dominantes para

restringir o direito de voto no Brasil: riqueza, proibição de ‗cidadãos ativos‘; adoção do sufrágio universal, em 1889, com restrição de menores, incapazes, analfabetos e das mulheres. No interregno democrático, a Constituição de 1946 manteve a exclusão dos analfabetos. Neste momento, as classes dominantes tiveram grande preocupação com a crescente participação popular, excluíram o PCB do jogo político, mantiveram o controle dos sindicatos e perseguiam os comunistas e os nacionalistas de esquerda.

No ano de 1962, Sodré diz que em cada três brasileiros, dois eram privados de votar pela legislação. Questiona a proibição do voto analfabeto como produto do colonialismo e da incompatibilidade das classes dominantes com as mais rudimentares formas de democracia.

Apesar de manter uma posição teórica marxista, Sodré buscava dialogar com autores partidários de credos diferentes dos seus, em nome de interesses comuns. Essa postura ilumina a participação de Sodré no ISEB e, entre os anos de 1958 a 1963, no conselho técnico da Confederação Nacional do Comércio, ao lado dos ―quadros mais destacados da classe dominante‖ como Octávio Gouveia Bulhões, Roberto Campos, Eugênio Gudin, Gustavo Corção, além de outros ―personagens menores‖ (Sodré, 1992). Foi um autor que defendia a frente única ante o esquerdismo, ou o sectarismo. Era partidário de unir forças diferentes em favor de um interesse ou um objetivo comum, lutar ao lado de pessoas das mais diversas convicções.

Porém, ao defender uma aliança com a burguesia nacional, a proposta de revolução brasileira de Sodré, assim como a do PCB, não implicava a morte dos filhos de Brutus, mas o fortalecimento da burguesia nacional. Se bem que o latifúndio e o imperialismo

dominavam antes de 1930 e eram combatidos teórica e politicamente em seus escritos. Mas, como o próprio Sodré mostrou, a burguesia brasileira nasceu das classes dominantes agrárias, do latifúndio e do capital mercantil, logo, assegurar a participação desta classe na Frente Única implicava manter o poder daqueles que se beneficiavam no regime anterior.

Apesar destas ressalvas, o livro de Sodré tencionava facultar o processo de revolução brasileira pelo esclarecimento dos agentes. Como nas manifestações de rua dos trabalhadores e dos estudantes, os fotógrafos e os cinematógrafos se posicionam ou do lado da polícia ou do lado da multidão. Os que ficam do lado das massas arriscam-se a tomar tiros de borracha, respirar gás lacrimogêneo e ouvir estridentes bombas de efeito moral. Também os intelectuais, ao adotarem certas crenças e assumirem certos compromissos, se posicionam em relação às principais questões de seu tempo (Lukács, 1968). Não podia ser diferente com o conceito de revolução brasileira, que exige um posicionamento de seus usuários, como ensina Koselleck (2012). Apenas um deles passou incólume ao golpe político em 1964 desferido em nome dos interesses das classes dominantes, nacionais e estrangeiros, o antropólogo Charles Wagley.

1.3.3 PROCESSO GLOBAL DE MUDANÇAS ESTRUTURAIS E