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PARTE II: REVOLUÇÃO BRASILEIRA E CLASSES DOMINANTES NO

1.12 TERRA DE CONTRASTES: UMA CRÍTICA AOS DOIS BRASIS

O livro de Jacques Lambert (1967) é elucidativo para a problemática vigente no pensamento sociológico brasileiro na década de 1950, em torno do conceito de revolução brasileira, associado à questão do desenvolvimento e dos obstáculos à modernização. Roger Bastide56 (1980), porém, é o autor que, já em 1957, questiona as teses de Jacques Lambert sobre o Brasil ao expor sua própria interpretação do país, uma terra de contrastes, mas destituída de dualismos cartesianos.

Bastide (1980) em seu principal livro de interpretação do Brasil, defende que os contrastes de diversas ordens (econômico, social, político, cultural), a justaposição de diversas épocas históricas, oposições entre os diferentes brasis, ou as diferentes civilizações que formam o país (a do gaúcho no sul, do vaqueiro no norte, do vaqueiro no sertão, do açúcar no

56Roger Bastide (1898-1974), de origem protestante, nasceu no interior da França, país católico e tornou-se cientista social pela faculdade de Letras de Bordeaux e pela Sorbonne. Foi membro da "missão francesa" contratada para núcleo do corpo docente da Faculdade de Filosofia de São Paulo, onde lecionou de 1937 até 1953, na Universidade de São Paulo. Cf. Queiroz (1989)

litoral canavieiro, do fazendeiro, do industrial, do ―negro‖, do imigrante) envolvem choques, a complementaridade e interpenetração entre os diferentes brasis. Conforme o autor, a unidade da nação repousa em seus problemas fundamentais, os mesmos em toda parte, impostos pela geografia e pelo legado histórico.

Bastide (1980) sugere que a oposição entre o Brasil arcaico e o Brasil moderno é muito mais complexa do que imagina Lambert, porquanto como mostrara Gilberto Freyre, existe interpenetração entre civilizações heterogêneas. Ademais, nota Bastide, choques entre os diferentes tipos de Brasil (movimentos separatistas, revoltas sangrentas, sertão contra litoral, cidades senhoriais contra os portos do comércio, aristocracia rural contra comerciantes portugueses).

Bastide (1980) critica o quanto o etnocentrismo e o eurocentrismo, presente nas teorias da modernização e do desenvolvimento, em voga no período, desqualificam as populações brasileiras caboclas, nordestinas, indígenas e afro-descentes, sem conhecer de perto e em profundidade a vida e os problemas dessas populações. Estava imune ao olhar etnocêntrico de Lambert e da época.

Bastide (1980) mostra em seu livro a riqueza cultural dessas populações e os processos de submissão conforme os diferentes ciclos econômicos que marcaram a vida nacional. Apresenta a riqueza do folclore dos grupos étnicos brasileiros, dos mitos, das religiões afro-brasileiras e ameríndias. Do mesmo modo, demonstra a riqueza da literatura, dos barrocos nordestino e mineiro. Salienta que, subjacentes aos modos de vida arcaicos, existem pessoas com produção cultural de inestimável valor. Não se trata de populações atrasadas que precisavam ser forçadamente uniformizadas pelo desenvolvimento do capitalismo industrial. Se elas resistem ao desenvolvimento, o problema não estaria nessas populações, mas no próprio desenvolvimento e na irracionalidade da razão ocidental.

Notadamente, há um diálogo crítico com Gilberto Freyre, com as teorias da modernização e com os desenvolvimentistas. Em vez de um povo apático e conformista, Bastide (1980) nota que existiram choques em nossa história; assim como a visão de um índio e de um ―negro‖ preguiçosos assenta-se em preconceitos tradicionais. Ao resgatar os agentes menosprezados pela história oficial e apresentá-los em seus contextos, o autor desfaz diversos mitos relacionados ao determinismo geográfico, e climático.

Relativiza os preconceitos da época e fornece subsídios para questionar o processo de modernização e desenvolvimento, em nome da preservação de culturas e da criação de condições básicas de vida para a população, que é diversa e desigual. Bastide (1980) vai além do desenvolvimentismo, ao colocar o foco nos problemas humanos e sociais

como: saúde, demografia, desigualdade, concentração de riqueza, escolaridade, saúde, problemas sanitários; e não apenas questões diretamente relacionadas à industrialização.

Para Bastide (1980, p.15), o Brasil possui singularidades que dificultam o trabalho dos intérpretes.

Todas as noções que [o sociólogo] aprendeu nos países europeus ou norte- americanos não valem aqui. O antigo mistura-se com o novo. As épocas históricas emaranham-se umas nas outras. Os mesmos termos ―classe social‖ ou ―dialética histórica‖ não têm o mesmo significado, não recobrem as mesmas realidades concretas. Seria necessário, em lugar de conceitos rígidos, descobrir noções de certo modo líquidas, capazes de descrever os fenômenos de fusão, ebulição, de interpenetração, noções que se modelariam conforme uma realidade viva, em perpétua transformação. O sociólogo que quer compreender o Brasil, não raro precisa transformar-se em poeta.

O rígido dualismo de Lambert, por sua natureza cartesiana e estática, portanto, não daria conta de uma realidade repleta de contrastes e interpenetrações. Uma realidade complexa que desafia as noções trazidas pelos brasilianistas. As preocupações teóricas de Roger Bastide em torno da cultura, da arte e das religiões afro-brasileiras distanciam-no das questões tratadas pelo conceito de revolução brasileira na época.

Em uma elogiosa resenha publicada no jornal O Estado de S. Paulo, Florestan Fernandes (1958, p.36) afirma que Brasil: terra de contrastes é um livro interessante, escrito com vivacidade e propósitos didáticos, possui senso de equilíbrio. Elabora um ―balanço apreciavelmente ponderado e justo da situação histórico-cultural do Brasil‖, chegando a uma visão global e cuidadosa das múltiplas dimensões da sociedade brasileira. Segundo o autor, valendo-se de diferentes perspectivas e do relativismo científico, Bastide salienta diversos fatores que possuem importância na explicação das situações histórico-sociais.

Não é fácil escrever um livro sobre o Brasil. As melhores descrições conseguem retratar essa ou aquela camada social, esta ou aquela região, esta ou aquela época. A maioria dos autores procede como se o Brasil coubesse por inteiro, em algumas páginas, mais ou menos felizes. (FERNANDES, 1958, p.36)

Fernandes (1958) compara o livro de Bastide com os retratos das ―cidades mortas‖ de Monteiro Lobato, destacando que Brasil: terra de contrastes não tem a mesma atitude de desencanto em relação às pessoas e à vida difícil que levam, pois Bastide tem a percepção do processo social como histórico e modificável. Além disso, segundo Fernandes (1958, p.36), como Lobato, Bastide não se enredou ―na teia de aspirações médias, que desculpam às pequenas inconsistências, disfarçam as grandes desilusões ou compensam as

frustrações inevitáveis, em um mundo social demasiado tosco para as ambições europeizadas (ou ianquezantes)‖. Fernandes também elogia a discussão levantada por Bastide sobre a precisão e dificuldade de uso dos conceitos elaborados em outras realidades para pensar o Brasil, enaltecendo a solução proposta por Bastide de buscar ―noções líquidas‖, capazes de descrever a mistura entre o velho e o novo, o tradicional e o moderno.