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FOLCLORISTAS, INTELECTUAIS REGIONALISTAS E CONTRAPONTO DE

PARTE II: REVOLUÇÃO BRASILEIRA E CLASSES DOMINANTES NO

1.10 FOLCLORISTAS, INTELECTUAIS REGIONALISTAS E CONTRAPONTO DE

DE FLORESTAN FERNANDES

Conforme visto, Gilberto Freyre distinguiu os valores culturais e caracteres considerados essenciais, singulares da civilização brasileira. Na concepção culturalista do autor esses valores são fundamentais para a manutenção do equilíbrio social, uma vez que, no plano teórico, a organização social é subsumida à ordem dos valores culturais, como se aquela resultasse destes. Freyre defende valores nacionais: amaciamento das relações conflituosas ou jeitinho brasileiro, patriarcalismo, gerontocracia, miscelânea de costumes, hierarquia, contemporização, conciliação, revolução–conservadora, mestiçagem de raças, democracia

53 Fonte: http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/estacao-primeira-de-mangueira/1962/2/ Acesso 02/06/2015.

racial. Cria uma imagem oficial do Brasil, adotada pelo Estado Novo: do país mestiço, do samba, do futebol, onde as relações sociais e raciais são democráticas.

Os intelectuais regionalistas e folcloristas, em 1947, organizaram-se em defesa de causas como o folclore brasileiro, ameaçado pelo processo em curso de urbanização e de industrialização, principalmente na região sudeste e nas capitais do país. Reagiram ao processo de revolução burguesa brasileira. Por esta característica os intelectuais folcloristas convergem com as teses do nacionalismo conservador dos anos 1920-1930, para o qual, a retomada da cultura nacional, das tradições e dos valores do passado era um modo de definir, reconhecer e distinguir a sociedade brasileira das demais.

No entanto, como ponderou Bastos (2012), essa visão de Freyre que enaltece a cultura tradicional contribui para a reprodução dos arranjos de dominação existentes na sociedade. No contexto em que Rui Barbosa, inspirado nas ideias da Escola Nova, influenciava as mudanças no ensino na década de XX e, logo depois, de criação da Associação Brasileira de Educação, em 1924, quando se discutia a ampliação do sistema educacional e alfabetização da maioria da população, Gilberto Freyre ainda jovem, se posicionava contrário.

Em um de seus artigos no Diário de Pernambuco (de nove de setembro de 1923), conforme Bastos (2012), Freyre questiona a alfabetização popular como uma ―resolução tensa‖, ―necessária ao progresso‖; embora, ―como elemento homogeneizador, demolindo ricas sobrevivências culturais que, destruídas, empobreceriam sobremaneira o legado da civilização universal‖. Democratização da cultura e educação popular, na visão de Freyre, provocaria efeitos daninhos aos que ―por natureza são mais felizes obedecendo sem esforço‖, uma vez que alfabetização implicaria o cinzento, o fim dos contrastes e de ―ricas sobrevivências culturais‖.

Os folcloristas reproduziam a imagem do Brasil construída por Gilberto Freyre, a ―fábula das três raças‖, enaltecendo a percepção da ―cultura brasileira‖ como o resultado de desejáveis contrastes e antagonismos em equilíbrio, como matéria prima para a integração do nacional, do regional, do racial. Conforme Vilhena (1997), Gilberto Freyre foi nomeado membro da Comissão Nacional do Folclore - instituição vinculada ao Ministério das relações Exteriores e à UNESCO, que abrangia em suas comissões internas quase todos os estados brasileiros –, porém não comparecia às reuniões.

Segundo Vilhena (1997), participaram da Comissão Nacional do Folclore além de figuras como Renato de Almeida, Édison Carneiro, Manuel Diegues Junior, Joaquim Ribeiro e Cecília Meireles, muitos intelectuais regionais, vinculados aos Institutos Histórico

Geográficos (IHGB), às Faculdades de Filosofia e às Academias de Letras municipais criadas

no interior do Brasil. Eram ―intelectuais polivalentes‖, destituídos da especialização proporcionada pelas recém-criadas universidades. O movimento folclorista, conforme Vilhena e Cavalcanti (1990), ocorreu no Brasil entre 1947 e 1964, tencionava a institucionalização dos estudos sobre folclore, a criação de um órgão estatal em defesa do folclore, a realização de ―missões assistenciais‖ e a promoção do popular e do regional na formação da ―identidade nacional‖.

O folclorismo, segundo Vilhena (2007), pretendia ―mostrar a nação a si mesma‖, como portadores de uma ―missão patriótica‖, os folcloristas buscavam encontrar a ―brasilidade‖ nos valores que supunham subjacentes às manifestações folclóricas; valores do tipo cordialidade, integração regional etc. Havia um interesse político e ideológico de construção da nacionalidade brasileira através da ênfase no particular, no local, no regional, nas velhas tradições populares brasileiras. Mediante fatos como a modernização, a imigração, a influência estrangeira, a ―cultura nacional‖ estaria em processo de elaboração, competindo a esses intelectuais resguardar nossa ―cultura tradicional‖, produto da aculturação ainda vigente dos elementos provenientes das três raças formadoras.

Os folcloristas reivindicavam a construção de instituições de estudo e preservação do folclore brasileiro. Pretendiam fazer do folclore uma ciência, no interior das ciências sociais, a fim de acabar com o amadorismo vigente nas coleções. Almejavam introduzir disciplina escolar sobre o tema no ensino primário e nas Faculdades de Filosofia. Além de reconhecer o caráter conservador do movimento, o qual, por exemplo, via como necessárias as dissonâncias que opõem as regiões, o ―povo‖ e a ―elite‖, Vilhena defende que esses ―intelectuais de província‖, abandonaram o projeto de história das elites dos IHGB‘s, para se dedicarem à cultura de sua região, porém sem êxito porque estiveram organizados muito próximos ao Estado.

A percepção ou o diagnóstico dos folcloristas, que justificou a criação da

Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, envolvia a ideia de ―urgência,‖ de necessidade

de ações rápidas por parte do Estado para preservar as tradições folclóricas nacionais que desapareceriam com o processo de industrialização e urbanização em curso. Pode-se dizer que tais intelectuais tradicionais e regionalistas respondiam às demandas de poder do bloco agrarista, momentaneamente em crise, no período de 1945 a 1965.

Florestan Fernandes, como teórico crítico envolvido com valores de emancipação, liberdades individuais, igualdade, foi um militante da educação popular e envolveu-se em contendas com os folcloristas. Apesar de valer-se de diferentes bases teóricas, ao longo de sua trajetória para pensar o problema da educação no Brasil, Florestan foi um bravo defensor da escola pública de qualidade (Patto, 2000).

Evidentemente, Fernandes não concebia a educação como panacéia para os problemas brasileiros e tampouco se deixava iludir pelo ideal de educação como simples apropriação de instrumental técnico para a eficiência do trabalho Concepção avessa à teoria crítica, segundo Adorno (1995). Ao invés disso, em um contexto marcado pelo analfabetismo de cerca de cinquenta por cento da população e pela proibição do voto do analfabeto, considerando as condições objetivas do país, defendia de modo intransigente a visão de mundo democrática e a educação popular pública como um meio de despertar a consciência social dos agentes da transformação que precisavam ser construídos. Ademais, Fernandes foi um dos pioneiros a defender e fundamentar a necessidade da sociologia na escola básica, na ocasião do Primeiro Congresso Brasileiro de Sociologia, é um dos raros grandes intelectuais brasileiros a combater o ensino privado e confessional no Brasil.

Para Fernandes (1961), é um erro estudar as manifestações folclóricas fora do contexto social. Ao estudar o folclore, tinha em vista o ―destino histórico-social‖ da herança cultural tradicionalista, na qual se assentavam a dominação senhorial e patrimonialista.

No passado brasileiro, a concepção de mundo tradicionalista atravessava todos os estratos sociais, fazia-se presente nas atitudes e comportamentos sociais do ―escravo‖, do ―plebeu‖ e do ―nobre‖.

Segundo Fernandes (1961) depois da Independência, através de longo processo histórico-social, a concepção tradicionalista do mundo foi se desagregando, embora remanescesse em grupos das camadas populares. No caso do folclore infantil, ao estudá-lo, Fernandes (1961) descobre que os folguedos resguardavam valores sociais obsoletos e exerciam influência na socialização das crianças. Ditos e provérbios, ademais, preenchiam funções sociais conservantistas, contribuindo para preservar formas de sentir, pensar e agir tradicionais.

Não se trata de uma simples recusa do tradicional em nome do moderno. Fernandes (1961) pensa o folclore na totalidade social, no conjunto do processo de revolução social que vem se operando no Brasil desde a Independência e se acentua na Abolição. Fernandes questiona a etiqueta de relações sociais pressupostas no folclore, as quais são fundadas em direitos e deveres reconhecidos tradicionalmente. No passado histórico

brasileiro, uma etiqueta era construída com base na escravidão e na servidão para regular tratamentos recíprocos, entre agentes desiguais e de forma vertical.

Tratando-se de um teórico crítico, a explicação de Fernandes assenta-se na história, mas sem desconsiderar a estrutura, concebe o passado brasileiro de uma perspectiva processual de média e longa duração. Defende valores substantivos como liberdade, igualdade, justiça, direitos e democracia.

Segundo Fernandes (1961, p.31), no contexto de sua contenda com os folcloristas,

As tendências conservantistas, nascidas nos centros rurais, revelam-se inócuas e improfícuas. Em regra, assumem polarizações reacionárias e mostram-se incapazes de conjugar a preservação de valores essenciais com a renovação e o ―progresso‖. As mesmas tendências, fomentadas deliberada ou inconscientemente nos centros urbanos, são superficiais e inconsistentes. Em vez de focalizarem os valores substantivos, a serem defendidos explicitamente e reintegrados no estilo de vida social florescente, insistem sobre exterioridades destituídas de qualquer sentido. Quanto à ―defesa‖ do folclore, os males causados por estas últimas tendências são visíveis nas campanhas para ―preservar‖ as danças populares ou para infundir cunho folclórico à música nacional. Em lugar de contribuírem para a verdadeira perpetuação do folclore, deturpam-no ao mesmo tempo que desmoralizam seus agentes humanos. Com isso, concorrem para aumentar o estado de confusão do homem, em face de outras iniciativas viáveis e construtivas de defesa do patrimônio cultural folclórico.

Ao notar as forças que operam espontaneamente na sociedade e que concorriam para a perpetuação e renovação do folclore paulistano, no que concerne aos ditos e às sentenças populares, Florestan Fernandes (1961, p.31) intui algo que, mais tarde, tornou-se a chave de sua interpretação do Brasil. ―O novo, o velho e o arcaico aí coexistem e se entrelaçam organicamente [...]‖.

Fernandes via no folclore as diferenças e descontinuidades da cultura popular como algo histórico e, portanto, modificável. Não se valeu das diferenças culturais para justificar ou desviar o olhar das desigualdades sociais, econômicas, políticas e educacionais que perpassam o processo de formação da sociedade brasileira e das camadas dominadas. Em vez de uma cultura popular assentada no tradicionalismo e reacionarismo existente no folclore paulistano, para ele, o busílis é a construção de um sistema educacional voltado para a emancipação das camadas populares das formas de pensamento social dominantes que as aprisionam, como também para facultar a emancipação das desigualdades que transformam a sociedade de classes uma máquina de desperdiçar talentos e triturar as camadas dominadas no Brasil.