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PARTE I: HISTÓRIA DO CONCEITO DE REVOLUÇÃO BRASILEIRA E CLASSES

1.3 REVOLUÇÃO BRASILEIRA E CLASSES DOMIANTES: DA QUARTELADA AO

1.4.3 INIMIGOS DO POVO

Theotonio dos Santos36 publicou um volume dos Cadernos do Povo Brasileiro intitulado Quais são os inimigos o povo? Embora não faça uso do conceito de revolução brasileira em seu título, o conceito aparece diversas vezes no corpo do texto, onde o autor defende o caminho socialista pela via pacífica. Como o livro possui grande atualidade, foi incorporado a presente análise acerca do conceito de revolução brasileira e das classes dominantes no pensamento político brasileiro militante da época.

Neste texto, Theotonio Santos (1962) pretendia refutar a orientação política defendida pelo PCB e o caderno de Nelson Werneck Sodré Quem é o povo no Brasil? Além de criticar o desenvolvimentismo, por beneficiar apenas a burguesia, o nacionalismo, que desconsidera a divisão da sociedade em classes sociais, e os líderes populistas como Getúlio Vargas, Ademar de Barros e João Goulart, que procurariam amortecer o espírito de luta, fazendo os trabalhadores acreditar que a solução de seus problemas viria de cima para baixo.

Segundo Theotonio Santos (1962), o povo se compõe por aqueles que vivem do próprio trabalho, os camponeses, os operários e proletários e setores progressistas da pequena burguesia, além dos estudantes. O busílis deriva da ―forma pelo qual se faz a produção e como se relacionam os homens nessa produção, relação esta sancionada pelo direito de

36Theotonio dos Santos (1936) é um importante intelectual marxista brasileiro, economista e cientista social, nascido em Carangola-MG, publicou 38 livros e mais de 150 artigos científicos. Bacharel em sociologia e política pela Universidade Federal de Minas Gerais fez o mestrado em ciência política na Universidade de Brasília, onde foi professor até 1964. Autodidata, desenvolveu seu pensamento em contato com companheiros de geração e com os movimentos sociais. Ao lado de Ruy Mauro Marini, Luis Fernando Victor, Teodoro Lamounier, Albertino Rodriguez, Perseu Abramo e Vania Bambirra, ele participou do seminário de leitura de O

Capital de Karl Marx em Brasília. Militou na POLOP desde sua fundação em 1961, além do movimento

estudantil, do movimento do campesinato e do movimento dos favelados. Entre 1960 e 1964, quando esteve na Unb, Theotonio dos Santos estudou o marxismo a fundo, criando as bases de um pensamento original que culmina com a criação de uma teoria marxista da dependência. A investigação sobre a estrutura das classes dominantes no Brasil resultou na tese As Classes Sociais no Brasil: Primeira Parte – Os Proprietários, concluída no ano de 1964. Esta pesquisa serviu de base para o livro Quais são os inimigos do povo? Depois do golpe de 1964, Theotonio dos Santos é excluído da UnB, perde seus direitos políticos. Permanece clandestino no Brasil até 1966, quando se exila no Chile. O golpe contra Salvador Allende impôs novo exílio no México, em 1974. Retorna ao Brasil com a Anistia, em 1980, onde continua produzindo novas ideias. Cf. Martins (1998).

propriedade promulgado pela classe dominante‖ (SANTOS, 1962, p.31). São os inimigos do povo o imperialismo norte-americano, os latifundiários, os açambarcadores e especuladores, os banqueiros e financistas, a burguesia industrial, os meios de comunicação, a intelectualidade a serviço da classe dominante e os traidores no seio do povo.

Segundo o autor, a origem de todos os problemas do povo está na divisão da sociedade em classes, no fato de a produção ser coletiva e sua apropriação privada pela classe dos proprietários dos meios de produção. Sem tomar as classes dominantes como um bloco homogêneo, Theotonio dos Santos discriminou cada fração dos inimigos dos trabalhadores, apontando um horizonte socialista. Para ele, a classe dominante brasileira, composta por industriais e latifundiários é toda unida com o imperialismo, formando um bloco de aliados contra os trabalhadores. ―Os latifundiários, os grandes comerciantes, os grandes banqueiros e industriais têm interesses ligados aos grupos internacionais, dos quais são aliados‖ (SANTOS, 1962, p.27). O imperialismo é visto por ele como grandes grupos internacionais com sedes nos EUA e na Europa, os quais exportam capitais para países coloniais, anexam territórios, especializam os países dominados no fornecimento de matérias-primas e conservam uma classe dominante reacionária de latifundiários.

A melhor caracterização do imperialismo, de todos esses textos, entretanto, é feita por Sodré, no caderno Quem é o povo no Brasil?, quando afirma que o imperialismo:

Está presente em toda parte: quando um brasileiro ascende a luz, faz a comida, fala no telefone, toma o bonde, escova os dentes, raspa a barba, liga o rádio, vai ao cinema, em todos esses momentos encontra a presença do imperialismo, e a sua mão rapace, [...] cobra o preço de todos os atos da vida

cotidiana (SODRÉ, 1962, p. 33).

As formas de dominação do imperialismo são sutis e desde a Instrução 113 da Sumoc – que concedeu privilégios ao capital estrangeiro no Brasil por meio da proteção cambial das indústrias estrangeiras que se instalassem no Brasil associadas a capitais nacionais, além de favores como doação de terrenos, facilidades de instalação – têm espoliado a sociedade nacional de diferentes modos, conforme Theotonio Santos (1962).

A espoliação imperialista ocorre através de investimentos diretos e indiretos; do empréstimo de capital financeiro; do pagamento de royalties, patentes, uso de marcas, tecnologias às matrizes estrangeiras; da compra pelas filiais montadas no Brasil de produtos

das matrizes, excedentes vendidos a preço mais alto; pela prestação de serviços técnicos às subsidiárias nacionais; da reavaliação de ativos, na qual lucros são transformados em falso capital; da falsa aliança com capital nacional, que estabelece o monopólio de setores, o que permite controlar oferta de produtos e os preços, possibilitando lucros maiores e a aniquilação da concorrência nacional; da exploração de força de trabalho mais barata; da atuação nos setores mais lucrativos da economia, exemplo da distribuição do petróleo; das empresas de publicidade que controlam a imprensa, rádio e televisão do país, a serviço deste capital.

Os latifundiários, conforme Santos (1962) nasceram voltados à exportação de produtos agrícolas e a penetração de monopólios capitalistas internacionais estrangeiros no campo (Nestlé, Swift, Armour, Wilson etc.) tornavam os latifundiários mais comprometidos com o capital financeiro internacional. Neste processo, a figura do latifundiário também se modificou.

O velho fazendeiro patriarca, que sentia para com o afilhado uma responsabilidade pessoal, morreu. A fazenda é agora do filho, do doutor, ou da família, que moram mais na cidade do que na roça. E eles são ambiciosos [...] Aumenta assim a exploração do camponês (SANTOS, 1962, p.64).

Sem mudar, porém os métodos de ação. Os latifundiários perseguiam os líderes camponeses, destruíam colheitas, assassinavam, espancavam, chantageavam, usavam a polícia e o exército contra as organizações dos trabalhadores rurais. Exigiam violência contra associações dos camponeses e solução ditatorial para o governo do país. Compravam a opinião dos jornais, assim como armas, e pretendiam jogar o exército contra os camponeses e, ainda, buscavam apoio da igreja para seus desmandos. Recorriam aos EUA para manter a ―civilização cristã‖. Preconizavam o terrorismo do Movimento Anticomunista.

Conforme Santos (1962), além do latifundiário, o grileiro é mais um inimigo do povo. Associado ao juiz, ao promotor, ao advogado, ao tabelião ou escrivão, forja propriedade da terra e expulsa, mata os trabalhadores rurais. Tem ainda apoio do exército, de políticos e de capangas. O grileiro trabalha com a especulação fundiária no interior e, assim, agrava o problema da terra, eleva os preços dos alimentos, contribui para a queda da produção de alimentos.

Theotonio dos Santos (1962) também aponta como inimigos do povo os açambarcadores, isto é, intermediários da produção agrícola que, da cidade, com apoio dos bancos, compram a preço irrisório a produção rural. Eles armazenam a produção até o fim da

safra para venderem mais caro. Os intermediários, que criaram a distinção burguesa entre atacado e varejo, se apropriam das cadeias produtivas nacionais especulando para lucrar. Monopolizam e controlam a produção e o comércio de diversos produtos. Para se ter uma ideia, Santos indica que a exportação de café brasileiro era controlada por cinco empresas estrangeiras norte-americanas as quais praticamente controlavam a economia brasileira.

Nas cidades, a especulação urbana criava grupos monopolistas urbanos, inimigos dos trabalhadores. A especulação imobiliária por grandes companhias do setor investe contra comunidades expulsando os moradores para áreas distantes. Promove urbanização sem planejamento. Pelo fato de as construtoras serem controladas por grupos restritos, torna construções mais caras. A especulação também ocorre pela exploração de aluguel por poucos grupos proprietários de muitos imóveis. Theotonio dos Santos (1962) defendia controle estatal da distribuição e armazenagem agrícola e dos minérios, reforma urbana como desapropriação das grandes companhias imobiliárias, e a tomada de governos e prefeituras das mãos dos inimigos.

Banqueiros e financistas criam riqueza a partir de riqueza. ―Não lutam por outra causa senão a manutenção do sistema econômico que justifica a existência deles‖ (SANTOS, 1962, p.84). Compõem uma força econômica articulada à burguesia industrial, a qual converte o Estado em instrumento de interesses privados através do controle do poder político.

Já os grandes industriais são os maiores interessados no desenvolvimento das forças produtivas. ―Os industriais são, portanto, por um lado, forças progressistas, em relação aos latifundiários, exportadores, e imperialistas que desejam impedir nosso desenvolvimento; mas, por outro lado, os industriais são forças retrógradas, pois querem manter a propriedade privada dos bens de produção‖ (SANTOS, 1962, p.98). Theotonio Santos (1962, p. 83) previa que ―na sua maioria, os grandes industriais se incorporarão definitivamente aos inimigos do povo‖. E, ―os inimigos do povo se alimentam, portanto, do próprio povo, do seu trabalho, das suas economias‖.

Na esfera da comunicação também há inimigos. Os meios de comunicação de massa são usados pelo imperialismo para infiltrar a ideologia imperialista e a concepção de mundo da classe dominante. Uma poderosa ferramenta de controle social que, em vez de fazer os trabalhadores se revoltarem contra os verdadeiros inimigos, faz com que eles se voltem contra os próprios companheiros, amigos ou pessoas da mesma classe social. Os meios de comunicação tendem a deturpar o noticiário político, formar estereótipos, ideias fixas

irracionais, repetir slogans da classe dominante e a fomentar o individualismo, com vistas a fazer os trabalhadores acreditarem que seus problemas são individuais para aliviar as tensões sociais.

A intelectualidade a serviço das classes dominantes também é inimiga dos trabalhadores, segundo Santos (1962). Ademais, existem traidores no seio do povo, em decorrência da educação impingida pelas classes dominantes e da aspiração de ganho de algum benefício. São traidores do povo: 1) o pequeno proprietário, que acredita ser possível tornar-se milionário; 2) o trabalhador que deseja ser ―homem de direção‖ e faz a ―média‖ com patrão; 3) o pelego que mistifica a classe operária; 4) o burocrata, gestor, alto funcionário bajulador do patronato; 5) o militar reacionário que usa a corporação contra a população. Os traidores no seio do povo existem, porque o mesmo é modelado pela ideologia da classe dominante, que lhe incute a maneira de pensar favorável para os interesses dos dominadores.

Assim, Theotonio Santos propunha, em 1962, a união da maioria dos trabalhadores em uma só organização independente. Luta sistemática com uma única palavra de ordem pela maioria dos trabalhadores. Derrubada do inimigo e conquista do poder por nós.

O objetivo final desta união deve ser a tomada do poder pela maioria representativa da nação e a demissão das atuais classes dominantes do país, que já provaram definitivamente serem inimigas do povo, exploradoras voltadas única e exclusivamente para a defesa de seus interesses (SANTOS, 1962, p.119).

Conforme Santos, a vanguarda deve organizar o povo que vive do trabalho em locais onde estejam concentrados. Organização em sindicatos, associações profissional, associações de bairro, entidades estudantis, ligas e associações camponesas, aliança operário- camponesa-estudantil. As tarefas da organização seria elaborar um programa adequado à realidade brasileira, organizar forças populares, manter conquistas como democracia constitucional, fazer a revolução agrária, conquistar o poder político, encontrar meios para imolar os filhos de Brutus, ao longo do processo histórico pela instalação do planejamento global e eliminação do capitalismo. Dos autores que defendiam o socialismo contra as classes dominantes é que partiam as críticas ao PCB, antes do golpe empresarial-militar de 1964.