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ANÁLISE CRÍTICA

No documento Maria Isabel Rebello Pinho Dias (páginas 109-119)

Importante retomar o estudo do bem jurídico tutelado pelos delitos de parcelamento ilegal, após o aprofundamento dos temas propostos.

A multidisciplinariedade mencionada resulta na diversidade de bens jurídicos protegidos pelos delitos de parcelamento ilegal do solo urbano, o que torna importante a indagação sobre qual bem jurídico é protegido em caráter principal por tal crime na nova ordem constitucional.

Mario Seto Takeguma229 destaca a importância desse questionamento:

“Justamente é a definição do bem jurídico afetado pelos loteamentos ou desmembramentos ilegais, que tem sido a principal fonte de equívocos, no estudo dos tipos penais da espécie, pois no tratamento sistemático que se empreende na análise de um tipo penal, a modificação conceitual ou de natureza jurídica de um elemento, no caso o bem jurídico, que é o principal elemento do tipo, certamente trará reflexos nos demais elementos do tipo, e demais requisitos do delito”.

Após a entrada em vigor da Lei nº 6.766/79, Dirceu de Mello230 foi um dos primeiros a questionar o acerto da eleição da administração pública como objetividade jurídica dos delitos, discutindo se os comportamentos incriminados colocavam em xeque a administração pública ou os interesses particulares dos cidadãos:

“Dir-se-á que a discussão é despicienda. A que pode, com efeito, conduzir este tipo de debate? Eu vejo algumas dificuldades. Vejam os senhores o seguinte. Imaginemos que haja um processo criminal em andamento, por força de um desses crimes previstos na Lei de Parcelamento do Solo. Se nós considerarmos que os crimes, como está na

229TAKEGUMA, Mario Seto. op. cit., p. 58. 230MELLO, Dirceu de. op. cit., p. 21.

lei, são rigorosa e exclusivamente contra a administração pública, como ficaria, eventualmente, o ofendido? Aquele particular que sofreu na própria carne as conseqüências de um comportamento, que a meu ver tem muito do estelionato? Eu até vejo, nesses crimes, quase que um estelionato dirigido contra uma coletividade, menos contra os interesses da administração pública do que contra o interesse da coletividade. Tanto assim que, nas regras em causa, nós sentimos que o lesado tem o direito – e é isto que efetivamente lhe interessa, mas do que o processo criminal – tem o direito de se ver ressarcido nos prejuízos conhecidos.”

Outrossim, no anteprojeto de reforma do Código Penal, elaborado em 1998, os delitos de parcelamento ilegal do solo urbano foram incluídos no título dos crimes contra o ordenamento urbano, evidenciando que a administração pública deixou de ser o crime tutelado de forma principal.

Nesse sentido, anote-se, ainda, que nos dispositivos penais do projeto de lei nº 3057/2000 não consta que os crimes são praticados contra a administração, diversamente do que consta na atual legislação.

A partir do estudo da Constituição vigente, bem como se considerando o raciocínio realizado a fim de concluir que ocorreu a recepção constitucional das infrações penais previstas na Lei nº 6.766/79, entendo que o bem jurídico protegido em caráter principal pelos aludidos delitos é o meio ambiente, e não mais a administração pública, estabelecida de forma expressa no citado diploma legal como objeto jurídico.

Ocorre que a atual ordem constitucional atribuiu valor significativo aos bens jurídicos difusos – entre os quais o meio ambiente, que está necessariamente conectado com a ordenação territorial. Tal constatação não só resulta na recepção da legislação atual, mas também implica uma nova visão do delito, pois a sua interpretação deverá ser realizada a partir da premissa de que o bem jurídico protegido pelos delitos da Lei nº 6.766/79 é o

meio ambiente. Logo, a administração pública continua a ser protegida pelos delitos urbanísticos, mas tão somente de forma mediata.

Observa-se que a ordenação territorial é encarada pela doutrina sob óticas diversas, levando-se em consideração a sua relação com o meio ambiente: bem jurídico autônomo ou aspecto do bem jurídico meio ambiente.

Acale Sánchez não considera a ordenação do território como bem jurídico penal, mas sustenta que nesta situação o bem jurídico protegido também será também o meio ambiente (ao qual, eventualmente, se somaria o patrimônio artístico). Em outras palavras, os tipos penais relacionados à ordenação do território protegeriam o meio ambiente, bem jurídico plural, especificamente contra as agressões urbanísticas231.

O mesmo autor232 pondera que “o ‘urbanístico’ aludiria, pois, ao meio comissivo e não ao bem jurídico”.

Na mesma linha, Jesús Maria Silva Sánchez233 afirma que o bem jurídico protegido pelos delitos urbanísticos é “a proteção das características do solo como marco físico da vida humana frente às agressões urbanísticas”.

Destaca-se que na Itália o parcelamento ilegal do solo urbano já é considerado crime contra o meio ambiente na legislação em vigor.

Observa-se que a doutrina pátria predominante considera o meio ambiente como bem jurídico protegido pelo delito previsto no artigo 64 da Lei nº 9.605/98 sobre a matéria urbanística, não obstante tal crime se localize na seção dos crimes contra a ordenação urbana e o patrimônio cultural.

231ACALE SÁNCHEZ, Delitos urbanísticos, Barcelona, 1997, p. 51 apud, SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria.

op. cit., p. 19.

232ACALE SÁNCHEZ, Delitos urbanísticos, Barcelona, 1997, p. 52 apud, Id. Ibid., p. 19. 233SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. op. cit., p. 20.

Guilherme de Souza Nucci assevera que o crime do artigo 64 tem como objeto jurídico a proteção ao meio ambiente 234.

Na mesma linha Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas235 comentam que o objeto jurídico do aludido artigo 64 é “a ampla proteção do meio ambiente”

Luiz Regis Prado236, em contrapartida, entende que os bens jurídicos ordenação do território e meio ambiente são autônomos, pois: “não deve o ambiente congregar omnicompreensivamente outros bens jurídicos que podem ser devidamente individualizados, pois isso poderia conduzir à impossibilidade de se identificar qual o bem jurídico especificamente tutelado em um determinado tipo legal, já que tudo corresponderia ao ambiente. Se assim o fosse, todos os delitos contra o patrimônio cultural e ordenamento territorial teriam como bem jurídico protegido o ambiente e não haveria necessidade de se estabelecer capítulos distintos para essas matérias dentro da Lei 9.605/98”.

Mario Seto Takeguma237 também sustenta que a ordenação territorial é bem jurídico autônomo e que, na realidade, os crimes previstos na Lei nº 6.766/79 protegem a ordenação do território e não a administração pública:“entretanto, analisando por um critério sintético, vislumbra-se sob a ótica material, que as regras urbanísticas emitidas pela Administração Pública não podem ser o bem jurídico atingido, visto que tais regras não reúnem condições materiais para ser um bem jurídico digno de tutela. Tutela-se, em verdade, o valor material Ordenação do Território, com a importância e sentido que lhe confere a Constituição Federal de 1988”.

234NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, cit., p. 848. 235FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. op. cit., p. 244.

236PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente, cit., p. 300-301. 237TAKEGUMA, Mario Seto. op. cit., p. 64 e 67.

Acrescenta, também, sobre o bem jurídico ordenação do território238:

“Ora, essas condutas afetam, diretamente, a ordenação urbanística do solo urbano, que é espécie integrante da ordenação do território, pois em todo parcelamento, devem-se observar várias condições urbanísticas ligadas à topografia, às condições sanitárias, área de preservação ambiental, e diretrizes municipais ligadas ao sistema viário, ao escoamento de águas pluviais, ao tráfego de veículos, aos equipamentos urbanos e comunitários mínimos, dentre outros. O loteador clandestino sabe e opera na ilegalidade para não arcar com os custos da doação de área ao Município para a construção de equipamentos comunitários (escola, postos de saúde, praças, etc) e de outras obras que diminuam o seu lucro. Não é correto afirmar que ele atue com intenção direta de lesar compradores ou desrespeitar a legislação, mas o que pretende por primeiro é reduzir os custos, que implicam em prejuízo ao ordenamento territorial”.

Jose Luis de la Cuesta Arzamendi239 afirma que apesar da transcendência e complementariedade da tutela do ambiente e do território sob o prisma ecológico e de qualidade de vida - pois o solo não deixa de ser um recurso natural - é mais conveniente manter-se a distinção no plano penal entre a proteção do ambiente em sentido estrito e da ordenação territorial diante da separação entre o direito ambiental e o direito da ordenação territorial, que possuem enfoques diferentes, além de que o fato de a sua proteção constar em diplomas legais diversos não impedirá uma intervenção penal coordenada, diante das evidentes conexões entre as duas searas.

Em que pesem os posicionamentos divergentes, entende-se que o ordenamento territorial não é bem jurídico autônomo, mas está necessariamente inserido no bem jurídico penal meio ambiente, que conforme mencionado possui significado amplo.

238TAKEGUMA, Mario Seto. op. cit., p. 65.

Deveras, o conceito de meio ambiente não deve ser restringido, máxime diante da interdependência entre as suas facetas natural, artificial e cultural, tornando-se recomendável que elas sejam consideradas em conjunto, o que inclusive fortalece o fundamento da proteção de tais aspectos do meio ambiente e a consciência do significado do que seja um “meio ambiente ecologicamente equilibrado”.

Frise-se que os benefícios que surgiram com a mudança de objeto jurídico dos delitos em estudo de economia popular para administração pública permanecem quando se passa a considerar como bem jurídico protegido o meio ambiente.

Ora, os crimes continuam a ser formais, isto é, a consumação ocorre no momento da ação, independentemente do resultado, o que garante amplo alcance aos tipos penais. Ademais, o enfoque da tutela repousa na sociedade como um todo e não apenas sobre interesses particulares, resguardando-se valores que passaram a ter destaque após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, tais como, o meio ambiente, a ordenação territorial, o desenvolvimento sustentável e o direito à moradia.

Destarte, permanece viável a interferência de pessoas jurídicas de direito público que possuam interesse nos fatos, máxime porque os delitos urbanísticos envolvem o descumprimento de regras urbanísticas, havendo violação ao poder de polícia estatal.

Cabível, neste particular, a aplicação analógica do artigo 2º, § 1º, do Decreto-lei nº 201/67, que estabelece: “Os órgãos federais, estaduais ou municipais, interessados na apuração da responsabilidade do Prefeito, podem requerer a abertura de inquérito policial ou a instauração da ação penal pelo

Ministério Público, bem como intervir, em qualquer fase do processo, como assistente da acusação240”.

O particular que tiver interesse na reparação civil também poderá ingressar como assistente de acusação, ainda que se entenda que o bem jurídico protegido em caráter principal é o meio ambiente.

Nesse sentido Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas241:

“No crime ambiental, o sujeito passivo normalmente será a sociedade. Eventualmente poderá haver também um ofendido direto. É o caso, por exemplo, do proprietário de área desmatada por terceiros. (....). Na fase judicial, o ofendido poderá habilitar-se como assistente do Ministério Público (CPP, art. 268)”.

Os mesmos autores242 sustentam que a Lei dos Crimes Ambientais deveria ter disposto sobre a possibilidade de organizações não- governamentais (ONG) se habilitarem como assistentes da acusação, pois por atuarem diretamente na área degradada poderiam auxiliar na busca da verdade real. Tal sugestão também se aplica aos delitos urbanísticos pelos mesmos motivos e deveria ser observada em eventual alteração da Lei nº 6.766/79.

A conclusão de que o meio ambiente deve ser o bem jurídico protegido pelos crimes relacionados ao parcelamento do solo urbano leva à outra questão: onde devem constar tais delitos?

A discussão sobre onde devem localizar-se os delitos gera divisão na doutrina, pois alguns autores vislumbram vantagens na previsão de alguns

240NUCCI, Guilherme de Souza. Códigode Processo Penal comentado, cit., p. 567. 241FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. op. cit., p. 335. 242Id. Ibid., p. 335-336.

delitos em leis especiais e outros defendem que a codificação, isto é, a inclusão de todas as infrações penais em um único diploma legal é mais benéfica, pois propicia harmonia ao ordenamento jurídico penal243.

Paulo Amador Thomaz Alves da Cunha Bueno244 opina que os delitos de parcelamento do solo urbano devem constar no corpo da lei, tendo em vista que se trata de matéria passível de sucessivas alterações:

“No caso específico dos delitos da LPSU, soma-se a isto o fato de que as condutas típicas, notadamente aquelas descritas no art. 50, encontram-se totalmente vinculadas ao cumprimento das extensas determinações administrativas estampadas no mesmo diploma legal, de sorte que se os dispositivos penais fossem remetidos à Parte Especial do CP, descaracterizando-se o caráter híbrido da lei, que teria, então, natureza meramente cível-administrativa, aí sim estar-se-ia criando uma dificuldade ainda maior para proceder-se ao cotejo entre a conduta e norma, causando, via de consequência, seríssimas dificuldades na aplicação prática do diploma, que reclamaria a um só tempo a consulta ao CP e à LPSU”

José Luis de La Cuesta Arzamendi245 analisa a questão estabelecendo os pontos positivos e negativos de cada opção. Em relação à inclusão dos delitos urbanísticos em leis especiais, afirma que tal solução facilita a compreensão dos tipos penais, pois estes não podem prescindir do conteúdo da regulação administrativa. Em contrapartida, acentua-se o risco de generalização de infrações meramente formais, de mera desobediência aos mandados da legislação em vigor, sem que haja efetivo atentado a um bem jurídico que não seja a própria legislação e os poderes e faculdades da Administração Pública. Por esses motivos, o mencionado doutrinador entende que é preferível a inclusão desses delitos no Código Penal, pois resulta em maior esforço na construção dos tipos penais, focando-se no ataque ao bem jurídico que se pretende proteger.

243PONTE, Antonio Carlos da. op. cit., p. 37.

244BUENO, Paulo Amador Thomaz Alves da Cunha. op. cit., p. 40. 245DE LA CUESTA ARZAMENDI, José Luis. op. cit., fls. 211.

Interessante observar que a França e a Itália optaram por incluir os delitos urbanísticos em legislação especial, mesma linha adotada pela nossa legislação, em que os crimes contra a ordenação urbana estão nas Leis nº 6.766/79 e 9.605/98. Na França os delitos urbanísticos estão em leis especiais, principalmente no Código de Urbanismo. Na Itália, por sua vez, tais crimes se localizam na Lei nº 431/1985 – Legge Galasso. Já a Espanha, inseriu tais delitos no seu Código Penal, no título XVI do livro II, onde também estão os delitos contra o patrimônio histórico e os delitos contra o meio ambiente.

Verifica-se que, entre as propostas legislativas estudadas, o legislador ora se inclinou em relação à codificação ora em relação à inclusão de determinados delitos em leis esparsas.

O anteprojeto de reforma do Código Penal trouxe os delitos urbanísticos no capítulo relativo aos crimes contra o ordenamento territorial, justificando tal opção no seu relatório, onde consta que se procurou introduzir tipos penais de crimes relativos a fatos conhecidos na sua extensão normativa, deixando à legislação especial tão somente a disciplina de ilícitos sobre institutos em formação.

Já o projeto de lei nº 3057/2000, que tem como objetivo substituir a atual Lei do Parcelamento do Solo urbano, manteve as disposições penais sobre a matéria.

Diante dos aspectos mencionados, entendo que a inserção dos delitos urbanísticos em leis especiais é mais adequada, porquanto facilita a compreensão do conteúdo dos tipos penais, visto que são tipos penais abertos com diversos elementos normativos, cujo significado deve ser obtido por outras normas muitas delas constantes na própria lei especial.

Por derradeiro, é importante questionar não apenas se tais crimes devem ou não ser inseridos no Código Penal, mas também em qual lei eles deveriam constar: na legislação ambiental ou em legislação sobre o parcelamento do solo urbano.

Embora os crimes contra o parcelamento do solo urbano tenham como objetividade jurídica o meio ambiente, agiu bem o legislador ao incluir as disposições penais sobre a matéria na lei específica que existe sobre o parcelamento do solo urbano, o que, como dito, facilita a compreensão do alcance dos tipos penais em comento, o que é essencial, notadamente considerando que a principal dificuldade observada em relação à aplicação desses crimes é a complementação do seu significado por outras normas.

No documento Maria Isabel Rebello Pinho Dias (páginas 109-119)