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Artigo 50, incisos I e II

No documento Maria Isabel Rebello Pinho Dias (páginas 42-52)

3. OS CRIMES DE PARCELAMENTO ILEGAL DO SOLO URBANO (ARTIGOS

3.2. Fato típico

3.2.1. Tipos penais em espécie

3.2.1.1. Artigo 50, incisos I e II

“Artigo 50, inciso I – dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições desta Lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios

Inciso II – dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo, para fins urbanos sem observância das determinações constantes do ato administrativo de licença.

Pena – reclusão, de um a quatro anos e multa de 5 (cinco) a 50 (cinqüenta) vezes o maior salário mínimo vigente no País.”

De início, observa-se que os aludidos tipos penais possuem dois núcleos do tipo, quais sejam, “dar início” e “efetuar”, razão pela qual são classificados como tipos mistos. Considerando que “a prática de uma ou

várias das condutas previstas no tipo levam à punição por um só delito92”, tal tipo é denominado tipo misto alternativo.

Diógenes Gasparini93 especifica os conceitos desses núcleos do tipo, esclarecendo que:

“Dar início significa qualquer procedimento (demarcação, limpeza e terraplanagem da gleba, aterros, desmatamento, canalizações de córregos) ligado a um parcelamento. Essas medidas, afirma-se, por si só, não constituem qualquer das figuras criminosas previstas na Lei do Parcelamento do Solo Urbano. Também não serão crimes se ditos procedimentos estiverem ligados a um parcelamento para fins rurais. Efetuar significa realizar, implantar ou fazer um parcelamento (loteamento ou desmembramento), isto é, abrir ruas, marcar quadras, lotes e áreas públicas”.

Assim, o crime se consumará quando ocorrerem os atos iniciais para a realização de um loteamento ou desmembramento (“dar início) e também quando tal loteamento ou desmembramento tiver sido efetivado (“efetuar”).

Verifica-se, portanto, que o legislador equiparou duas figuras relacionadas a diferentes etapas do iter criminis – o núcleo “dar início” refere-se ao início do percurso, já o núcleo “efetuar” aproxima-se do final do percurso. Por conseguinte, os núcleos do tipo alcançam todas as condutas executórias praticadas com a finalidade de obtenção do resultado loteamento ou desmembramento, não sendo possível ocorrer tentativa. Em outras palavras, o “(...) tipo penal é formado por condutas extremamente abrangentes, impossibilitando, na prática, a existência de atos executórios dissociados da consumação94”.

92NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 153. 93GASPARINI, Diógenes. op. cit., p. 175. 94NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 169.

A propósito pondera Ruy Rosado de Aguiar Júnior95 “não se admite a figura da tentativa em ambas as modalidades, de iniciar ou efetuar: quem tenta efetuar está iniciando, e isso é consumação; de sua vez, iniciar é tentar efetuar, e como não se admite tentativa de tentativa, não é possível o reconhecimento da tentativa de dar início. Ou o ato é preparatório e irrelevante ou é consumação”.

Importante mencionar que os tipos penais em questão abrangem tanto o loteamento e o desmembramento realizados sem autorização do órgão público competente, ou seja, sem aprovação do Município e, no caso de áreas de interesse especial, sem aprovação dos Estados e Distrito Federal, quanto aqueles que desrespeitam os dispositivos legais que complementam as normas penais incriminadoras, assim como o conteúdo da licença concedida para a realização do parcelamento.

Na primeira hipótese, o parcelamento é realizado sem a licença96 do Município, ou seja, sem que este analise a adequação de um determinado projeto de loteamento ou desmembramento às exigências das leis federais, estaduais e municipais97.

Já na segunda hipótese, por exemplo, efetua-se parcelamento sem respeitar as normas que complementam a matéria ou em desacordo com algum aspecto constante na licença.

Embora os incisos I e II do artigo 50 sejam repetitivos e pudessem ser reunidos em uma única redação, não é despicienda a manutenção do comportamento descrito pelo inciso II, pois ele não é totalmente abrangido

95AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. op. cit., p. 214.

96Maria Sylvia Zanella di Pietro conceitua licença como “o ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual

a Administração faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2006. p. 237).

pelo inciso II. Ocorre que, ainda que o inciso I pudesse alcançar a hipótese em que o agente viola as regras que fixaram critérios para a concessão de licenças, o inciso II abrange situação que não pode ser subsumida no inciso I, ou seja, as violações a determinações discricionárias emitidas em face das diretrizes de planejamento municipal98.

Para parte da doutrina, as condutas que se subsumem no referido tipo penal são apenas as que configuram parcelamento material, definido no item 3.1., vale dizer os atos físicos que deflagram o fracionamento da terra com intuito de urbanização.

Paulo Amador Thomaz Alves da Cunha Bueno99 manifesta-se nesse sentido, asseverando que “ao considerar que tratando-se (sic!) de crime contra a administração pública, as características e o ordenamento urbano que se pretende proteger não chegam a serem atingidos se a área não sofrer ao menos um início de atuação em sua estrutura física”.

Em sentido contrário o posicionamento de Ruy Rosado de Aguiar Júnior100, o qual entende que os núcleos do tipo abrangem tanto o parcelamento material quanto o parcelamento jurídico, pois a lei ora se refere a um ora a outro, como se observa no artigo 50, inciso III, que prevê situação relacionada ao parcelamento material, enquanto no artigo 53 há menção à situação que caracteriza o parcelamento jurídico.

Compartilha-se desse último entendimento, pois o parcelamento ilegal – seja pelo fracionamento de terreno ou pelo seu ingresso no mundo

98MUKAI, Toshio; ALVES, Alaôr Caffé; LOMAR, Paulo José Villela. Loteamentos e desmembramentos

urbanos: comentários à lei de parcelamento do solo urbano, Lei nº 6.766, de 19/12/79. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1987., p. 268.

99BUENO, Paulo Amador Thomaz Alves da Cunha. op. cit. 100AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. op. cit., p. 207.

jurídico – tem potencialidade de lesionar a administração pública, o meio ambiente e eventuais particulares envolvidos.

Para solução de tal controvérsia, de lege ferenda, sugere-se que fosse esclarecido na redação do tipo penal a sua abrangência no tocante às situações de parcelamento material e parcelamento jurídico, bem como a exclusão da expressão “de qualquer modo” que confere uma amplitude indesejada ao tipo penal, sem trazer elementos concretos para a sua especificação. Para tanto seria possível adotar duas fórmulas: a) incluir no tipo penal o termo material ou jurídico relativo ao loteamento ou desmembramento, pois tal classificação possui significado pacífico na doutrina; b) incluir série exemplificativa de situações de parcelamento material ou jurídico para possibilitar uma interpretação analógica a fim esclarecer o alcance dos significados de “loteamento” e “desmembramento”.

Observa-se que atualmente a expressão constante no tipo penal de qualquer modo é interpretada de forma restrita para que não inclua a fase de cogitação, como por exemplo, fazer a planta de um loteamento, em contrapartida, se durante os preparativos para um determinado parcelamento ocorrer “(...) de qualquer modo, a alienação dos eventuais futuros lotes (o que os corretores de imóveis chamam ‘na planta’), aí, sim, estará materializado o delito, posto que terceiro estranho à etapa preparatória foi envolvido, por mais que se tenha certeza da aprovação do projeto”101.

O anteprojeto de reforma do Código Penal102 reuniu o conteúdo dos incisos I e II, limitando a incidência do delito às hipóteses de loteamento ou desmembramento sem autorização dos órgãos competentes, ou em desacordo com a autorização concedida. Destarte usou um único núcleo do tipo,

101COUTO, Sergio A. Frazão do. op. cit., p. 380. 102Apresentado em 24 de março de 1998.

substituindo “dar início” e “efetuar” por “promover”, reduziu a pena máxima de quatro para três anos e modificou o critério de fixação da pena de multa, adotando a regra geral do Código Penal103 em substituição ao salário mínimo:

“Parcelamento clandestino ou irregular do solo urbano

Art. 371. Promover loteamento ou qualquer outra forma de parcelamento do solo urbano sem autorização dos órgãos competentes, ou em desacordo com a autorização concedida:

Pena – Reclusão, de um a três anos, e multa”.

Não andou bem o legislador na modificação proposta, porquanto excluiu do tipo penal parte significativa da sua abrangência, deixando desprotegidos os bens jurídicos tutelados por esse delito na hipótese em que não conste na autorização concedida exigências previstas em disposições federais, estaduais e municipais sobre a disciplina urbanística. Demais disso, os núcleos “dar início” e “efetuar” especificam de forma mais clara o alcance do tipo penal em relação às condutas de parcelamento ilegal, evidenciando que são incriminados os atos executórios iniciais, não sendo necessária a efetivação do parcelamento para a sua consumação. No caso do núcleo “promover” não há parâmetro para definir em que momento o ato começa a ser executado.

Em contrapartida, a idéia de englobar os incisos I e II do artigo 50 em um único dispositivo é benéfica, pois simplifica a redação do tipo penal, que possui elementares parcialmente coincidentes.

103“Art. 49. A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e

calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias- multa.

§ 1º. O valor do dia-multa será fixado pelo juiz não podendo ser inferior a um trigésimo do maior salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato, nem superior a 5 (cinco) vezes esse salário.

Com relação às penas, não há razão para redução do patamar máximo, pois a pena máxima de quatro anos é compatível com a gravidade do delito. Por outro lado, o uso da fórmula geral do Código Penal para fixação do valor da multa é recomendável, pois permite que tal pena seja fixada de acordo com as possibilidades econômicas do agente, não havendo motivo para que haja forma especial para previsão dessa pena.

O projeto de lei nº 3057/2000104 manteve as condutas dos incisos I

e II do artigo 50, substituindo os termos “autorização” e “ato administrativo de licença”, por “licença” e “licença urbanística e ambiental integrada”, respectivamente, o que é adequado para melhor compreensão dos elementos normativos relacionados ao direito administrativo, constantes no tipo penal. Observa-se, contudo, que tais delitos estão em dispositivos separados e com penas diferenciadas.

“Art. 100. Dar início, de qualquer modo, ou efetuar parcelamento do solo para fins urbanos, sem licença da autoridade competente, ou em desacordo com as disposições desta Lei ou de outras normas urbanísticas ou ambientais federais, estaduais ou municipais:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, multa e, no caso de o proprietário ser um dos infratores, perda do imóvel ilegalmente parcelado, ressalvados os direitos de terceiros de boa-fé”

“Art. 103. Dar início, de qualquer modo, ou efetuar parcelamento do solo para fins urbanos sem observância das determinações constantes da licença urbanística e ambiental integrada:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa”.

Diante da similitude entre as redações dessas normas e os delitos vigentes, cabíveis as sugestões apresentadas supra, referentes aos últimos.

O legislador não deveria ter diferenciado as penas imputadas aos dois delitos, pois a gravidade dessas condutas é semelhante, razão pela qual deveriam continuar a constar no mesmo tipo penal e com o mesmo preceito secundário.

A fixação do patamar máximo da pena de um dos delitos de parcelamento ilegal do solo urbano em seis anos é exagerada e não está em harmonia com a gravidade do delito ou com exemplos que serão estudados no direito comparado.

No entanto, verifica-se que no Direito francês há previsão somente de aplicação de pena de multa, já no Direito italiano e no Direito espanhol são estabelecidas, além da pena de multa, penas privativas de liberdade no patamar máximo de dois e três anos, respectivamente.

Por conseguinte, não se vislumbra particularidade no ordenamento jurídico brasileiro que justifique o aumento considerável da pena máxima fixada ao aludido delito, sob pena de macular-se o princípio da proporcionalidade.

Importante questionar a constitucionalidade da pena prevista no preceito secundário do artigo 100 do projeto de lei nº 3057/2000 que estabelece o confisco do imóvel ilegalmente parcelado aplicável ao agente que, além de praticar o delito, for proprietário do bem.

Ainda que a nossa Constituição possua dispositivos que amparem a perda de bens no âmbito penal105, tal pena é incluída pelo Código Penal entre as restritivas de direitos106, admitindo-se a perda de bens e valores adquiridos de forma lícita pelo condenado e que integrem o seu patrimônio, contudo, o

105“Art. 5º - inciso XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o

dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;

inciso XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens; c) multa;

d) prestação social alternativa”.

106“Art. 43. As penas restritivas de direitos são:

I – prestação pecuniária; II – perda de bens e valores; III – (Vetado.);

IV – prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; V – interdição temporária de direitos;

teto dessa pena será o valor do prejuízo causado ou do proveito obtido com a prática do delito, prevalecendo o maior valor107.

Ora, no caso em tela a perda da propriedade deve-se ao ato praticado pelo infrator e não à ilicitude do bem, logo, deve-se observar os princípios que orientam as penas – entre os quais o princípio da proporcionalidade108. Assim, não seria razoável a perda automática da propriedade parcelada, pois tal medida não prevê relação entre os danos causados e a conduta do infrator, o que seria essencial para a aplicação de pena em consonância com os direitos fundamentais de que é titular o infrator, assegurados pela Constituição Federal109, entre os quais se destaca o direito de propriedade.

Não se desconhece que o nosso ordenamento prevê em situações excepcionais a possibilidade de confisco de bens lícitos de infratores sem que se exija relação de proporção com os prejuízos ocasionados, mas tal hipótese está expressa no texto constitucional e se relaciona a crime enquadrado entre os mais graves do nosso ordenamento jurídico, equiparado aos crimes hediondos, qual seja, o tráfico de entorpecentes. Nesse sentido dispõe o artigo 243 da Constituição Federal:

“Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde foram localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no

107NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 324.

108GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches; OLIVEIRA, William Terra de.

Nova Lei de Drogas comentada: Lei 11.343, de 23.08.2006. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 280.

aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias”.

Esse dispositivo constitucional fundamenta os artigos 62110 caput e 63111 da Lei de Drogas que determinam a perda dos objetos usados para a prática do tráfico de entorpecentes, independentemente da posse, uso, fabricação e porte de tais objetos serem lícitos.

Logo, considerando que a perda de bens lícitos está prevista no citado projeto de lei sem a observância dos princípios que se aplicam às penas e não se tratando da hipótese excepcional de expropriação relacionada ao tráfico de drogas, flagrante a sua inconstitucionalidade.

Por derradeiro, note-se que não há qualquer impedimento à aplicação da pena restritiva de direitos de perda de bens, que poderá alcançar o imóvel ilegalmente loteado pelo infrator, desde que seja obedecido o teto citado, vale dizer, o princípio da proporcionalidade. Tal pena alternativa é recomendável no caso dos crimes em comento, quando preenchidos os requisitos legais, porquanto poderá minimizar os efeitos do parcelamento ilegal, em benefício dos adquirentes de lotes que sofreram prejuízos econômicos112.

110“Art. 62. Os veículos, embarcações, aeronaves e quaisquer outros meios de transporte, os maquinários,

utensílios, instrumentos e objetos de qualquer natureza, utilizados para a prática de crimes definidos nesta Lei, após a sua regular apreensão, ficarão sob custódia da autoridade de polícia judiciária, excetuadas as armas, que serão recolhidas na forma de legislação específica”.

111“Art. 63. Ao proferir a sentença de mérito, o juiz decidirá sobre o perdimento do produto, bem ou valor

apreendido, seqüestrado ou declarado indisponível”.

112TAKEGUMA, Mario Seto. Aspectos fundamentais do tratamento jurídico-penal do parcelamento do solo

urbano brasileiro. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual de Maringá [UEM], Maringá, 2003. p. 120.

No documento Maria Isabel Rebello Pinho Dias (páginas 42-52)