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Tutela de bens jurídicos supra-individuais

No documento Maria Isabel Rebello Pinho Dias (páginas 77-83)

3. OS CRIMES DE PARCELAMENTO ILEGAL DO SOLO URBANO (ARTIGOS

3.3. Objetividade Jurídica

3.3.1. Tutela de bens jurídicos supra-individuais

Os bens jurídicos podem ser classificados em individuais ou supra- individuais. Eles se diferenciam principalmente em razão dos titulares dos interesses tutelados: quando o enfoque for cada pessoa, o bem jurídico será individual; em contrapartida, na hipótese de o interesse ser comungado por várias pessoas determinadas ou indeterminadas, o bem jurídico será coletivo ou difuso, respectivamente, ambos pertencentes ao gênero de bem jurídico supra-individual.

Luiz Regis Prado158 diferencia as modalidades de bens jurídicos mencionados:

“Tendo-se como ponto de partida o critério da titularidade, julgado aqui suficiente para um exame didático da matéria, os bens jurídicos podem ser individuais ou supra-individuais. Dos primeiros é titular o indivíduo, o particular que o controla e dele dispõe, conforme sua vontade. Têm caráter estritamente pessoal. Já os segundos são características de uma titularidade de caráter não pessoal, de massa ou universal (coletiva ou difusa); estão para além do indivíduo – afetam um grupo de pessoas ou toda a coletividade -; supõem, desse modo, um raio ou âmbito de proteção que transcende, ultrapassa a esfera individual, sem deixar, todavia, de envolver a pessoa como membro indistinto de uma comunidade.”

Gianpaolo Poggio Smanio159 propõe uma tríplice classificação dos bens jurídicos penais:

“a) os bens jurídicos penais de natureza individual, referentes aos indivíduos dos quais estes têm disponibilidade, sem afetar os demais indivíduos. São, portanto, bens jurídicos divisíveis em relação ao titular. Citamos, como exemplo, a vida, a integridade física, a propriedade, a honra, etc.;

b) os bens jurídicos penais de natureza coletiva, que se referem à coletividade, de forma que os indivíduos não têm disponibilidade sem afetar os demais titulares do bem jurídico. São, dessa forma, indivisíveis em relação aos titulares. No Direito Penal, os bens de natureza coletiva

158PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009. p. 102. 159SMANIO, Gianpaolo Poggio. op. cit., p. 4.

estão compreendidos dentro do interesse público. Podemos exemplificar com a tutela da incolumidade pública, da paz pública, etc.;

c) os bens jurídicos penais de natureza difusa, que também se referem à sociedade como um todo, de forma que os indivíduos não têm disponibilidade sem afetar a coletividade. São, igualmente, indivisíveis em relação aos titulares. Os bens de natureza difusa trazem uma

conflituosidade social que contrapõe diversos grupos dentro da

sociedade, como na proteção ao meio ambiente, em que os interesses econômicos, industriais e o interesse na preservação ambiental se contrapõem...etc.”

Nos crimes de parcelamento ilegal os bens jurídicos protegidos têm principalmente natureza supra-individual e difusa.

A administração pública, embora seja um bem jurídico clássico típico do Estado Liberal Democrático, possui natureza supra-individual, ou seja, refere-se a interesses que não são exclusivos de um sujeito individual com faculdade de disposição sobre eles160. Outrossim, na qualidade de bens jurídicos institucionais, a tutela supra-individual é intermediada por uma pessoa jurídica de direito público161.

Nessa linha Franz Von Liszt162 leciona que:

“À manifestação da vida individual, ao pleno e livre desenvolvimento das forças dos indivíduos, corresponde, como manifestação da vida coletiva, o trabalho da administração pública. A moderna concepção do Estado abre-lhe e facilita-lhe dia a dia, por novos domínios, o caminho que tem de seguir para o preenchimento de sua missão, isto é, coligir as forças coletivas e aplicá-las a bem da coletividade. Ao lado da proteção dos interesses individuais, a que um doutrinarismo de vistas curtas pretende limitar a missão do Estado Jurídico, figura a promoção dos interesses coletivos como supremo alvo do Estado Administrativo”.

160Norberto J. de La MATA BARRANCO, Protección penal del ambiente y acessoriedad administrativa

(Tratamiennto penal de comportamientos perjudiciales para el ambiente amparados em una autorización administrativo ilícita), p. 42 apud SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supra-individual: interesses difusos. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. p. 60.

161PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente, cit., p. 103.

162LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Tradução de José Higino Duarte Pereira. Campinas:

De acordo com a legislação atual, quando ocorre um crime de parcelamento ilegal, atinge-se o Estado, mais especificamente o exercício do poder de polícia urbanístico. Inegável que essa situação repercute em toda a coletividade, a qual é beneficiada pelo regular cumprimento das normas urbanísticas.

Isso porque essas normas têm como finalidade o desenvolvimento sadio das cidades, o que assegura melhores condições de vida a toda população, com infra-estrutura mínima, saneamento básico, meio ambiente preservado e moradias dignas.

Renato de Mello Jorge Silveira163 discorre sobre as modalidades de bens supra-individuais, diferenciando as suas espécies: “os bens supra- individuais ou difusos, em sentido lato, incluíram, pois, tanto os bens coletivos como os chamados bens jurídicos de caráter geral. Estes dizem respeito à sociedade em seu conjunto, como é o caso, v.g., da Administração da Justiça. O titular destes direitos vem a ser a sociedade ou o Estado. Já os segundos pertencem a uma pluralidade de sujeitos, determináveis ou não”.

Assim sendo, a administração pública pode ser considerada um bem jurídico de caráter geral, pois protege direitos da sociedade ou Estado, relacionando-se ao interesse público.

Em outras palavras, pode-se dizer que a legitimidade do poder de polícia urbanística se apóia, em análise imediata, sobre a proteção da administração pública – bem jurídico principal dos delitos previstos na Lei nº 6.766/79 – mas, em caráter mediato, na tutela de direitos coletivos (em sentido amplo) fundamentais à coletividade – bens jurídicos que também são protegidos pelos crimes em estudo.

163Giovanni GRASSO. L´antecipazione della tutela penale: i reati di pericolo e i reati di attentato. Rivista

Nilton Belli Filho164 menciona a diversidade dos bens jurídicos atingidos pelo loteamento ilegal: “A Administração Pública, com o início de um parcelamento clandestino do solo, é lesada de maneira multifária: meio ambiente, poluição visual, poluição das águas, focos de doença, posturas urbanas, urbanização desenfreada, criminalidade e outros tantos. E, indefectivelmente, o particular, como adquirente de lote, também fica prejudicado”.

Assim, o amparo aos tais bens jurídicos difusos protegidos pelos crimes em estudo é baseado numa “satisfação de necessidade de cada um dos membros das sociedades ou de uma coletividade, em consonância com o sistema social165”.

A nossa legislação é expressa quanto ao caráter supra-individual de tais bens jurídicos, já que o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) alterou o artigo 1º da Lei º 7.347/85, incluindo a ordem urbanística166 entre os interesses difusos protegidos por meio das ações civis públicas.

Dentre os bens que a doutrina entende que são tutelados mediatamente pela Lei nº 6.766/79, destaca-se o meio ambiente, cuja relevância foi explicitada pela Constituição Federal de 1988. Tendo em conta que a tutela ao meio ambiente visa a proteger toda a sociedade, indiscutível seu caráter difuso, pois protege “os interesses comuns a uma coletividade de

164BELLI FILHO, Nilton. O inquérito policial como instrumento alternativo para investigação dos

loteamentos. In: FREITAS, José Carlos (Coord.). In: FREITAS, José Carlos (Coord.). Temas de direito urbanístico 2. São Paulo: Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Habitação e Urbanismo – CAOHURB; Ministério Público do Estado de São Paulo – Procuradoria Geral de Justiça; Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 325.

165Juan Bustos RAMIREZ, Los bienes jurídicos coletivos, p. 159 citado por SILVEIRA, Renato de Mello

Jorge. op. cit.

166Paulo Affonso Leme MACHADO define a ordem urbanística como “o conjunto de normas de ordem

pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade em prol do bem coletivo, da segurança, do equilíbrio ambiental e do bem-estar dos cidadãos “ (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2004. p. 367).

pessoas e apenas a elas, mas ainda repousando sobre um vínculo jurídico definido que as congrega167”

A ordenação do território, definida como uma “função pública horizontal que deve condicionar as funções públicas setoriais com a finalidade de corrigir os desequilíbrios territoriais de forma a tornar compatíveis os interesses públicos do desenvolvimento econômico e da melhora da qualidade de vida168” é um aspecto do bem jurídico meio ambiente que se destaca nos crimes em estudo, que se referem à matéria urbanística.

A ordenação territorial está imbricada com o meio ambiente, porquanto a adequada ordenação do território acaba por influir na obtenção de um meio ambiente sadio e equilibrado, que é resguardado quando, por exemplo, os loteamentos são realizados em locais permitidos e com infra- estrutura adequada.

Nessa perspectiva, José Carlos de Freitas169 comenta a relação entre

os loteamentos e o meio ambiente: “a implantação de um loteamento tem direta influência no meio ambiente urbano construído, irradiando efeitos sobre a população difusa e coletivamente considerada, pois a inobservância das normas urbanísticas pode gerar problemas que afetam a segurança, a salubridade e o conforto dos citadinos e transeuntes, bem como a funcionalidade e a estética da cidade”.

A estreita relação entre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável conduz à conclusão de que este também é protegido, mesmo que

167GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela dos interesses difusos, p. 30.

168F. LÓPEZ RAMON, La política regional y la ordenación del território em Derecho español, RAAP, I,

1994, p. 231 apud PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente, cit., p. 299.

169FREITAS, José Carlos de. Loteamentos clandestinos: uma proposta de prevenção e repressão. In: ______

de forma indireta, pela Lei nº 6.766/79. Nesse diapasão, as regras urbanísticas fomentam o desenvolvimento sustentável do espaço habitável, definindo limites, exigências e punições a fim de melhorar a qualidade de vida dos seres humanos no presente, e assegurar também que as gerações futuras disponham de um meio ambiente ecologicamente equilibrado170, objetivando a harmonia entre homem e natureza, nos termos do artigo 225, caput da Constituição Federal vigente.

Carla Canepa171 destaca a importância da sustentabilidade em matéria urbanística:

“O binômio ‘sustentabilidade-cidade’ vem sendo progressivamente fortalecido pelas políticas urbanas, chegando mesmo a serem considerados dois termos incindíveis. Numa sociedade cuja população vive em grande parte nos contextos urbanos, o desenvolvimento econômico e demográfico assumiu uma forma de desenvolvimento

urbano sustentável, a coincidir sempre mais com a de “cidades

sustentáveis”. O binômio ‘sustentabilidade-cidade’, portanto, ao mesmo tempo em que estabelece uma ‘concretude’ ao discurso sobre a sustentabilidade, está também modificando radicalmente o modo de ver e governar a cidade e o território”.

Pode-se, portanto, afirmar que o desenvolvimento urbano sustentável define os parâmetros em torno dos quais deve orbitar o meio ambiente artificial. Note-se que, conforme anteriormente analisado, a defesa do desenvolvimento sustentável e, por conseguinte, do meio ambiente artificial e da ordenação territorial, estão intrinsecamente ligados à proteção do meio ambiente em sentido amplo.

Seguindo a mesma lógica, o direito à moradia encontra-se amparado pela Lei nº 6.766/79 – em concordância com os princípios constitucionais vigentes – porquanto, o respeito às regras urbanísticas

170DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 127. 171CANEPA, Carla. Cidades sustentáveis. São Paulo: RCS Ed., 2007. p. 101-102.

constitui uma das formas de se garantir esse direito fundamental de titularidade de toda sociedade.

Imperativo lembrar que a tutela de tais bens jurídicos difusos é considerada pela Constituição Federal de 1988 de suma importância e constitui um dos argumentos na defesa da validade da Lei nº 6.766/79, conforme será analisado posteriormente.

No documento Maria Isabel Rebello Pinho Dias (páginas 77-83)