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Os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal e o processo de recepção jurídico-penal

No documento Maria Isabel Rebello Pinho Dias (páginas 85-89)

4. A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E A CONSTITUIÇÃO

4.1. Os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal e o processo de recepção jurídico-penal

De acordo com o constitucionalismo – que prevalece nas doutrinas penais alemã, italiana, portuguesa e espanhola - o Estado vincula-se a novo paradigma, pelo qual os atos normativos devem ser compatíveis com a Constituição não apenas quanto ao seu processo de elaboração, mas também em relação aos seus valores e princípios. A esse respeito esclarece Luciano Feldens174:

“No moderno Estado constitucional de Direito, a preservação da Constituição em detrimento de qualquer produto legislativo (ato normativo) que lhe seja contrário deve ser aferida sob uma dupla perspectiva, a qual passa pela dissociação dos atributos de vigência e validade da norma. Quer-se dizer: a formação da lei, como ato dotado de significação jurídica, não mais se submete unicamente às regras procedimentais sobre sua criação (vigência), senão que também envolve um processo de necessária submissão ao conteúdo material decorrente da Constituição (validade)”.

Nesse sentido, estabelece-se entre o Direito Penal e a Constituição “uma relação axiológica-normativa por meio da qual a Constituição, ao tempo em que garante o desenvolvimento dogmático do Direito Penal a partir de estruturas valorativas que lhe sejam próprias, estabelece, em contrapartida, limites materiais inultrapassáveis pelo legislador penal”.175

174FELDENS, Luciano. A Constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas

penais. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 2005. p. 33.

Como bem esclareceu Figueiredo Dias176 “os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais”.

Nessa linha, toda vez que uma Constituição entra em vigor, os valores e princípios trazidos pela nova ordem constitucional irão definir os bens jurídicos que deverão ser protegidos pelo Direito Penal.

Conforme explica Márcia Dometila Lima Carvalho177, diante de uma nova Constituição é necessária a realização de um processo despenalizador e de outro de penalização, a partir das premissas constitucionais. Deverá ocorrer a despenalização das infrações penais previstas em lei, que não ofendem significativamente aos novos interesses tutelados pela nova ordem constitucional, porquanto perderam a sua relevância social. Por outro lado, os fatos até então atípicos, que atingem interesses jurídicos tutelados constitucionalmente, deverão ser penalizados e aqueles já considerados típicos, que diante dos mencionados interesses não estiverem apenados de forma adequada, deverão ser revistos nesse aspecto.

Logo, a Constituição traz mandados constitucionais, que nada mais são do que “uma obrigação de caráter positivo dirigida ao legislador, para que edifique a norma incriminadora, ou, quando esta já existe, em uma obrigação negativa, no sentido de que se lhe é vedado retirar, pela via legislativa, a proteção já existente178”.

Esses mandados de criminalização podem estar expressos ou implícitos no texto constitucional. Apesar de haver discussão quanto à

176apud FELDENS, Luciano. op. cit., p. 52.

177CARVALHO, Marcia Dometila Lima de. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre:

Sergio Fabris Ed., 1992. p. 38.

existência dos mandados implícitos, Luciano Feldens179 bem justifica a necessidade de penalização de condutas que não estão diretamente relacionadas aos mandados expressos de criminalização:

“Uma análise contextual da Constituição indubitavelmente nos oferecerá solução distinta, para afirmar a existência de normas implícitas de penalização. Da plataforma penal estabelecida na Constituição são racionalmente deduzíveis outras zonas de obrigatória intervenção do legislador penal. Se constatarmos que em muitas vezes a Constituição chegou ao ponto de determinar aquilo que para alguns significa ‘antecipação do Direito Penal’ – assim considerada a utilização do Direito Penal para a proteção de bens jurídicos-penais coletivos (ou secundários) -, é-nos razoável admitir que a Constituição igualmente está a exigir a proteção não de todos, por certo, mas de determinados bens jurídicos que se revelem inequivocamente primários no âmbito de uma sociedade democrática submetida a um programa constitucional básico assentado na defesa da vida, da liberdade e da dignidade humana”.

A identificação dos mandados implícitos de criminalização deverá ser realizada a partir de critérios seguros para que “não haja violação ao corpo constitucional, sob o pretexto de preservá-lo180”.

O princípio da intervenção mínima ou da última ratio constitui um critério objetivo a ser considerado no reconhecimento dos mandados de crimininalização implícitos, pois181 “um Direito Penal de intervenção mínima não se contrapõe conceitualmente a um Direito Penal de intervenção minimamente (constitucionalmente) necessária”.

A propósito leciona Luiz Regis Prado182 que o princípio da intervenção mínima “estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens, e que não podem ser eficazmente protegidos de outra forma. Aparece ele como uma

179FELDENS, Luciano. op. cit., p. 94.

180PONTE, Antonio Carlos da. op. cit., p. 166. 181FELDENS, Luciano. op. cit., p. 213.

orientação de política-criminal restritiva do jus puniendi e deriva da própria natureza do Direito Penal e da concepção material de Estado de Direito”.

De fato, como bem pondera Luiz Luisi183, os princípios constitucionais relacionados ao Direito Penal – entre os quais o princípio da intervenção mínima - limitam a atividade penal do Estado a fim de garantir a inviolabilidade das prerrogativas individuais, todavia, as Constituições atuais trazem, ao lado de tais princípios, uma série de preceitos destinados a alargar a aplicação do direito criminal para que ele se torne instrumento de proteção de direitos coletivos a fim de que se atendam as exigências de justiça material. Tais preceitos seriam os mandados de criminalização implícitos e explícitos.

Assim sendo, os mandados implícitos serão aferidos a partir da idéia de que184 “a ação delituosa é o mais grave ataque do indivíduo contra os

bens sociais tutelados pelo Estado e a sanção criminal é a mais aguda intervenção do Estado na esfera individual”.

Em suma, “os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade, como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. A idéia é a de que a intervenção estatal por meio do direito penal, como última ratio, deve ser sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade185”.

Aplicando-se a teoria constitucionalista ao nosso ordenamento jurídico, tem-se que, com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, tornou-se necessária a elaboração de leis novas para proteção dos bens

183LUISI, Luiz. op. cit., p. 57-58.

184CARVALHO, Marcia Dometila Lima de. op. cit., p. 38.

185MENDES, Gilmar Ferrerira, COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo GONET. Curso de

jurídicos que não estavam amparados na seara criminal, bem como o estudo da legislação anterior a fim de que os crimes existentes fossem analisados de acordo com os valores estabelecidos pela nova ordem constitucional.

Nesse processo, alguns crimes perderão a sua legitimidade, caso os bens jurídicos por eles protegidos não mais encontrem o mesmo destaque na Lei Magna a ponto de justificar a maior proteção conferida pelo ordenamento jurídico, ou seja, a criminalização da conduta violadora.

4.2. Os dispositivos penais da Lei nº 6.766/79 e a Constituição Federal de

No documento Maria Isabel Rebello Pinho Dias (páginas 85-89)