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ESTUDOS DE LINGUAGEM NAS CIÊNCIAS HUMANAS

1.4 A ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO

Concluída a apresentação de alguns termos, conceitos, noções e categorias bakhtinianas, os quais permitem a compreensão mais efetiva da filosofia da linguagem do Círculo, cabe, nesta seção, apresentar a Análise Dialógica do Discurso (ADD) enquanto

metalinguística dedicada a realizar a apreensão dos fenômenos sociais por meio das dinâmicas da linguagem.

É inquestionável a importância da contribuição do pensamento do Círculo bakhtiniano para os estudos de linguagem e a sua relação com as demais ciências humanas, as quais podem se apropriar da dinâmica da linguagem como mecanismo de compreensão das mais diversas formas de relações em sociedade.

No entanto, em nenhum momento Bakhtin e outros membros do Círculo apesentaram uma proposta teórico-metodológica rigorosamente organizada e fechada de análise do discurso propriamente dita. “Ninguém, em sã consciência, poderia dizer que Bakhtin tenha proposto formalmente uma teoria e/ou análise do discurso, no sentido em que usamos a expressão para fazer referência, por exemplo, à Análise do Discurso Francesa” (BRAIT, 2008, p. 9).

Mesmo assim, o fato é que a forma como as obras do Círculo de Bakhtin discutem as questões da linguagem numa perspectiva dialógica acabou por motivar uma nova maneira de se encarar o discurso, dando origem, no Brasil, à ADD. Trata-se de uma maneira genuinamente brasileira e assumidamente bakhtiniana de se realizar análise do discurso.

(...) mesmo consciente de que Bakhtin, Voloshinov, Medvedev e outros participantes do que atualmente se denomina Círculo de Bakhtin jamais tenham postulado um conjunto de preceitos sistematicamente organizados para funcionar como perspectiva teórico-analítica fechada, (...) o conjunto das obras do Círculo motivou o nascimento de uma análise/teoria dialógica do discurso, perspectiva cujas influências e consequências são visíveis nos estudos linguísticos e literários e, também, nas Ciências Humanas de maneira geral. (BRAIT, 2008, p. 9-10, grifos da autora).

O pensamento do Círculo bakhtiniano deixou um legado teórico-analítico que passou a ser mais observado em âmbito mundial e no Brasil no final da década de 1970, sendo intensificado nos anos 1990. Isso acabou por provocar a elaboração de novas formas de enfrentamento dialógico da linguagem em diferentes direções.

Uma dessas direções pode ser caracterizada pelos trabalhos de intérpretes cujo objetivo central é o aprofundamento da compreensão das propostas do primeiro Círculo bakhtiniano e de suas consequências radicais para os estudos da linguagem, quer na perspectiva das teorias linguísticas, quer das teorias literárias ou de seu alcance dentro das demais Ciências Humanas. O que diferencia esse Círculo contemporâneo, radicalmente bakhtiniano, dos demais, é o empenho em ressaltar a origem filosófica, ética e estética que constitui a gênese do pensamento bakhtiniano como um todo. (BRAIT, 2008, p. 15).

Segundo Brait (2008, p. 15), essa direção de leituras e interpretações dos trabalhos de bakhtinianos, nacionais e estrangeiros, tem como resultado a articulação de categorias, conceitos e noções dentro do contexto epistemológico que os originou, diferenciando a perspectiva bakhtiniana de outras teorias sobre a linguagem, além de contribuir para a delimitação de termos para que possam ser utilizados de maneira cuidadosa enquanto conceitos específicos. O termo diálogo, por exemplo, como visto anteriormente, para ser utilizado dentro da perspectiva bakhtiniana precisa ser bem delimitado para evitar equívocos.

A ADD é embasada na constituição indivisível entre língua, linguagem, história e sujeitos, concebendo que a construção e produção de sentido por meio da linguagem apoiam- se nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados. Isso significa

(...) conceber estudos da linguagem como formulações em que o conhecimento é concebido, produzido e recebido em contextos históricos culturais específicos e, ao mesmo tempo, reconhecer que essas atividades intelectuais e/ou acadêmicas são atravessadas por idiossincrasias institucionais e, necessariamente, por uma ética que tem na linguagem, e em suas implicações nas atividades humanas, seu objetivo primeiro. (BRAIT, 2008, p. 10).

O Círculo bakhtiniano, portanto, não apresenta uma proposta de análise de discurso fechada em qualquer uma das obras desenvolvidas por seus membros. O que o conjunto da obra oferece são interpretações, noções, termos, categorias e conceitos que, compreendidos de forma articulada, oferecem subsídios que passaram a ser utilizados a posteriori por inúmeros intelectuais relacionados às ciências da linguagem e da sociedade de forma geral, motivando o nascimento da ADD. Por isso, para compreendê-la do ponto de vista teórico-metodológico- analítico é fundamental percorrer o conjunto da obra do Círculo de Bakhtin para destacar, de forma articulada, alguns dos elementos que fazem de sua teoria-análise um poderoso quadro filosófico-epistemológico.

Nesse sentido, na obra Problemas da poética de Dostoiévski – no início do capítulo O discurso em Dostoiévski, na seção nomeada como Tipos de discurso na prosa. O discurso dostoievskiano. Algumas observações metodológicas prévias – Bakhtin já apresenta alguns dos princípios essenciais para a ADD.

Intitulamos este capítulo “O discurso em Dostoiévski” porque temos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva, e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio da abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os

que têm importância primordial para os nossos fins. Por esse motivo as nossas análises subsequentes não são linguísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na metalinguística, submetendo-a como um estudo – ainda não constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da linguística. As pesquisas metalinguísticas, evidentemente, não podem ignorar a linguística e devem aplicar seus resultados. A linguística e a metalinguística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e multifacético – o discurso –, mas estudam sob diferentes aspectos e diferentes ângulos de visão. Devem completar-se mutuamente, e não se fundir. Na prática, os limites entre elas são violados com muita frequência. (BAKHTIN, 2010b, p. 207).

Nesse instante da obra, Bakhtin faz referência a algumas questões essenciais para a formulação de uma nova forma de se abordar um fenômeno complexo e de muitas faces – o discurso. Para que tal empreendimento seja possível, Bakhtin explica que apenas uma análise linguística no sentido estrito do termo – estruturalista de caráter saussereano – não seria suficiente, sendo necessário uma metalinguística, uma forma de estudo constituída por disciplinas a serem definidas, inclusive a Linguística17, que possibilitariam a abordagem do discurso sob diferentes enfoques que se completariam, mas não se fundiriam, mesmo que na prática seus limites fossem ultrapassados.

Se para a Linguística de herança estruturalista-saussureana o discurso é estudado sob o enfoque da língua, a proposta Bakhtiniana de metalinguística se preocupa em analisar o discurso a partir de um ângulo de visão dialógico, em que as relações dialógicas seriam responsáveis por dar o caráter concreto e vivo da língua; relações dialógicas essas que foram abstraídas pela Linguística estruturalista a fim de analisar a língua enquanto sistema gramatical.

Mas é precisamente esse ângulo dialógico que não pode ser estabelecido por meio de critérios genuinamente linguísticos, porque as relações dialógicas, embora pertençam ao campo do discurso, não pertencem a um campo puramente linguístico do seu estudo.

As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própria fala) são objetos da metalinguística. (BAKHTIN, 2010b, p. 208).

A língua trabalhada como objeto da Linguística estruturalista pouco revela sobre a língua em uso, ou seja, enquanto linguagem. “Na linguagem, como objeto da linguística, não

17 É importante esclarecer que essa concepção de Linguística tratada por Bakhtin dialoga com a tradição estruturalista dos estudos de língua. Em termos contemporâneos, cabe destacar que além da permanência de estudos nessa tradição, a Linguística enquanto ciência se diversificou a partir do desenvolvimento de inúmeras correntes epistemológicas. Portanto, poderíamos sugerir a existência de “Linguísticas”. Inclusive, no caso do Brasil, há um movimento de separação entre a Linguística “tradicional” e a Linguística Aplicada que contribui para compreender esse movimento. (MOITA LOPES, 2008).

há e nem pode haver quaisquer relações dialógicas” (BAKHTIN, 2010b, p. 208). As relações dialógicas não podem existir entre elementos que constituem a língua enquanto sistema gramatical. As palavras soltas – descontextualizadas – de um dicionário e as unidades meramente sintáticas das orações, por exemplo, abstraem forçosamente todas as relações dialógicas passíveis de serem analisadas em um enunciado enquanto discurso materializado. A Linguística tradicional estuda as particularidades sintáticas léxico-semânticas como fenômenos no plano da língua, não podendo abordar a especificidade das relações dialógicas que exigem mais do que apenas o estudo da língua enquanto sistema.

Assim, as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a linguística estuda a “linguagem” propriamente dita com sua lógica específica na sua generalidade, como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai consequentemente as relações propriamente dialógicas. Essa relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico e, por isso, tais relações devem ser estudadas pela metalinguística, que ultrapassa os limites da linguística e possui objeto autônomo e metas próprias. (BAKHTIN, 2010b, p. 209).

Brait (2008, p. 12-13, grifo da autora) destaca que é justamente a “bivocalidade de ‘dialógico’, situado no objeto e na maneira de enfrentá-lo, que caracteriza a novidade da Metalinguísitica e de suas consequências para os estudos da linguagem”. Ou seja, a abordagem do discurso deve ser realizada a partir de um ponto de vista interno, da língua, e de uma perspectiva externa, do extralinguístico. “Excluir um dos polos é destruir o extralinguístico”. (BRAIT, 2008, p. 13).

As relações dialógicas personificam-se na linguagem quando tornam-se discurso, ou seja, quando passam para outro campo de existência e se materializam em forma de enunciado, ganhando uma autoria cuja posição do sujeito esse enunciado expressa. Em suma, todo discurso, enunciado materializado, é a personificação de relações dialógicas em linguagem.

É somente no entendimento da complexidade das relações dialógicas que podemos compreender o enfrentamento teórico-analítico da linguagem no prisma bakhtiniano a partir do(s) discurso(s) materializado(s) em enunciado(s).

O enfrentamento bakhtiniano da linguagem leva em conta, portanto, as particularidades discursivas que apontam para contextos mais amplos, para um extralinguístico aí incluído. O trabalho metodológico, analítico e interpretativo com textos/discursos se dá – como se pode observar nessa proposta de criação de uma nova disciplina, ou conjunto de disciplinas –, herdando da Linguística a possibilidade de esmiuçar campos semânticos, descrever e analisar micro e macro-organizações sintáticas, reconhecer, recuperar e interpretar marcas e articulações enunciativas que caracterizam o(s) discurso(s) e indiciam sua heterogeneidade constitutiva, assim como a dos sujeitos aí instalados. E mais ainda: ultrapassando a necessária análise dessa “materialidade linguística”, reconhecer o gênero a que pertencem os textos e os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades em que esses discursos se inserem e, a partir desse diálogo com o objeto de análise, chegar ao inusitado de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar ativamente de esferas de produção, circulação e recepção, encontrando sua identidade nas relações dialógicas estabelecidas com outros discursos, com outros sujeitos. (BRAIT, 2010b, p. 13-14).

Advindo da obra Problemas da poética de Dostoiévski, outro elemento marcante da teoria/análise bakhtiniana de linguagem, a qual serve de referência estruturante da ADD, é a recusa de se lançar mão de categorias de análise à priori, a fim de serem utilizadas de forma mecânica, instrumental, como maneira de se compreender a produção de sentido do enunciado. Em suma, não são as categorias, os conceitos, as noções que servem, por si só, para a compreensão do sentido discursivo dos enunciados por meio da exploração das relações dialógicas. Não se lança mão de uma noção, categoria ou conceito para depois se constatar sua presença num enunciado. É a própria análise que pode ser capaz de fazer surgir as categorias, conceitos e noções ou, ainda, inclusive, dar origem as novas noções, conceitos e categorias. É claro que certas noções, conceitos, categorias surgidas no âmbito da teoria- metodologia bakhtiniana desenvolvida pelo próprio Círculo e ampliada por inúmeros estudiosos bakhtinianos se consagraram, e outras podem vir a se consagrar, a ponto de serem utilizadas para a compreensão dialógica dos sentidos da discursividade enunciativa; mas jamais tais categorias, noções e conceitos podem ser vistos como uma régua, como unidade de medida comparativa entre esses elementos e o discurso materializado nos enunciados. As noções, categorias e conceitos podem ser vistos como elementos esclarecedores da filosofia e da análise de Bakhtin, de seu Círculo e de seus seguidores como elementos indispensáveis para a compreensão da dialogia da linguagem, mas jamais como meras ferramentas de análise. É por meio da obra Problemas da poética de Dostoiévsi que se pode reconhecer um procedimento analítico essencial para uma teoria/análise dialógica do discurso. A partir da análise de um corpus discursivo, dos sujeitos e das relações que o corpus instaura que se chega a uma categoria, a um conceito ou a uma noção. Dessa forma, uma das características

elementares de uma teoria/análise dialógica do discurso é “não aplicar conceitos a fim de compreender um discurso, mas deixar que os discursos revelem sua forma de produzir sentido, a partir do ponto de vista dialógico, num embate”. (BRAIT, 2008, p. 24).

A citação a seguir sintetiza o que foi exposto até aqui em termos da configuração de uma teoria/análise dialógica do discurso.

As contribuições bakhtinianas para uma teoria/análise dialógica do discurso, sem configurar uma proposta fechada e linearmente organizada, constituem de fato um corpo de conceitos, noções e categorias que especificam a

postura dialógica diante do corpus discursivo, da metodologia e do pesquisador. A pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise das especificidades discursivas constitutivas de situações em que a linguagem e determinadas atividades se interpenetram e se interdefinem, e do compromisso ético do pesquisador com o objeto, que, dessa perspectiva, é um sujeito histórico. (BRAIT, 2008, p. 29).

Como já explicitado, em toda o obra do Círculo bakhtiniano não existe nenhuma discussão exclusivamente metodológica, descasada de toda a preocupação teórica sobre a linguagem. E isso não poderia ser diferente, pois a obra do Círculo nega constantemente qualquer tipo de análise mecânica dos enunciados. Mas isso não significa a negação de princípios metodológicos.

Em certos momentos das obras do Círculo são explicitados alguns princípios metodológicos, mas, como não poderia deixar de ser, articulados a toda arquitetônica teórica bakhtiniana. Em Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, no capítulo A interação verbal, Bakhtin/Volochinov sugere alguns caminhos analíticos, articulando considerações sobre a enunciação e a comunicação verbal. De acordo com Bakhtin/Volochinov, uma enunciação, por mais significativa e completa que possa ser, é “apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 128, grifo do autor). Disso decorre a necessidade do estudo das relações entre a interação concreta (do enunciado) e a situação extralinguística, considerada desde a situação imediata do ato enunciativo até o contexto social mais amplo que permeia essa situação imediata. “A comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora desse vínculo com a situação concreta. A comunicação verbal entrelaça-se inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 128). Abordada dessa maneira, a língua deve ser percebida em seu caráter vivo, evoluindo historicamente na comunicação verbal concreta, e não como mero sistema

linguístico abstrato das formas (a gramática) ou como obra individual do psiquismo dos falantes. É a partir dessas considerações que Bakhtin/Volochinov sugerem uma ordem metodológica para o estudo da língua/linguagem.

1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza.

2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal.

3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual.

É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua: as relações sociais evoluem (em função das infraestruturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem em consequência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 129).

1.5 A MEMÓRIA DO OBJETO E A DISCURSIVIDADE PELO O EXTRAVERBAL

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