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Questões centrais da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin: a unicidade e a eventicidade do ser, a relação eu/outro(s) e a dimensão axiológica da vida

ESTUDOS DE LINGUAGEM NAS CIÊNCIAS HUMANAS

1.1 O CÍRCULO DE BAKHTIN E A FILOSOFIA DA LINGUAGEM

1.1.1 Questões centrais da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin: a unicidade e a eventicidade do ser, a relação eu/outro(s) e a dimensão axiológica da vida

Mikhail M. Bakhtin e o Círculo8 têm importância inquestionável na história do pensamento linguístico em decorrência de suas obras de natureza filosófica e científica sobre a linguagem. Porém, devido seus estudos e suas propostas de análise sobre a linguagem, a importância do pensamento bakhtiniano alcançou outras ciências humanas além da Linguística, entre elas a Antropologia, a Sociologia, a História, a Psicologia e outras demais que podem ter interesse em estudos sobre o caráter discursivo da linguagem.

A filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin tem como pressuposto fundamental que a linguagem é um fenômeno social da interação verbal9. Tal consideração, no entanto, não elimina o sujeito da linguagem como ser único e responsável/responsivo/respondível10. Baseando sua concepção de linguagem como interação social e a consciência do sujeito dentro da dinâmica sociossemiótica, o Círculo articula o indivíduo e o social, evitando a dicotomia, o determinismo e o idealismo que poderiam surgir no âmbito dos seus estudos de linguagem. Nesse sentido, a linguagem funda a articulação entre o social e o individual e sua materialidade possibilita uma abordagem não-idealista da consciência; sua heterogeneidade permite uma análise não-determinista; e sua responsividade revela a convergência entre o indivíduo e a sociedade. Em suma, “para o Círculo de Bakhtin a consciência é social de ponta a ponta (...) e singular de ponta a ponta” (FARACO, 2009, p. 151).

8 A denominação “Círculo de Bakhtin”, cunhada a posteriori por estudiosos do pensamento bakhtiniano, refere- se a um grupo de intelectuais que se reuniu regularmente na Rússia, entre 1919 e 1929, para discutir questões relacionadas à filosofia e a linguagem. Os interesses sobre a linguagem, de acordo com Faraco (2009, p.31), unia os diversos membros do Círculo, entre os quais incluíam-se o filósofo Matvei I. Kagan (1889-1937), o biólogo Ivan I. Kanaev (1893-1983), a pianista Maria V. Yudina (1899-1970), o professor e estudioso de Literatura Lev V. Pumpiansky (1891-1940), além dos mais citados membros do grupo, o filósofo Mikhail M. Bakhtin (1895- 1975), o linguista Valentin N. Voloshinov (1895-1936) e o crítico literário Pavel N. Medvedev 1891-1938). 9 O fato da teoria bakhtiniana ter sido elaborada predominantemente na primeira metade do século XX, em suas obras o Círculo normalmente faz menção à linguagem enquanto a língua em uso, ou seja, a linguagem verbal, nas suas expressões orais ou escritas. Isso decorre do fato do Círculo dialogar, naquele momento, principalmente com a Linguística. No entanto, em algumas das obras do Círculo também há a incorporação do caráter não- verbal da linguagem, ou seja, a linguagem visual. Além disso, os estudos realizados no âmbito da Análise Dialógica do Discurso têm insistido na necessidade dos estudos de linguagem encararem a “dimensão verbo- visual de um enunciado, de um texto, ou seja, dimensão em que tanto a linguagem verbal como a visual desempenham papel constitutivo na produção de sentidos, de efeitos de sentido, não podendo ser separadas, sob pena de amputarmos uma parte do plano de expressão e, consequentemente, a compreensão das formas de produção de sentido desse enunciado, uma vez que ele se dá a ver/ler, simultaneamente” (BRAIT, 2013, p. 44). 10 Em geral, nas traduções em português das obras do Círculo, na produção em português ou traduzida para o português de obras sobre o Círculo, ou ainda na produção de conhecimento embasada no pensamento do Círculo, as expressões responsável, responsivo e respondível e suas variações responsabilidade, responsividade e

respondibilidade são utilizadas para a questão do ato/ação do sujeito no sentido de responder a alguém ou a alguma coisa e, ao mesmo tempo, no sentido de responder pelos próprios atos. Em russo, a língua original das obras do Círculo, a palavra otvetstvennost designa esse duplo caráter. Nesta tese, a utilização desses termos varia conforme a referência teórica utilizada no respectivo momento.

Bakhtin (...) será um crítico contumaz do racionalismo (...), isto é, de um pensamento que interessa o universal e jamais o singular; a lei geral e jamais o evento; o sistema e jamais o ato individual (...). Incomoda-lhe a ideia de sistema em que não há espaço para o individual, o singular, o irrepetível, o evêntico. (FARACO, 2009, p. 19-20).

Em seus primeiros textos Bakhtin buscou realizar uma abrangente reflexão filosófica, destacando-se as concepções de unicidade e eventicidade do ser, a contraposição eu/outro e o caráter axiológico inerente ao existir humano. Nesse sentido, para Bakhtin as posições sócio- avaliativas, colocadas numa dinâmica de múltiplas inter-relações responsivas, são forças que movimentam o universo social.

O evento do ser, para Bakhtin, é único e irrepitível, é “o ato concreto e dinâmico de instauração do ser no mundo, de apresentação do ser à consciência dos sujeitos” (SOBRAL, 2008, p. 27). E ao se examinar um ato enquanto enunciado, não se deve separar seu conteúdo, seu resultado, do processo de sua realização e nem da rede de atos realizados pelas partes envolvidas. É no interior do processo da realização do ato e da rede de atos realizados pelas partes envolvidas que o ato em si assume sentido. “Da perspectiva de uma análise bakhtiniana (...) unem-se o momento do ato como processo e seu momento como produto, o continente e o conteúdo do ato, entendidos como dois momentos necessários e imprescindíveis de sua definição” (SOBRAL, 2008, p. 30). Isso impediria de se ver o ato como ocorrência isolada de outros eventos. “Uma análise restrita ao conteúdo do ato e ao ato como produto não permitiria ver a outra face de Jano que é o processo complexo do ato e seu continente, ou contexto, que lhe dá sentido, o evento que lhe serve por assim dizer de cenário enunciativo” (SOBRAL, 2008, p. 31).

O ato, para Bakhtin, resulta de um pensamento não-indiferente, envolvendo o conteúdo do ato e o seu processo unidos à valoração (avaliação) do sujeito em relação ao seu próprio ato vinculado ao mundo social. Dessa forma, a sucessão ininterrupta de atos e experiências vividas constituem a vida do sujeito. “Assim, a experiência no mundo humano é sempre mediada pelo agir situado e avaliativo do sujeito, que lhe confere sentido a partir do mundo dado, o mundo como materialidade concreta” (SOBRAL, 2008, p. 22). Porém, tal consideração não pode ser lida a partir de uma ótica de relatividade dos valores dos atos, pois a obra Bakhtiniana enfatiza a valoração dos atos para os sujeitos, entre sujeitos, numa dada situação. Bakhtin concebe o sujeito na relação “eu-para-mim, eu-para-o-outro e o outro-para- mim” (SOBRAL, 2008, p. 22).

Ou seja, Bakhtin afirma que “o princípio constitutivo maior do mundo real do ato realizado é precisamente a contraposição concreta eu/outro” (FARACO, 2009, p. 21, grifo do autor). No entanto, o eu e o outro enxergam o mundo sob valorações distintas, determinadas por diferentes posições axiológicas que constituem nossos atos. É na contraposição de valores, no plano da alteridade, que os atos individuais são orientados. Para Bakhtin, viver significa posicionar-se em relação a valores. Por sua vez, em Bakhtin, o ato enunciativo é visto como ato singular, irrepetível e concreto, decorrente de atitude responsiva. O que se percebe é que há “correlação estreita entre o enunciado e a situação concreta de sua enunciação, bem como o significado de enunciado e uma atitude avaliativa” (FARACO, 2009, p. 24). Nesse sentido, os posicionamentos axiológicos levam a impossibilidade de existência de enunciados neutros, pois estes afloram em contexto cultural repleto de significados e valores, sendo sempre um ato responsivo decorrente da tomada de posição no contexto em questão.

Mesmo que em seus primeiros textos Bakhtin não tenha tratado da questão da linguagem propriamente dita, ela já aparece em alguns comentários, sendo apresentada como atividade, e não como sistema abstrato linguístico. As questões relacionadas à valoração dos enunciados e a necessidade de vê-los no mundo da vida e não como meras abstrações teóricas opõe o pensamento bakhtiniano à linguística estruturalista, a qual enfoca o enunciado como um fenômeno exclusivo da língua por ela mesma, e ao método formal dos estudos literários, o qual encara a questão dos gêneros da linguagem ancorada em elementos formais da língua. Tanto o enunciado na linguística estruturalista quanto os gêneros no formalismo literário foram apartados do ato de sua materialização e, portanto, tornam-se indiferentes de suas dimensões axiológicas. Tal distanciamento da linguística estruturalista e do formalismo literário não significa a negação de ambas, mas sim as suas insuficiências em termos de possibilidade de aproximação entre o mundo da vida e o mundo da teoria. Cabe entender que a linguagem desenvolveu-se ao longo do tempo, no mundo da vida, e somente depois foi abordada pelo pensamento teórico. Nesse sentido, a palavra (o verbal, mas também o visual e outros signos), expressão da materialização dos atos realizados, deve ser entendida de forma holística, considerando-se seus aspectos sintáticos, semânticos e axiológicos. Todavia, “dar sentido ao vivido verbalmente é um processo possível, mas sempre aberto, sua completude é sempre postergada” (FARACO, 2009, p. 26).

Em síntese, para o Círculo a linguagem é o fenômeno social da interação a partir de suas múltiplas manifestações; é um conjunto de práticas socioculturais e não um mero sistema formal. A linguagem, nesse sentido, concretiza-se em diferentes gêneros do discurso, que por

sua vez concretizam diferentes vozes sociais. A interação, assim sendo, diz respeito a toda a comunicação verbal, sendo o diálogo face a face apenas um dos seus tipos. Além disso, a interação sempre se dá situada num complexo quadro de relações socioculturais, tanto em correlação com a situação social mais imediata quanto com o meio social mais amplo. No entanto, não são os eventos em si que interessam, mas sim as relações dialógicas que acontecem nesses eventos. “Seu foco efetivo de atenção são as relações dialógicas, entendidas como relações de sentido que decorrem da responsividade (da tomada de posição axiológica) inerente a todo e qualquer enunciado” (FARACO, 2009, p. 121).

Por sua vez, os sujeitos envolvidos nessas relações dialógicas são indivíduos que se organizam em sociedade, sendo marcados pela heterogeneidade das relações sociais que se materializam semioticamente, numa complexa rede de signos, no interior das diversas esferas da atividade humana. Nessas esferas são gerados múltiplos gêneros do discurso, entendidos como formas relativamente estáveis de dizer, os quais os sujeitos transitam. Essas formas de dizer possuem valores, diferentes “verdades sociais”, que exprimem diferentes refrações do mundo, as quais estão materializadas semioticamente, caracterizando a realidade da linguagem, estratificada e repleta de embates promovidos pela diversidade de vozes sociais. Trata-se da heteroglossia dialogizada, caracterizada pelo embate de discursos, em que ocorre a permanente tensão das forças centrípetas – aquelas que buscam uma monologização dos discursos e, consequentemente, o apagamento da heteroglossia – e centrífugas, as que resistem à monologização por meio da multiplicação da heteroglossia. Dessa heteroglossia, os enunciados se manifestam como uma tomada de posição com significação valorativa, numa correlação entre o verbal e os horizontes sociais de valor.

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