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ESTUDOS DE LINGUAGEM NAS CIÊNCIAS HUMANAS

2 O SENTIDO DO DISCURSO POR MEIO DO EXTRAVERBAL DOS ENUNCIADOS: A MEMÓRIA DO OBJETO E AS RELAÇÕES DIALÓGICAS

2.1.1 A ascensão do discurso neoliberal

A partir dos anos 1970, o fortalecimento da visão economicista de que o individuo racional e maximizador da utilidade deve ser libertado de todas as amarras que o impeçam de colocar em ação suas forças criativas marca o momento em que o pensamento neoliberal começa a pôr em prática o discurso de que qualquer intervenção do Estado em nome do bem- estar coletivo está fadada ao fracasso. A “hipótese de expectativas racionais renovou os argumentos da escola clássica em favor do laissez-faire” (BOYER, 1999, p. 3). Defendido inicialmente por uma pequena minoria, quarenta anos depois diversos elementos do discurso neoliberal passaram a fazer parte das teorias econômicas produzidas na atualidade.

Ainda em 1982, quando escreveu um novo prefácio para sua obra Capitalismo e Liberdade, Milton Friedman alertava àqueles que compartilhavam suas visões sobre o neoliberalismo que era necessário “manter em aberto as opções, até as circunstâncias tornarem necessária a mudança” (FRIEDMAN, 1988, p.7). A mudança no capitalismo a qual Friedman se referia era a implantação de uma agenda neoliberal, o que ocorreu com força total principalmente a partir dos anos 1980. “Esta, creio eu, é a nossa função fundamental: desenvolver alternativas para os programas existentes, conservá-las vivas e disponíveis, até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável” (FRIEDMAN, 1988, p. 7).

Antes das mudanças impostas pelo discurso neoliberal por meio de seus representantes econômicos e políticos, o sistema capitalista, entre a Segunda Guerra Mundial e meados da década de 1970, vivia uma fase em que os Estados nacionais capitalistas tinham maior capacidade de intervenção nas próprias dinâmicas do capital. A ingerência do Estado na economia nesse período relacionava-se à descrença de que o capitalismo por si só, baseado nas leis de mercado, fosse capaz de promover o bem-estar econômico. Sem dúvida, a grande Crise de 1929 teve papel fundamental na pouca fé dos Estados na capacidade de equilíbrio do capitalismo.

A partir dos anos 1970, esse Estado regulador tornou-se o grande alvo da doutrina neoliberal. Para Friedman (1988), muitos se iludiam com o controle eficiente do Estado por

empolgação com a expansão das ideias socialistas e com a implantação do socialismo propriamente dito em mais países após a Revolução Russa. “A conversão dos intelectuais foi alcançada por uma comparação entre o estado de coisas presente na ocasião, com todas as suas injustiças e defeitos, e o estado de coisas hipotético – o que deveria ser. O real foi comparado com o ideal” (FRIEDMAN, 1988, p.177).

As condições da regulação do capitalismo e da expansão do socialismo começaram a mudar após algumas décadas de experiência de intervenção governamental. Friedman acreditava que “a diferença entre a operação real do mercado e sua operação ideal – embora realmente grande – não é nada em comparação com a diferença entre os efeitos reais da intervenção do governo e os efeitos pretendidos” (FRIEDMAN, 1988, p.178). Na lógica do discurso neoliberal, a ação intervencionista do Estado mostrou um resultado muito negativo, devido à dificuldade do Estado em alcançar os objetivos previstos. “Fomos capazes de suportar e superar tais medidas unicamente devido à extraordinária fecundidade do mercado. A mão invisível fez muito mais pelo progresso do que a mão visível pelo retrocesso” (FRIEDMAN, 1988, p.180). As posições neoliberais de Friedman são defendidas por todos que acreditam que a “economia dita de comando ou dirigida ou, simplesmente, intervencionista causa muito mais estragos do que supõem os filósofos da totalidade e da teleologia da história humana” (BICHIR, 1991, p. 10). Essa forma de pensar converge com a opinião de outro defensor dos princípios liberais, Friederich August von Hayek18 (1990, p. 61), segundo qual o “movimento favorável à planificação é um movimento contrário à concorrência, uma (...) bandeira sob a qual se uniram os velhos inimigos do mercado livre”.

Em termos históricos, o neoliberalismo é fruto das sementes filosóficas e econômicas do liberalismo clássico, lançadas ainda no século XVIII, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Ludwing von Mises19 (1991, p. 13) afirma que mesmo diante do fato de que as políticas liberais defendidas nos trabalhos de importantes economistas como Adam Smith, John Stuart Mill, David Ricardo e Jean-Baptiste Say nunca tenham sido aplicadas em sua totalidade, o liberalismo do século XIX foi capaz de produzir um desenvolvimento econômico extraordinário devido à liberação do poder produtivo do ser humano. “As barreiras que, em outros tempos, separavam senhores e servos haviam caído. Agora, havia apenas cidadãos com

18 O economista austríaco, naturalizado inglês, Friederich August von Hayek, nascido em 1899, foi um dos principais representante da corrente neoliberal.

19 Nascido em 1881, em Lemberg, no então Império Austro-Húngaro, Ludwig von Mises formou-se em Direito e Economia pela Universidade de Viena e liderou por décadas o que se convencionou chamar a “Escola Austríaca”. Autor de vasta obra econômica, Mises lançou sementes neoliberais em todo mundo, influenciando inúmeros pensadores, entre eles Friedrich August Von Hayek, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 1974 e um de seus mais importantes seguidores.

direitos iguais” (MISES, 1991, p. 14). Na visão de Mises, os países que mais abraçaram as diretrizes liberais foram aqueles onde a pirâmide social se compunha, essencialmente, não daqueles que nasceram em famílias ricas, mas daqueles que teriam saído da pobreza por seus próprios meios, pelo seu esforço, enfim, por seus méritos.

Não obstante, alguém estará coberto de razão se chamar nossa era de Idade do Capitalismo, porque tudo o que se criou de riqueza em nosso tempo, pode-se dizer, tem sua origem em instituições capitalistas. Graças àquelas ideias liberais, que ainda permanecem vivas em nossa sociedade, e ao que nelas ainda sobrevive do sistema capitalista, a grande massa de nossos contemporâneos pode gozar de uma padrão de vida bem acima do que, há poucas gerações, era possível somente aos ricos e aos detentores de privilégios especiais (MISES, 1991, p. 20).

Apesar de todas as virtudes do liberalismo defendidas por Mises, ainda no próprio século XIX surgiram os seus primeiros opositores, com críticas que culpavam o sistema capitalista de colocar os interesses das classes abastadas acima dos interesses de outras classes. No entanto, para Mises, tais “(...) críticos são tão injustos quanto ignorantes. Por escolher esse modo de ataque, demonstram ser bem conscientes (...) da fraqueza de sua própria defesa. Aproveitam-se de armas venenosas, porque, de outro modo, não teriam possibilidade de sucesso” (MISES, 1991, p. 18-19). Segundo Mises, os demagogos são louvados por recomendar medidas sem levar em conta o mal que provocam e um liberal é considerado inimigo do povo por condenar determinadas medidas populares, mas de consequências negativas. Um liberal considera tal ação racional se distinguindo de uma ação irracional pelo fato de envolver sacrifícios provisórios. “Tais sacrifícios são apenas aparentes, uma vez que são contrabalanceados pelos resultados favoráveis que surgem mais tarde” (MISES, 1991, p. 18-19).

Sem dúvida, na retórica costumeira aos demagogos, tais fatos são representados de modo bastante diferente. Ao escutá-los, alguém poderia pensar que todo o progresso das técnicas de produção reverte em benefício exclusivo de uns poucos favorecidos, enquanto as massas cada vez mais se afundam na miséria. Entretanto, é necessário apenas um momento de reflexão para compreender que os frutos de todas as inovações tecnológicas e industriais concorreram para ampliar a satisfação das carências das grandes massas (MISES, 1991, p. 20).

Na visão neoliberal, o mercado livre é o fator mais importante na redução das restrições impostas historicamente à sociedade. Para Friedman, o capitalismo pode contribuir para acabar com a discriminação, pois o “mercado livre separa a eficiência econômica de

outras características irrelevantes" (FRIEDMAN, 1988, p. 100), entre elas as questões de raça, cor, religião e classe, devido ao fato de que há uma substituição dos acordos em termos de status pelos acordos em termos de contratos20. “Um homem de negócios (...) que expresse (...) preferências não relacionadas com a eficiência produtiva, acabará por ficar em posição de desvantagem” (FRIEDMAN, 1988, p. 100).

Uma das formas utilizadas por Friedman para justificar a suposta vantagem da economia de mercado era constantemente lançar mão do princípio da liberdade. Isso ocorria mesmo quando ele "desqualificava" a economia de mercado. Para Friedman, apenas o capitalismo pode proporcionar a verdadeira liberdade ao homem.

O fato de não serem válidos esses argumentos contra a chamada ética capitalista não significa, necessariamente, que a ética capitalista seja aceitável. É difícil para mim justificar tanto a sua aceitação quanto a sua rejeição ou justificar qualquer princípio alternativo. Prefiro adotar o ponto de vista de que não pode, em si próprio ou por si próprio, ser considerado um princípio ético e que deve ser considerado como instrumento ou corolário de outro princípio, como por exemplo, a liberdade (FRIEDMAN, 1988, p. 148).

Mesmo com o represamento dos princípios liberais depois da Crise de 1929 e da Segunda Guerra Mundial, a semente liberal sobreviveu aos ataques de seus opositores e, a partir dos anos de 1970, fez frutificar o neoliberalismo. Segundo Perry Anderson (1995), o neoliberalismo já começa a se desenvolver no fim da Segunda Guerra Mundial, principalmente na porção capitalista da Europa e na América Anglo-Saxônica. Seu texto de origem é o livro O caminho da servidão, lançado em 1944, por Friedrich August von Hayek. “Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política” (ANDERSON, 1995, p. 9).

No entanto, para o descontentamento de Hayek, logo após a Segunda Guerra Mundial, as bases do Estado de bem-estar social foram se constituindo e se ampliando por toda a Europa e em outros países. Diante desse contexto, foi fundada a Sociedade de Mont Pèlerin, na Suiça, com o objetivo principal de atacar o Estado Social europeu e o New Deal dos

20 Convicto de que o mecanismo econômico pode combater qualquer tipo de discriminação, Friedman se posiciona de forma contrária à existência de comissões para estudar e combater práticas discriminatórias na contratação de serviços por motivos de raça, cor ou religião, pois isso constituiria clara interferência na liberdade individual de estabelecer contratos de trabalho com quem quer que seja, pois tais intervenções do Estado reduziriam a liberdade e limitariam a cooperação voluntária. “Queremos um mercado livre de ideias – de modo que as ideias tenham a oportunidade de conquistar a maioria ou a aceitação quase unânime, mesmo se forem sustentadas inicialmente por poucos” (FRIEDMAN, 1988, p. 104).

Estados Unidos. Entre os seus membros mais ilustres na defesa dos ideais do liberalismo econômico destacavam-se Friedrich Hayek, Milton Friedman e Ludwig Von Mises. Anderson (1995, p. 10) descreve essa associação como “uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos”.

Se no início os princípios neoliberais não obtiveram muito êxito, uma vez que a mensagem neoliberal contra a regulação do mercado por parte do Estado parecia exagerada, visto que o capitalismo pós-Segunda Guerra Mundial, principalmente entre os anos de 1950 e 1960, apresentou expansão econômica sem precedentes21; porém, quando a economia capitalista entrou em um período de baixo crescimento e com elevados índices de inflação, a partir de meados dos anos 1970, o discurso neoliberal encontrou excelentes condições de amadurecimento e convencimento a que Friedman (1988) fez menção em sua obra Capitalismo e Liberdade. Dessa forma, os argumentos contra a regulação do Estado passaram a ter maior repercussão.

Hayek e seus companheiros argumentavam que o novo igualitarismo (muito relativo, bem entendido) deste período, promovido pelo Estado de Bem- Estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. Desafiando o consenso oficial da época, eles argumentavam que a desigualdade era um valor positivo (ANDERSON, 1995, p. 10).

Os neoliberais culpavam os gastos sociais excessivos do Estado (considerados responsáveis pela redução drástica dos lucros empresariais, em decorrência da política tributária excessiva, e pelo aumento exagerado da inflação, devido a política monetária expansiva) e o poder excessivo dos sindicatos dos trabalhadores (considerado responsável por corroer o processo de acumulação capitalista mediante pressões por aumentos salariais) pela crise que se estabeleceu a partir dos anos 1970. Dessa maneira, as posições neoliberais sobre o capitalismo e a crise passaram a ser mais escutadas e executadas. A proposta geral era

(...) manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa "natural" de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras,

isso significava reduções de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas (ANDERSON, 1995, p. 11).

O resultado dessa insistência contra a ação mais ampla do Estado provocou, a partir dos anos 1970, uma crise das ideias keynesianas predominantes desde a Segunda Guerra Mundial, fazendo com que o Estado enquanto agente do desenvolvimento e equilíbrio social se enfraquecesse consideravelmente.

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