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As relações dialógicas como forma de entendimento do sentido do discurso dos enunciados

ESTUDOS DE LINGUAGEM NAS CIÊNCIAS HUMANAS

1.3 ALGUNS CONCEITOS, NOÇÕES E CATEGORIAS ELEMENTARES DO PENSAMENTO BAKHTINIANO

1.3.2 As relações dialógicas como forma de entendimento do sentido do discurso dos enunciados

O pensamento do Círculo de Bakhtin, de forma habitual e generalizada, é designado pelo termo dialogismo. “Uma das principais bases das ideias do Círculo sobre as categorias do teórico, do ético e do estético é o dialogismo generalizado como base da criação de sentidos nas várias esferas de atividade, incidindo fortemente sobre o conceito de sujeito” (SOBRAL, 2008b, 105). Por sua vez, o dialogismo para Amorim (2004) pode ser visto como uma via de investigação, uma maneira de interrogar e não um método de pesquisa ou um modelo de escrita.

O diálogo é adotado como a grande metáfora que arremata o pensamento do Círculo sobre linguagem e sobre a criação ideológica. “Ser significa comunicar-se pelo diálogo” (BAKHTIN, 2010b, p. 293). O diálogo, para o Círculo, é um conceito-fonte irradiador e organizador da reflexão, sendo definido “como a alternância entre enunciados, entre acabamentos, ou seja, entre sujeitos falantes, entre diferentes posicionamentos” (MARCHEZAN, 2008, 116).

Mas não podemos entender o diálogo aí representado em seu sentido comum, ou seja, como sinônimo de conversa de personagens em textos escritos ou dramatizados, ou ainda na interação face a face entre falantes. O “Círculo de Bakhtin se ocupa não com o diálogo em si, mas com o que ocorre nele, isto é, com o complexo de forças que nele atua e condiciona a forma e as significações do que é dito ali” (FARACO, 2009, p. 61).

As relações dialógicas – fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do diálogo expresso composicionalmente – são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e importância. (BAKHTIN, 2010b, p. 47).

O diálogo, no sentido restrito do termo, só interessa, portanto, como um dos diversos eventos em que se manifestam as relações dialógicas. “O objeto efetivo do dialogismo é constituído, portanto, pelas relações dialógicas nesse sentido lato” (FARACO, 2009, p. 62, grifo do autor). Caso o diálogo face a face seja observado nesse sentido amplo, como expressão do entrecruzamento de múltiplas verdades sociais, como confrontação das mais diferentes refrações sociais expressas em enunciados postos em relação, aí sim ele será de interesse em termos de análise.

O Círculo, portanto, olha para o diálogo face a face do mesmo modo que olha para uma obra literária, um tratado filosófico, um texto religioso, isto é, como eventos da grande interação sociocultural de qualquer grupo humano; como espaços de vida da consciência socioideológica; como eventos atravessados pelas mesmas grandes forças dialógicas (as forças da

heteroglossia dialogizada). (FARACO, 2009, p. 62, grifo do autor).

As relações dialógicas são relações de sentido que se estabelecem entre enunciados, tendo como referência a interação verbo-visual como um todo, e não apenas a interação face a face. Mesmo quando os enunciados estão separados uns dos outros no tempo e no espaço, não sabendo nada uns dos outros, acabam por estabelecer relações dialógicas quando confrontados no plano do sentido. As relações dialógicas devem “personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas” (BAKHTIN, 2010b, p. 209).

Mas não é possível estabelecer relações dialógicas apenas por meio dos elementos do sistema linguístico, ou seja, pela língua por si mesma, pois as relações dialógicas são relações entre índices de valor. “Para haver relações dialógicas, é preciso que qualquer material linguístico (ou de qualquer outra materialidade semiótica) tenha entrado na esfera do discurso,

tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a posição de um sujeito social” (FARACO, 2009, p. 66, grifo do autor).

Diálogo e enunciado são, assim, dois conceitos interdependentes. O enunciado de um sujeito apresenta-se de maneira acabada permitindo/provocando, como resposta, o enunciado do outro; a réplica, no entanto, é apenas relativamente acabada, parte que é de uma temporalidade mais extensa, de um diálogo social mais amplo e dinâmico. (MARCHEZAN, 2008, p. 117).

Para Bakhtin (2010, p. 331) o diálogo real – constituído, por exemplo, pela conversa do cotidiano, pelas discussões científicas ou ainda políticas – “é o tipo mais externamente notório e simples de relações dialógicas. Contudo, as relações dialógicas não coincidem, de maneira nenhuma, com as relações entre as réplicas do diálogo real; são bem mais amplas, diversificadas e complexas”.

Dois enunciados distantes um do outro, tanto no tempo quanto no espaço, que nada sabem um sobre o outro, no confronto dos sentidos revelam relações dialógicas se entre eles há ao menos alguma convergência de sentidos (ainda que seja uma identidade particular do tema, do ponto de vista, etc.). (BAKHTIN, 2010, p. 331).

Além das relações dialógicas se estabelecerem entre enunciados completos, a palavra por si mesma também pode expressar tais relações, desde que ela seja vista não como uma palavra impessoal da língua, mas sim como um signo da posição semântica de outro sujeito discursivo.

A palavra diálogo, (...), é bem entendida, no contexto bakhtiniano, como reação do eu ao outro, como ‘reação da palavra à palavra de outrem’, como ponto de tensão entre o eu e o outro, entre círculos de valores, entre forças sociais. A essa perspectiva, interessa não a palavra passiva e solitária, mas a palavra na atuação complexa e heterogênea dos sujeitos sociais, vinculada a situações, a falas passadas e antecipadas. (MARCHEZAN, 2008, p. 123).

Outro significado da palavra diálogo, que não ocorre como tal para o Círculo de Bakhtin, é aquele que se refere a ideia de geração de consenso. Para o pensamento dialógico, as relações estabelecidas podem envolver convergências ou divergências, acordos ou desacordos, aceitação ou recusa. “Nesse contexto teórico, a palavra diálogo é mesmo “mal- dita” – é Faraco quem realça – quando utilizada para caracterizar tão-somente tipos de

estrutura gramatical ou quando empregada no sentido socialmente cristalizado de consenso” (MARCHEZAN, 2008, p. 123)16.

Fica claro, então, que o Círculo de Bakhtin entende as relações dialógicas como espaços de tensão entre enunciados. Estes, portanto, não apenas coexistem, mas se tencionam nas relações dialógicas. Mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao dizer de outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com outros dizeres (outras vozes sociais): aceitar incondicionalmente um enunciado (e sua respectiva voz social) é também implicitamente (ou mesmo explicitamente) recusar outros enunciados (outras vozes sociais) que podem se opor dialogicamente a ela. (FARACO, 2009, p. 69).

O diálogo – enquanto “simpósio universal”, nas palavras de Bakhtin, ou enquanto “colóquio ideológico em grande escala”, nos dizeres de Voloshinov – deve ser compreendido como espaço de luta entre vozes sociais em que ocorre a ação de forças centrípetas (as que tentam a centralização axiológica) e as forças centrífugas (as que corroem as tendências centralizadoras). Apesar das forças centrípetas serem monologizantes, elas não perdem seu caráter dialógico, pois são um gesto responsivo no universo da heteroglossia, da mulidão de vozes sociais em diálogo.

Natureza dialógica da consciência, natureza dialógica da própria vida humana. A única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, com os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal. (BAKHTIN, 2010b, p. 329).

Trata-se de uma visão que expõe a ideia de que a vida humana é naturalmente dialógica, pois viver é fazer parte no diálogo, é investir o próprio ser no discurso, que se insere no âmbito dialógico da vida humana.

Segundo Faraco (2009, p. 74), Voloshinov assevera que enunciar é tomar uma posição social avaliativa, é posicionar-se diante de outras posições sociais avaliativas. Ou seja, enunciar é responder. Mas também enunciar é se por para uma resposta. Deriva daí a noção de compreensão responsiva. Nela, o processo de compreensão não pode ser visto como uma

16 FARACO (2009, p. 60) denomina a palavra diálogo como “mal-dita” em função do sentido variado em que ela pode se apresentar.

mera decodificação de uma mensagem. A compreensão, portanto, é uma resposta a um signo por meio de outros signos.

Na extensa citação a seguir, Bakhtin aponta as maneiras como as relações dialógicas podem ser encaradas em uma perspectiva teórica/analítica discursiva.

As relações dialógicas são possíveis não apenas entre enunciações integrais (relativamente), mas o enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta não seja interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo da posição semântica de um outro, como representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos nela a voz do outro. Por isso as relações dialógicas podem penetrar no âmago do enunciado, inclusive no íntimo de uma palavra isolada se nela se chocam dialogicamente duas vozes (...).

Por outro lado, as relações dialógicas são possíveis também entre os estilos de linguagem, os dialetos sociais, etc., desde que eles sejam entendidos como certas posições semânticas, como uma espécie de cosmovisão da linguagem, isto é, numa abordagem não mais linguística.

Por último, as relações dialógicas são possíveis também com a sua própria enunciação como um todo, com partes isoladas desse todo e com uma palavra isolada nele (...).

Lembremos para concluir que, numa abordagem ampla das relações dialógicas, estas são possíveis também entre outros fenômenos conscientizados desde que estes estejam expressos numa matéria sígnica. (BAKHTIN, 2010b, p. 210-211).

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