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2. Os museus do Porto Maravilha como objeto de estudo

2.1. Metodologia da pesquisa empírica

2.1.9. Análise dos dados

Durante todo o tempo de coleta de dados em campo nesta etapa empírica (porque mesmo para a teórica houve pesquisa exploratória de campo, sobretudo em eventos, mas incluindo algumas entrevistas), foram gravados 70 arquivos em áudio, incluindo entrevistas em profundidade com trabalhadores e gestores, com vizinhos do museu e com visitantes. Além disso, foram gravadas anotações de campo. Poucas pequenas entrevistas foram feitas de forma oportunista, sem planejamento, como foi o caso do camelô do beco em frente ao museu e de algumas professoras que acompanhavam grupos de crianças dentro do museu. Essas pequenas entrevistas de oportunidade foram tratadas como observações de campo e notas.

Os dados qualitativos oriundos de entrevistas feitas na primeira etapa foram transcritos por um pesquisador independente, de forma literal. Como minha intenção é fazer uma análise mais profunda, buscando contradições no discurso, elas não puderam ser analisadas individualmente da forma que estavam. Por isso, fiz questão de presenciar ou fazer integralmente 12 das 22 entrevistas, e produzir os diários das visitas de campo, bem como tirar as fotos para minha observação. A análise foi feita buscando similaridades entre os discursos e contradições dentro e entre eles (como em Pagès et al, 1993) e as observações feitas. Releituras e ouvir mais de uma vez cada gravação, bem como revisitar os diários foram recursos utilizados para a análise.

Os dados qualitativos de origem em entrevistas da segunda e terceira etapas foram transcritos de forma mais fiel possível à fala, usando notas e sinais indicando pausa, ironia, contradição, mudança de tom de voz e adicionados de outras notas com detalhes anotados em diários, contextualizando as entrevistas. Fotos, discursos, anotações de conversas informais e observações serão todos analisados de forma a buscar coerências, repetições e contradições entre eles. Coerências e contradições podem gerar espécies de

famílias de ideias ou categorias abertas, enquanto que as repetições indicam a força de cada ideia categorizada.

O nível 3 dos dois arranjos argumentativos diz respeito à ligação feita entre pedagogia, museus e emancipação humana. Essa relação foi analisada de acordo com o esquema fruto da adaptação e atualização da pedagogia de Paulo Freire para os museus, feita por mim com a valiosa orientação dos profs. Marcelo Milano e Paulo Emílio em trabalho anterior (CASTRO, 2012), adicionada da possibilidade da substituição do lócus museu (que corresponderia à tese) pela sua zona de contorno (que de alguma forma corresponderia à antítese).

A adaptação teórica da pedagogia freireana para os museus foi aventada pelo próprio Paulo Freire, coisa que infelizmente não concretizou. Distingo quatro momentos da conscientização nos museus a partir da leitura de seus livros, que acontecem privilegiadamente (mas não exclusivamente) em cada um dos dois espaços: ou museu (ou zona de contorno) ou indivíduo em sociedade. O texto a seguir, que explica como essa adaptação foi feita, foi extraído integralmente de Castro (2012, s/p.):

Desvelamento do conhecimento de si e de sua realidade pelas exposições e pesquisas. Locus: museu.

Crítica acerca do conhecimento desvelado. Locus: indivíduo em

sociedade.

Transformação do objeto em sujeito / práxis. Locus: indivíduo em

sociedade.

Exposição da denúncia ou do anúncio de um mundo melhor. Locus:

museu.

Desses, em apenas dois momentos os museus aparecem como espaços privilegiados, e nos outros momentos, é no indivíduo na sociedade, com os seus semelhantes que deve acontecer a mudança. Note também que nos momentos de desvelamento do conhecimento de si e de sua realidade pelas exposições e pesquisas e no de crítica acerca do conhecimento desvelado pode ser entendido em conjunto como aquilo que Freire aponta como conscientização ou o primeiro passo para a educação libertadora. O esquema abaixo (Figura 7) é um esforço de demonstrar graficamente como se daria o processo emancipatório tendo os museus como local privilegiado para essa educação.

Figura 7: processo de conscientização mediado pelos museus como organizações de cultura, educação e transformação.

Fonte: elaboração própria.

O coração foi usado como estereótipo amplamente aceito para o amor, que é fundamental na teoria de Freire por embasar todas as relações para a libertação. Está no centro porque deve mediar todas as relações para que o ciclo se mantenha, caso contrário, ele se rompe, com consequências aleatórias que este ensaio não tem por escopo descrever, como ilustrado no ponto de interrogação.

O processo que o esquema ilustra é dinâmico. Quando essa dinâmica acontece nos termos e condições aqui descritos, então o museu pode ser considerado um espaço pedagógico privilegiado para o processo emancipatório da sociedade. A exposição que acontece nos museus é, nesses casos interativa22, no sentido que explorar não é um processo

estático e sim que pode haver interação crítica de todas as pessoas envolvidas. Nesse caso, as pessoas envolvidas são tanto aquelas sobre as quais as exposições falam, quanto as que trabalham para que essas exposições aconteçam e também as que visitam, interagem e tomam parte em um processo de conscientização crítica a respeito do que lhes é mostrado.

Saliento que, apesar do esquema didático, o ciclo não pode ser fechado em si, nem as partes estanques e a direção das setas única. Nada obriga nem indica que a transformação deva acontecer e expor-se dentro dos museus. Ela pode pura e simplesmente ser expressa na sociedade ou até mesmo em outras organizações.

As ações extramuros, dessa forma, assim como algumas exposições mesmo, são ações que começam, física ou ideologicamente, nos museus, mas que não necessariamente retornam ao museu. Apesar

22 Exposição interativa não quer dizer que os visitantes tenham que tocar nos objetos nem desempenhar

atividades. A interatividade deve acontecer nas possibilidades de interpretação crítica da exposição, e pode ou não conter os elementos acima, de relação com os objetos.

Desvelamento do conhecimento de si e da sua realidade pelas exposições e pesquisas. Locus: museu Crítica acerca do conhecimento desvelado. Locus: indivíduo em sociedade Transformação do objeto em sujeito . Práxis. Locus: indivíduo em sociedade Exposição da denúncia ou do anúncio de um mundo melhor. Locus: museu.

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disso, têm potencial de surtir efeitos transformadores na sociedade ou em outras organizações. Este é o significado do ponto de interrogação representado no esquema, e é uma das grandes razões para ter atenção especial a estes espaços museais.

Para Freire (2001), ao dizer a sua palavra os homens já transformam o mundo, ou seja, o diálogo é um meio, mas também um fim. No entanto, se apenas os dominadores dizem sua palavra, sua ação no mundo não é transformadora no sentido pleno, é apenas reformadora. Ela contém em si a pequena mudança aditiva que uma nova palavra traz, mas não transforma radicalmente, porque não é interesse da classe dominante que a história seja radicalmente transformada. Se, ao contrário, a palavra passa a ser dita pelos oprimidos, há uma nova palavra posta no mundo, designando-o. Há também uma nova visão de mundo, uma expressão de um novo sentimento. O diálogo pressupõe o encontro de mais de um ponto de vista, e se o objetivo é transformador (sempre é transformador quando é diálogo verdadeiro, no sentido apresentado por Freire) ele deve ser também humanizante. Por isso, “não pode também converter-se num simples intercâmbio de idéias, idéias a serem consumidas pelos permutantes” (FREIRE, 2001, p. 96).

Destacamos neste estudo duas formas de ação/transformação no mundo por meio de dizer a sua voz, ou seja, ao pronunciar sua palavra, o homem pode gerar reflexos no mundo basicamente de duas naturezas: ação reformista e ação revolucionária. Não excluímos a possibilidade de outras ações, porém vamos centrar-nos nessas porque são as abrangidas pelo referencial adotado.

No caso da teoria que estamos defendendo, que está restrita aos museus, ambos os tipos de ações no mundo devem ser entendidos como gradativos e não definitivos. Além disso, a revolução só é quando é generalizada ou concretizada em toda a sociedade, e ainda assim, pela sua natureza crítica, nunca estaria completa porque está em uma função de eterna crítica e transformação. A ação reformista é aquela que mantém o status quo e as estruturas de dominação e por isso não tem potencial crítico nem de emancipação.

Mas dizer sua palavra ainda não significa em todos os casos iniciar o processo emancipatório e sim iniciar um processo de notar-se, de conhecer-se em conjunto, com semelhantes ou com o outro, e anunciar ao outro. No entanto o processo deve ser dialogado e não anunciado simplesmente. É o que corresponde ao desvelamento do conhecimento

de si e de sua realidade.

Não é que nesse caso o museu perca seu potencial de transformação. É sim compreender que a transformação não pode ser feita por uma organização, mas pode ter seu lugar em uma. A transformação é feita nos homens, em sociedade. Por isso também que Freire salienta que o diálogo não existe sem amor. Amor como um sentimento intrinsecamente humano e veículo único pelo qual a transformação se dá e que irá motivar a ação transformadora.

O diálogo não pode existir sem um profundo amor pelo mundo e pelos homens. Designar o mundo, que é ato de criação e de recriação, não é possível sem estar impregnado de amor. / O amor é ao mesmo tempo o fundamento do diálogo e o próprio diálogo. (FREIRE, 2001, p. 96).

Com o amor, ou o diálogo, então, o esquema se complementa e o ciclo continua, mas, sem o amor, ou sem o diálogo, ou sem a intenção humanizante e sem a troca verdadeira, a transformação não se dá, e em qualquer elo, o ciclo do esquema acima representado se desfaz. O amor é um ato de fé no homem e em sua capacidade, e é um ato de humildade, mas também deve ser crítico. Deve ser guiado pela esperança da transformação e pautado na crença de que o homem é capaz de tal ato. Envolve compromisso, responsabilidade e valor. Esse conteúdo ético está, de certa forma, já contido na teoria desde Kant, e provavelmente antes, quando o esclarecimento é sempre um ser para o outro. Além do

diálogo, Freire (2001) coloca consciência, em sentido mais amplo, como método, ou caminho para compreender o mundo e transformá-lo pela ação comprometida. Ramos (1958, p. 75, sic), não por acaso, enuncia dentre as leis da Redução Sociológica a VIII, que se chama “Lei do Comprometimento”, que diz que “a idéia e a prática da redução sociológica sòmente podem ocorrer ao cientista social que tenha adotado sistemàticamente uma posição de engajamento ou de compromisso consciente com o seu contexto”, e, obviamente, tal lei pressupõe a transformação social tanto quanto o amor pelo seu semelhante.

O esquema proposto por nós é, portanto possível, coerente e coeso, mas altamente dependente dos homens neles envolvidos e de seus meios e intenções. Se o meio for o amor, ou o diálogo, o processo de emancipação se mantém. Se não for, ele se quebra. Se o processo de emancipação se mantém, mantém-se a premissa da transformação, e em caso contrário, há apenas uma pequena reforma, ou uma reafirmação do mundo que já existia antes, com seus problemas e injustiças.

Assim, o nível 1 dos AA1 e AA2 atendem ao primeiro objetivo intermediário. O nível 2 atende ao objetivo intermediário 2, se somado às interpretações do nível 1. E, finalmente, o nível 3 dos dois arranjos argumentativos correspondem às provocações do terceiro objetivo. Espero que a soma de todas as análises forme um corpus suficiente para responder de forma aceitável, somado à argumentação teórica, ao objetivo final e que possa avaliar a pertinência da tese proposta.

Adotar a dialética como método de análise é um desafio se lembrarmos as suas diferentes faces. A “dialética, enquanto método do materialismo histórico, difere da dialética da fenomenologia hegeliana e ambas diferem da dialética negativa adorniana” (FARIA et al, 2013, p.644).

Assumir essa dificuldade foi inevitável a partir do reconhecimento de mim mesma enquanto pesquisadora que vê o mundo com esse olhar de inconformidade e busca de superação. Por isso a análise dos dados também foi feita a partir da dialética como método, entendendo dialética em sua acepção mais ampla de esforço interpretativo baseado em identificação e argumentação de contrários (ideias ou situações que se opõem), conforme Konder (2006), ou a evidência de dualidades (STAKE, 2011). Ou seja, dialética como “o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação” (KONDER, 2006, p. 8). Aceitar esse caráter de transformação constante da realidade pressupõe adotar uma visão que acontece ao longo de um determinado tempo, já que a transformação precisa do “antes” e “depois” para concretizar-se. Por isso também é que se diz que o método dialético é adequado à compreensão da realidade histórica (KONDER, 2006).

É preciso evidenciar que a palavra contradição usada algumas vezes no trabalho refere-se a esse princípio dialético e não pode ser entendida na sua acepção lógica de negação ou ausência de seu oposto, mas sim na ótica dialética de que o contrário está contido em seu oposto e que há um caminho constantemente se construindo (na área social) entre algo (tese) e sua antítese, e, mais ainda, que há uma relação de necessidade da existência de um para que o outro exista. Nesse sentido, Konder (2006) explica que a acepção lógica da palavra contradição é pertinente dentro do escopo de parte da realidade abarcada por essa área, enquanto que a definição que a dialética faz da contradição serve para compreender a realidade humana em sua totalidade, possibilitando-nos entender “a conexão íntima entre eles e aquilo que eles não são” e, parafraseando Lefebre, que “[n]ão podemos dizer ao mesmo tempo que determinado objeto é redondo e é quadrado. Mas devemos dizer que o mais só se define com o menos, que a dívida só se define pelo

empréstimo” (KONDER, 2006, p. 49).

Busco esboçar o caminho tripartite creditado a Hegel como superação dialética, ou seja, “a negação de uma determinada realidade, a conservação de algo de essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior” (KONDER, 2006, p. 26). O primeiro passo, de “negação da realidade” pressupõe o conhecimento, ou a investigação dessa realidade, ou, nas palavras de Freire, o desvelamento da realidade. Depois, a “conservação do essencial” pressupõe o entendimento, a abstração da ideia que é base, ou que oferece fundamento a essa realidade, uma tomada de consciência que já é, ao dizer, uma ação que modifica o mundo, como Freire aponta. Por fim, para a construção do passo de “elevação da realidade a um nível superior” eu tentarei desenhar na conclusão desse trabalho um exercício de projeção, de utopia no sentido freireano, de anunciar um mundo melhor, e possível, como Mészáros23 gosta de lembrar.

Konder (2006) fala que a análise pode-se dar em uma dimensão imediata e em outra, mediata. A dimensão imediata é a aparência, a percepção mais direta que temos do objeto. A dimensão mediata é aquela que “a gente vai descobrindo, construindo ou reconstruindo aos poucos” (KONDER, 2006, p. 47) e é a aceitação de que os fatos não existem isolados em si, e que para serem analisados, precisam de seu contexto, das mediações traçadas nas relações humanas e sociais que o constituíram de alguma forma.

23 István Mészáros. Comunicação oral – UERJ Campus Maracanã – Rio de Janeiro, 20/06/2011.

A análise do conjunto das dimensões imediatas e mediatas leva-nos a avaliar o significado do fato, e também a refletir acerca das contradições inerentes a essa análise (KONDER, 2006). O envolvimento com essa temática desafiadora me levou a perceber a complexidade da questão proposta que envolve gestão privada, gestão pública, diferentes interesses, cultura e educação. Tal situação parece escapar a um método que possa administrá-la.

Esse momento não lógico, mas dialógico, parece apontar para o sentido da complexidade em si (MORIN, 2000), onde a questão do Homem centraliza a minha preocupação para o estudo. Cito Morin (2000) nesse estudo, mesmo que por breve passagem, para lembrar ao leitor que não anseie por uma nova ética, como uma proposição definitiva e acabada para a solução dos problemas, mas por um encadeamento que reconheça o caráter provisório da teoria e da vida social. O reconhecimento da transitoriedade e da complexidade do tema, no entanto, não devem servir de empecilho para enfrentá-lo.

Durante o trabalho eu procurei enfrentar essas questões de forma a suspender minhas teorias, teses e preconceitos (dentro do que me foi possível) durante a coleta e a análise dos dados e assumindo ao leitor de antemão todas essas teorias pré-concebidas para que ele, por si mesmo, possa também fazer a sua relativização necessária e possível. Esse exercício de adotar a postura de ir e voltar várias vezes às mesmas argumentações com outras ideias, refazendo-as, parece-me também o caminho traçado por Pagès et al (1993) para a análise dos dados em seu conhecido estudo sobre a TLTX.

A adoção desse método permite uma flexibilidade no campo, onde pude reavaliar as categorias e questões iniciais, retirando umas que pareciam ser pouco relevantes na práxis e adicionando questões que se apresentaram como reais desafios para essas organizações e para a emancipação humana nos museus. Por exemplo, as questões referentes às ações extramuros, que pareciam muito relevantes e inovadoras na teoria mostraram-se irrelevantes na prática, uma vez que os museus enxergam suas ações como um continuum entre o dentro e o fora. Por outro lado, a questão dos desafios enfrentados pelo modelo de gestão por organizações sociais não era escopo da pesquisa e acabou sendo explorado já que o assunto desvelou-se de forma contundente no campo.