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ANÁLISE DE ESPAÇOS SAGRADOS E A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS ISÍACOS NO ASNO DE OURO, DE APULEIO

Breve discussão sobre o conceito de espaço

ANÁLISE DE ESPAÇOS SAGRADOS E A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS ISÍACOS NO ASNO DE OURO, DE APULEIO

Liliane Tereza Pessoa Cunha

a definição das categorias analíticas internas. Tuan (1983) vê o espaço de acordo com uma Geografia Humanista, na qual espaço é movimento, sendo transformado em lugar quando os seres humanos, a partir de sua experiência, atribuem-no valor. No campo da História e das Ciências Sociais, tem-se a importante contribuição do filósofo, sociólogo, jesuíta, antropó- logo, historiador e erudito francês Michel de Certeau, com a sua obra de fôlego, L’invention du Quotidien, publicada originalmente em 1980. Nela, Certeau analisa as formas como as pessoas indivi- dualizam a cultura de massa, alterando objetos, planejamentos e ações, na tentativa de apropriá-los. Assim, a obra se coloca como um ponto de partida com relação a esses estudos.

Definindo espaço de acordo com Certeau (2000) – defini- ção esta que iremos adotar ao longo do trabalho – percebe-se que este conceito aparece relacionado a outro, o conceito de lugar. Então, a partir dessa concepção espacial, há uma visível relação entre estes. Essa discussão está presente na terceira parte da obra de Certeau, intitulada Práticas de Espaço. Nela, é perceptível que o autor lida com noções espacializantes, como os dois conceitos falados anteriormente: lugar e espaço. Dando a devida atenção a eles, em especial, tem-se nesta relação a defi- nição por excelência de ambos: “o espaço é um lugar praticado” (CERTEAU, 2000, p. 202).

As práticas de espaço, de acordo com Certeau, remetem a uma forma específica de “operações” (“maneiras de fazer”), a “outra espacialidade” (uma experiência “antropológica”, poética e mítica do espaço) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada, juntamente com os seus praticantes, exemplo primário de lugar praticado fornecido pelo autor. Para Certeau, o lugar é algo cru, onde se distribuem os elementos da convivên- cia e socialização humana e indica, por sua vez, estabilidade,

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sendo algo mais estático. Por outro lado, espaço é algo dinâ- mico e o movimento o define, pois transformamos lugares em espaços por meio das ações humanas, ações estas que põem em movimento determinados lugares. Assim, o “espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam [...]” (CERTEAU, 2000, p. 202).

Neste sentido, considerando as noções de movimento e prática que definem o espaço – de acordo com Certeau – pode- mos relacioná-las a outro conceito espacializante de suma relevância para este trabalho: o de espacialidade. Muito se discute a respeito desse conceito, contudo, pela sua comple- xidade, se torna impraticável encontrar uma definição certa, pronta. Espacialidade estaria relacionada à ideia de movi- mento em um espaço, remetendo à ideia de espaço praticado. Ainda, a espacialidade é caracterizada pela ideia de ação, de inter-relação, que movimenta comportamentos e sentimentos. Enfim, espacialidades seriam fendas espaciais que se interli- gam, sendo responsáveis por uma noção de movimento, que envolve uma vastidão de sentimentos e comportamentos. Espacialidades seriam, então, brechas que se conectam e dão sentido aos espaços praticados.

Repleto de linguagem metafórica, Práticas de Espaço nos apresenta a metáfora do caminhar, por onde um sujeito cami- nha por sua cidade, praticando lugares e tornando-os espaços – esta argumentação nos remete ao conceito de espacialidade, trabalhado anteriormente, haja vista que ele fornece ao espaço a ideia de ação e de movimento responsável pelo caminhar. Considerando esses aspectos, podemos dizer ainda que a prática dos espaços traz à tona toda uma rede de sentimentos e comportamentos dos indivíduos praticantes. De acordo com o

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autor, as práticas do espaço tecem as condições determinantes da vida social, seus traços e suas trajetórias.

Assim, o ato de caminhar estaria para o sistema urbano como a enunciação estaria para a língua. Temos aí outro concei- to importante: o de relato. Para Certeau (2000), os relatos orga- nizam os lugares, uma vez que o discurso descreve faltas e dá lugar a um vazio, inventando mesmos espaços. Ainda, conforme o autor, os relatos de lugares são bricolagens, organizados a partir de resíduos do mundo em que vivemos. Dessa maneira, os espaços também são construídos pelos discursos, que são, ao mesmo tempo, trajetórias: ao caminhar por uma cidade e escrever sobre ela, estamos a comparando com um texto e, desta forma, os relatos são práticas de espaços.

Nesse sentido, trabalharemos com tal concepção espacia- lizante por acreditar que é mais indicada para dialogar com as discussões que envolvem o trabalho com fontes literárias, haja vista que os relatos são responsáveis por construir os espaços e, por considerar que a perspectiva de espaço praticado desenvol- vida por Michel de Certeau se adequa com as discussões sobre espaço sagrado na Antiguidade, em especial, na obra O Asno de Ouro, de Apuleio, no contexto do século II d.C., Império Romano. Nessa perspectiva, considerando a definição de espacialização dada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997b), pode-se inferir que na obra de Apuleio existirá uma espacialização do sagrado, isto é, várias formas de ser, de estar e de habitar o espaço, de modo a torná-lo sagrado, a partir da prática a um lugar, fato este visível no culto à deusa egípcia Ísis (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 166-167).

Resumindo, a obra O Asno de Ouro corresponde a uma estrutura narrativa que comporta os gêneros novela antiga, romance e obra de fábulas, de estilo milesiano, isto é, picaresco,

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cínico – pelas palavras do próprio autor, esse estilo estaria rela- cionado ao divertimento: “Ela vai-te alegrar” (APULEIO, I, cap. I).

A obra ainda trata de temas como a magia, o encontro de cultu- ras, a morte, roubos, o amor e os diferentes cultos que transi- tavam na Antiguidade. A partir da história sobre um homem, Lúcio, que inicia sua peregrinação a região da Tessália, em busca de conhecimento sobre magia. Ao chegar ao seu destino, Lúcio é recebido por Milão, seu hospedeiro que, por sua vez, é casado com uma das maiores feiticeiras da região, Panfília. Devido a sua curiosidade, Lúcio é metamorfoseado em asno/ burro, por se envolver com magia negra, errando o feitiço que o transformaria em ave. Ao longo da história, o asno é roubado e inserido em um contexto de aventuras, reencontrando a sua forma humana após realizar uma prece à deusa egípcia Ísis, no contexto da abertura das navegações no Mediterrâneo, que intercede ao seu favor. Após voltar a sua condição natural, Lúcio é iniciado nos mistérios da deusa Ísis e, posteriormente, nos mistérios do deus Osíris.

Relacionando o conceito de espaço praticado na obra, como o próprio Certeau afirma, o caminhar é responsável por construir o espaço, a partir da ação ou prática em um lugar. Na medida em que você caminha, lugares são praticados e transformados em espaço. Lúcio, por exemplo, enquanto cidadão romano, na sua condição humana, pratica os luga- res transformando-os em espaço. Caminhando em busca da Tessália, ele tem contato com várias esferas do sagrado, sendo elas aceitáveis ou não. Quando chega à cidade, Lúcio continua transformando lugares em espaço. Isso acontece durante o festival do riso, festa em homenagem ao deus Dionísio, espaço público, sacralizado no momento da festa.

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Do mesmo modo, ao ser metamorfoseado em asno, a partir da prática de magia em um espaço privado, Lúcio percorre o caminho em busca de uma nova metamorfose, a fim de voltar a sua condição natural. Portando, a sua consciência humana, Lúcio-asno percorre lugares, dotando-os de significados, fato este perceptível quando ele dialoga com a deusa Ísis. Chegando ao porto de Corinto, resolve descansar nas areias da praia e lá, clama pela ajuda da deusa. Esta, então, lhe aparece em sonho, prometendo sua redenção se Lúcio lhe assegurar fidelidade ao longo de sua vida. Logo, aquele ambiente é transformado em espaço, um espaço sagrado, onde a deusa, a partir de uma hierofania, passará a ser cultuada.

Outro momento em que percebemos o caminhar enquan- to construtor de espaços é o da procissão em homenagem a deusa Ísis, em comemoração à abertura das navegações do mar Mediterrâneo. Os devotos da deusa saem de seu templo e seguem até as águas do Mediterrâneo em festa, levando consigo objetos sagrados do culto e imagens da deusa. Aquele cami- nho percorrido será transformado em espaço pela prática. Em adição, um caráter sagrado também deve ser atribuído a esta espacialidade (caminho/espaço percorrido da procissão da deusa Ísis), confirmando a hipótese de que os espaços sagrados não são estáticos. Pelo contrário, o movimento está no cerne de sua definição. Outro fator importante é que da mesma forma que o caminhar delimita os espaços, como afirma Certeau, eles são construídos pelos relatos, que os organiza e dão lugar a um vazio. Os espaços, na obra de Apuleio, são construídos através de seus relatos que demonstram as suas percepções sobre diversos assuntos no contexto romano do século II d.C.

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Utilização de obras literárias como fontes