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da geografia mítica da Duat

Duat era como os egípcios denominavam o espaço dos mortos que, por sua vez, era associado ao oeste por ser este o lugar do crepúsculo; em outras palavras, o sol morria para os vivos e nascia para os mortos. Os egípcios acreditavam que ao dia o deus Rê mirava os vivos, protegia-os e iluminava-os. A sociedade egípcia ligava-se intimamente com a ideia de “duplo”, de espelhamento, logo o sol não podia ser um direito

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dos vivos apenas: também era privilégio dos mortos serem contemplados pela luz do dia.

Se durante o dia o sol iluminava os vivos na terra do Egito, a que eles chamavam de Kemet, durante a noite iluminava os mortos, que ficavam no mesmo cosmos, em uma geografia mítica semelhante à terra do Egito.

O defunto preparava-se para regressar à luz do dia, mas não exactamente para o mundo terreno, o mundo dos vivos. O percurso solar que o defunto iria percorrer tinha corres- pondências com a geografia religiosa do Egipto, em particular com a região heliopolitana e menfita, mas a dimensão em que se situava já não se regia pela linearidade do mundo dos vivos: «Eu sou o ontem, a alvorada do dia de hoje e o amanhã1»

(SOUSA, 2010, p. 165, grifo do autor).

Logo, a principal diferença que separava vivos de mortos era justamente essa condição, de existência ou inexistência físi- ca, pois ambos viviam em lugares semelhantes: os vivos no Egito e os mortos nos Campos de Iaru, uma recriação do Egito.

Os Campos de Iaru, o paraíso egípcio, eram, deste modo, concebidos à imagem e semelhança do próprio Egipto terre- no. Do ponto de vista cultural, é, portanto, extremamente significativo que o mundo idílico proporcionado aos justos no Além fosse concebido à imagem da vida que decorria nas margens do Nilo (SOUSA, 2008, p. 202).

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Sabemos que o caos representado pela morte começava a ser transposto à categoria de ordem na medida em que o morto passava pelos ritos fúnebres, mas outro episódio se colocava como central: a condição de “justificado” ou “justo de voz” –

do egípcio ‘Maakheru’. Epíteto colocado após o nome próprio que qualifica o morto como tendo passado com sucesso pelo julgamento no Tribunal de Osíris, cumprindo as condições de Maat (BRANCAGLION, 2003a, p. 116).

Conseguir vencer recorrentes desafios era uma condi- ção para que o morto pudesse atingir a “justificação” e, por conseguinte, os Campos de Iaru. Acredita-se que antes de poder ser julgado no Tribunal de Osíris o morto pronunciava fórmu- las que o faziam escapar de perigos diversos. O último desses perigos era a reprovação diante do deus no Tribunal (Cap. 30b do Livro dos Mortos); se o coração do morto2, ou seja, a sua

consciência, testemunhasse contra ele, uma criatura híbrida chamada Ammit, composta por 1/3 leopardo ou leão, 1/3 croco- dilo e 1/3 hipopótamo, o devoraria e ele deixaria de existir, pois

2 “Através da pesagem do coração procurava-se averiguar o estado de pureza

do coração, do qual dependia inteiramente a sobrevivência do indivíduo. Desde o Império Médio que a vida divina era prometida a quem realizou a

maet através dos seus actos e palavras. No Império Novo, o coração torna-se

o alvo deste exame, assumindo-se como a única testemunha válida para avaliar o estado de pureza do candidato. O coração leve como a pluma de

maet ilustra o mais elevado ideal da ética egípcia: o homem que praticou maet

nas suas acções, nas suas palavras e no seu coração-consciência. No entanto, nem tudo é da responsabilidade do homem. No seu coração também está marcado o destino, chai, que os deuses lhe traçaram à nascença, pelo que a sua influência também será tida em consideração para equilibrar o resultado final” (SOUSA, 2004, p. 543).

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não havia um “inferno” no Egito. Ogden Goelet, no entanto, descreve de maneira assustadora outros perigos dessa geogra- fia do post-mortem:

Os egípcios podiam ser tão sadicamente imaginativos como qualquer pregador do fogo e do enxofre do inferno a respeito do castigo eterno para os malfeitores. Vinhetas e nomes terrí- veis de deuses e de outros seres sobrenaturais revelam alguns dos destinos que podiam ocorrer aos condenados. Algumas vezes eles iriam sofrer [algumas] formas de penas capitais terrenas e seriam torturados, decapitados ou queimados em poços em chamas. Mais frequentemente, os amaldiçoados eram tratados como animais sacrificiais e abatidos com facas, desmembrados, e o seu sangue era drenado do corpo; eles podiam ser cozinhados e comidos por criaturas como Ammit (GOELET, 1998, p. 154).

Essa descrição de Goelet apresenta a maior ameaça com a qual o homem podia se deparar: a de morrer uma segunda vez, que o levaria à condição de “não existência” (cf. BRANCAGLION, 2003b, p. 13). Portanto, na medida em que vencia os desafios no post-mortem o homem reafirmava a ordem divina, negava o caos e abria caminhos em direção à reafirmação de sua vida. Os caminhos do homem até a reafirmação de sua vida, ou repetição da vida – que diferentemente da primeira seria eterna –, eram preenchidos tanto por paisagens completamente transcenden- tais quanto por imagens de lugares possíveis no mundo real, ou até mesmo com uma fusão dessas duas características.

Cada homem em qualquer época histórica possui seus medos e desejos, e é neste sentido que a geografia mítica da

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Duat, que consideramos ser formada por “mapas mentais”, apresenta-se como resultado das percepções do homem.

Os homens enquanto seres sociais produzem sua vida, sua história, sua consciência, seu mundo. Nada há na história e na sociedade que não seja adquirido e produzido. A “natu- reza”, ela mesma, tal como se apresenta na vida social aos órgãos dos sentidos, foi modificada, portanto, produzida (LEFEBVRE, 2006, p. 62).

Enquanto o Livro dos Mortos se apresentava como uma cartografia que pretendia mostrar ao homem os caminhos do Além, este último, por sua vez, apresentava-se como uma geografia mítica que, embora documentada, não podia, obvia- mente, ser literalmente percebida pelos vivos. Dessa forma, o Livro dos Mortos atuava como um objeto mágico-religioso que agia no sentido de facilitar a percepção do universo dos mortos na medida em que antecipava seus perigos e, consequentemen- te, prevenia os homens acerca da ameaça representada pela possibilidade de um fim de tudo. Nesse sentido, o mapa não cria- va o mundo dos mortos, na verdade o representava (cf. SEEMANN, 20013). Contudo, a ideia de “representação” é bastante complexa

para esse contexto do Egito, dado que o poder mágico dos papi- ros funerários conferia ao Livro atribuições que transbordavam a esfera da busca por caminhos, e essa característica aparece, por exemplo, quando se recorria ao Livro como um suporte

3 Seemann (2001, p. 64) adverte que ao utilizar a “abordagem semiótica do

mapa, que tem muito em comum com o conceito de paisagem [...], corre-se o risco de não representar o mundo, mas criá-lo através do mapa”.

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capaz de reavivar as lembranças de fórmulas e de nomes de deuses, tão fundamentais no mundo dos mortos.

Tomando de empréstimo as considerações do geógrafo Jörn Seemann (2003), sobre mapas e percepções, indicamos que o Livro dos Mortos, assim como uma cartografia, possuía uma função comunicativa entre o mundo dos vivos e o universo dos mortos.

O mapa (no seu sentido mais amplo possível) exerce a função de tornar visíveis pensamentos, atitudes, sentimentos tanto sobre a realidade (percebida) quanto sobre o mundo da imagi- nação. Esses mapas não são representações cartográficas sujeitas às regras cartográficas de projeção, escala ou preci- são, mas representações espaciais oriundas da mente huma- na, que precisam ser lidas como mapeamentos (= processos) e não como produtos estáticos. (SEEMANN, 2003, p. 3). O Livro dos Mortos desempenhava múltiplas funções:

1) enquanto objeto mágico-religioso a ser usado pelo morto no Além-mundo, ele servia como um guia de memória, que fazia do morto um ser capaz de abrir portões através da enuncia- ção dos nomes de cada um dos guardiões desses obstáculos; 2) no mundo dos vivos se tratava de um mapa que dava ciência aos homens dos perigos a serem enfrentados no post-mortem – isto ajuda a explicar a existência de rubricas, fundamentais aos sacerdotes responsáveis pela realização dos ritos fúnebres; 3) representava ainda o microcosmo do Outro mundo.

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