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Parece-nos conveniente esmiuçarmos o conceito de “território religioso”. Um território o é efetivamente quando o homem o impregna de símbolos que o marcam. O território,

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partindo da concepção miltoniana7 acerca desse conceito,

envolve não somente uma dimensão física mas também abarca um conjunto de relações humanas e modos de funcionamento social que se alocam nessa unidade. O território religioso, por sua vez, obedece a uma série de fatores que tem ligação com o campo do sagrado. Segundo Rosendahl e Corrêa (2008, p. 56),

[...] territórios religiosos são espaços qualitativamente fortes, constituídos por fixos e fluxos, possuindo funções e formas espaciais que constituem os meios por intermédio dos quais o território realiza efetivamente os papeis a ele atribuídos pelo agente social que o criou e controla.

O território é uma categoria espacial marcada essencial- mente pelo fluxo, pelo movimento, pelo dinamismo. A terri- torialização não congela determinado espaço em uma dada configuração. Muito pelo contrário, o território se apresenta como um lugar de conflito, de disputas que envolvem o plano físico e o plano do código, do símbolo. Vale aqui fazermos uma breve recapitulação da história do Monte das Graças, palco principal de rearranjos territoriais.

Todo o processo que culminou na criação do Monte das Graças teve início no ano de 1946, com a descoberta do corpo da menina no alto de uma das várias serras que compõem o relevo da região. A umburana sob a qual jazia a criança foi o marco inicial da devoção. Entendendo que ali havia se configurado um milagre (o corpo incorrupto da menina), as pessoas passa- ram a acorrer ao local da morte da menina com o objetivo de

7SANTOS, Milton et al. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento

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pôr suas vidas em ordem por meio de milagres. A umburana, até então frondosa, tornou-se alvo dos fiéis que desejavam se curar de determinadas enfermidades. Resultado: a árvore foi sendo desfolhada e descascada, paulatinamente, e suas partes utilizadas na feitura de infusões miraculosas. Os chás derivados da planta eram saboreados e somente surtiam efeito se combi- nados com orações endereçadas à Santa Menina. A fama da milagreira percorreu a cidade. Os crentes haviam territoriali- zado aquele espaço.

Na medida em que a fama de criança milagreira ia se alas- trando, a Igreja Católica Apostólica Romana começa a arquitetar estratégias para arrefecer a propriedade miraculosa daquele espaço. A saída encontrada pela Igreja para se inserir naquele contexto religioso que fugia às suas rédeas foi territorializar também aquela serra a partir da elevação de uma capela em louvor a Nossa Senhora das Graças. Tendo em vista que os devo- tos que acorriam ao local pediam graças à Santa Menina, a Igreja achou por bem se valer do nome dessa Nossa Senhora específica por ele se apresentar de forma bem genérica. A construção da capela foi finalizada no ano de 1948, sendo celebrada uma missa inaugural no dia 7 de dezembro desse ano8. Muito provavelmen-

te, por essa época, a serra foi batizada como Monte das Graças. O cenário do Monte das Graças agora se configuraria da seguinte forma: de um lado, a capela consagrada à Nossa Senhora das Graças; do outro, a umburana “cultuada”. A Igreja demarca seu terreno, ainda, a partir do momento em que

8Informações colhidas na edição especial da Revista 100 anos de fé, de 2005,

confeccionado sob as expensas da Paróquia de São Sebastião, de Florânia. O livreto traz em suas páginas a história de vida de personagens importantes da cidade, de padres e, também, da Santa Menina.

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nomeia a montanha. Nesse sentido, são válidas as reflexões de Roberto Lobato Corrêa sobre a toponímia, ato que, segundo ele, não é apenas um traço identitário, mas também um impor- tante meio pelo qual se articulam-se linguagem, poder e território. Nomear a natureza e lugares é um exercício de autoridade e evidência de poder [...] (CORRÊA, 2008, p. 26). Nomeando o espaço, a Igreja tentava impor sua cren- ça oficial em torno de Nossa Senhora à manifestação religio- sa de cunho não oficial voltada para o culto à Santa Menina. A estratégia de apropriação espacial da Igreja fica clara quando analisamos o depoimento do padre Carlos Lira, que atuou na cidade de Florânia:

E de repente foi crescendo toda esta devoção popular em torno do Monte e em torno da Santa Menina... Então quando a Igreja viu que tava cada vez mais esse fenômeno crescendo, muita gente de vários lugares vindo para pagar essas promessas, para pedir essa interseção da Santa Menina... a igreja teve uma certa preocupação porque realmente esta menina se tornou santa popular na boca do povo, pelo que o povo pedia e a sua interseção era válida junto à Jesus. Então a Igreja para colocá-la em torno de Nossa Senhora, então denominou Nossa Senhora das Graças. Então, este monte tem como denomina- ção o Monte das Graças, onde muita gente vem pagar suas promessas (informação verbal).9

9Depoimento de padre Carlos Lira, em Florânia, no dia 6 de junho de 2006,

é parte integrante do trabalho intitulado Com Quantas Ave-Marias Se Faz

Uma Santa? O Audiovisual revelando a Identidade Cultural no Sertão Potiguar, dos

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Há de se pensar sobre a composição desse tecido terri- torial. A inserção da Igreja no referido monte não significou o apagamento completo da devoção em torno da Santa Menina. É de se supor que tenha havido, sim, um arrefecimento dessa manifestação religiosa, mas isso não quer dizer que a devoção à Santa Menina tenha perdido território. Tanto é verdade que algum tempo depois, uma capela, bem menor se comparada com a de Nossa Senhora das Graças, foi erguida com vistas a abrigar a imagem da Santa Menina. Assim, seria equivocado tomarmos essa reorganização espacial como um processo de desterrito- rialização, sendo mais indicado encaminharmos nosso estu- do sob o viés da multiterritorialidade. A ideia de territórios plurais, desenvolvida pelo geógrafo Rogério Haesbaert, pode ser trabalhada no quadro de complexidade espacial encontrado no Monte das Graças. No dizer de Haesbaert,

[...] enquanto “continuum” dentro de um processo de domina- ção e/ou apropriação, o território e a territorialização devem ser trabalhados na multiplicidade de suas manifestações – que é também e, sobretudo, multiplicidade de poderes, neles incorporados através dos múltiplos agentes/ sujeitos envol- vidos (HAESBAERT, 2004, p. 2).

A constituição de territórios não pode ser interpretada ou compreendida dissociada da discussão sobre identidades. As diversas práticas culturais – como festas, celebrações, ritos etc. – reafirmam territórios além de funcionarem como elos que unem as pessoas aos lugares nos quais encontram algu- ma identificação, algum vínculo afetivo. Em geral, esse poder vinculativo dos locais mantém estreita relação com a memó- ria. Contudo, além da memória, outro sentimento move o ser

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humano e condiciona igualmente seu apego para com determi- nado lugar: a expectativa.