• Nenhum resultado encontrado

As missões e a ocupação dos sertões

Estabelecida a Província, os franciscanos fundaram e receberam de outras ordens um total de vinte e cinco missões espalhadas entre Bahia, Alagoas, Pernambuco e Paraíba9.

Porém, nessa segunda fase de atuação missionária, o “peso do movimento franciscano se desloca para as missões do rio São

9Sendo quinze missões na Bahia, duas em Alagoas, seis em Pernambuco, uma

na Paraíba e a missão de Aricobé que estava no território entre Pernambuco e Bahia.

152

A ATUAÇÃO FRANCISCANA NA CATEQUESE INDÍGENA POR MEIO DOS ESPAÇOS DOS ALDEAMENTOS NOS SERTÕES DE PERNAMBUCO DO SÉCULO XVII A XVIII

Vanessa Anelise Figueiredo da Rocha

Francisco” (HOORNAERT, 1992, p. 71), pois Portugal voltou suas atenções para a expansão da capitania em questões econômicas e territoriais, que se deram principalmente a partir da criação de gado nas terras mais interioranas da América portugue- sa e na busca por minerais preciosos. Duas foram as corren- tes de povoamento do sertão: uma proveniente da Bahia “que acompanhou o curso do Rio São Francisco e do Itapicuru, que Capistrano de Abreu chamou de o “Sertão de dentro” e, a outra que, partindo de Pernambuco, ocupou os “sertões de fora”, isto é, as regiões mais próximas do litoral, até atingir o Ceará” (PUNTONI, 2002, p. 26).

Dessa forma, para que possamos pensar nesse segundo momento de atuação missionária franciscana, faz-se necessário que, primeiramente, pensemos no palco onde essa história se apresentou: o sertão. Nesse momento, era pensado a partir das vilas açucareiras, como uma oposição entre as regiões coloni- zadas e as não inseridas na jurisdição metropolitana. Criava- se “uma dicotomia entre o espaço considerado civilizado e aquele considerado selvagem” (SILVA, 2010, p. 112). Foi a região açucareira que ditou o padrão de civilização para o imaginário colonial, enquanto que o sertão seria toda área desocupada no interior do Brasil, que abrangia todo o continente para além da zona da cana-de-açúcar e do litoral.

Concebemos os termos espaço e lugar tal como articula Yi-Fu Tuan (1930), para o qual os lugares “são centros aos quais atribuímos valor e onde são satisfeitas as necessidades biológi- cas de comida, água, descanso e procriação” (TUAN, 1983, p. 4). Enquanto espaço, acaba assumindo uma noção mais abstrata, pois “o que começa como espaço indiferenciado transforma- -se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor” (TUAN, 1983, p. 6). Ou seja, não podemos definir os

153

A ATUAÇÃO FRANCISCANA NA CATEQUESE INDÍGENA POR MEIO DOS ESPAÇOS DOS ALDEAMENTOS NOS SERTÕES DE PERNAMBUCO DO SÉCULO XVII A XVIII

Vanessa Anelise Figueiredo da Rocha

conceitos de espaço e lugar separando um do outro, precisamos levar em consideração nossas experiências e os conhecimentos. O lugar pode ser definido de várias maneiras, assumin- do notoriedade de acordo com os sentidos sociais impostos a ele. “Lugar é uma parada ou pausa no movimento – a pausa que permite a localização para tornar o lugar o centro de signifi- cados que organiza o espaço do entorno” (TUAN, 2011, p. 193). Assim, a construção da ideia de sertão ocorre a partir dos valo- res encontrados nos discursos dos diferentes autores que habi- tavam as vilas açucareiras e o próprio interior da colônia.

E, uma vez que um sujeito não é responsável pelos sentidos dos discursos que profere, sendo ele próprio apenas uma parte constitutiva do processo de produção desses senti- dos, cada discurso de cada cronista era não o fruto de um conjunto de opiniões e visões particulares, mas uma partícula de um imaginário maior que abarcava o próprio autor. Ou seja, o cronista na condição de autor, por mais que tentasse direcionar sua interpretação, não podia fugir do imaginário dominante. Assim, as imagens de sertão que apareciam nos textos coloniais eram produzidas a partir da ideia de sertão conhecida pelo cronista, predominante na sociedade da qual ele era elemento constituinte (SILVA, 2010, p. 113).

A cultura afeta a percepção. No entanto, alguns obje- tos “persistem como lugares através da eternidade do tempo, sobrevivendo ao apoio de determinadas culturas” (TUAN, 1983, p. 181). O conceito de lugar vai depender das experiências, mas não apenas delas. Os lugares têm visibilidade a partir das rivali- dades ou conflitos com outros lugares e dos poderes evocados na arte, arquitetura, cerimônias e mitos. Criando suas identidades

154

A ATUAÇÃO FRANCISCANA NA CATEQUESE INDÍGENA POR MEIO DOS ESPAÇOS DOS ALDEAMENTOS NOS SERTÕES DE PERNAMBUCO DO SÉCULO XVII A XVIII

Vanessa Anelise Figueiredo da Rocha

a partir das dramatizações de aspirações, necessidades e ritmos funcionais da vida pessoal e dos grupos. E como a sensação de tempo afeta a noção de lugar, estendendo-se para além das localidades individuais, Yi-Fu Tuan concebe o tempo como um fluxo ou movimento, assim, o lugar é uma pausa, marcando o movimento do homem no espaço.

Ao atribuir valores aos espaços, contribuímos para a construção de lugares. Logo, o sertão é constituído como um lugar a partir do desconhecido, da oposição que se faz com a região litorânea10. Na documentação colonial, muitas vezes

encontramos a palavra sertão associada ao termo tapuia, definida no dicionário de Raphael Bluteau (1728) como “o mais bravo e bárbaro gentio do Brasil”11. O sertão era para

os Portugueses lugares ermos de vida tribal, onde os índios viviam rusticamente, sem civilização, em batalhas constantes, sem o conhecimento de Deus, conforme nos explica o historia- dor Russell-Wood (1998, p. 19):

O sertão ou os sertões estavam associados à desordem, ao desvirtuamento e à instabilidade. Eles eram vistos como sendo povoados por pessoas (de acordo com rumores, algu- mas eram grotescas) marginalizadas na melhor das hipóte- ses, ou totalmente situadas para além dos limites impostos

10 No dicionário de Raphael Bluteau escrito em 1728, encontramos a definição

de sertão que diz o seguinte: “Região apartada do mar e de todas as partes, metida entre terras”. E no dicionário de Antônio de Moraes Silva, de 1789, o sertão é definido: “O interior, o coração das terras, opõem-se ao marítimo e a costa”. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/ edicao/1>. Acesso em: 5 jul. 2014.

11Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/tapuyas>.

155

A ATUAÇÃO FRANCISCANA NA CATEQUESE INDÍGENA POR MEIO DOS ESPAÇOS DOS ALDEAMENTOS NOS SERTÕES DE PERNAMBUCO DO SÉCULO XVII A XVIII

Vanessa Anelise Figueiredo da Rocha

pelos padrões metropolitanos em termos de ortodoxia reli- giosa, costumes, moralidade, cultura e relações interpessoais. A civilidade estava ausente, o barbarismo reinava.

O conceito de sertão é, nesse caso, entendido não apenas na perspectiva geográfica mas também em termo cultural e móvel, pois se modificou ao longo do tempo, de acor- do com a inserção da administração portuguesa nessas regiões. Tratava-se de um espaço habitado por povos que precisavam ser inseridos na ordem colonial, fato que ocorreu a partir da fundação dos aldeamentos. Nesse espaço, os missionários foram essenciais no plano

do governo que previa, de um lado, a construção de uma ‘barreira’ de aldeias de ‘índios mansos’ e, de outro, o contro- le – por meio dos descimentos e aldeamentos – dos ‘tapuias’ pacificados (POMPA, 2001, p. 269).

A administração desses aldeamentos ficou a cargo dos missionários, que assumiram o controle espiritual e tempo- ral sobre os índios reduzidos. Ou seja, os missionários eram responsáveis por regerem a vida espiritual (batizando, casando e catequizando) e temporal dos índios, determinando os aspec- tos da economia, das atividades cotidianas e das relações com o mundo colonial.

Os franciscanos fundaram aldeamentos nos sertões com o objetivo de reorganizar socialmente os grupos indígenas, procurando integrá-los na nova ordem imposta. Cumprindo seu papel, juntamente com a legislação indigenista de rearticular estruturas sociais que possibilitavam a ocupação do território da capitania de Pernambuco sob a administração portuguesa.

156

A ATUAÇÃO FRANCISCANA NA CATEQUESE INDÍGENA POR MEIO DOS ESPAÇOS DOS ALDEAMENTOS NOS SERTÕES DE PERNAMBUCO DO SÉCULO XVII A XVIII

Vanessa Anelise Figueiredo da Rocha

As missões eram um espaço onde o temporal e o espiritual se misturavam, em que os frades, ao catequizar os índios, ensinan- do-lhes práticas políticas e sociais portuguesas, contribuíam para torná-los súditos do Rei de Portugal, com direitos e deveres na nova sociedade que se construía a partir dos aldeamentos.

Devemos então perceber que os aldeamentos não eram apenas espaços de interesse português e cristão. Eram lugares deveras complexos, com várias perspectivas e formas de vivê- -los. Pensaremos e entraremos nesses lugares com o intuito de entendê-los sob os seus mais variados ângulos e percepções, pois muitos foram os indígenas que procuraram os aldeamen- tos para fugir de um mal maior, da escravidão ou até mesmo da morte, já que “apesar dos prejuízos incalculáveis, a políti- ca de aldeamento colocava os índios numa condição jurídica específica atribuindo-lhe, além das obrigações, alguns direitos” (ALMEIDA, 2010, p. 72). Dessa forma, viver em um aldeamen- to significava, antes de tudo, uma alternativa de sobrevivên- cia para o índio, já que a política interna dos aldeamentos os colocava numa condição jurídica que lhes permitia barganhar privilégios e se resguardar do ataque de etnias inimigas e dos abusos dos colonos.

Entendemos, então, as missões religiosas como meios pelos quais grupos sociais e étnicos diferentes se congregaram, compartilhando experiências e culturas. Um processo, segundo a historiadora Maria Regina Celestino de Almeida (2013), de recriação de culturas, tradições e interesses. Tratava-se de espa- ços múltiplos, em que se construíam novas formas de vivên- cias, porque são nos espaços sensoriais que os objetos díspares tomam familiaridade com o mundo que o criou. Assim, as expe- riências entre os diversos atores que estavam presentes nos

157

A ATUAÇÃO FRANCISCANA NA CATEQUESE INDÍGENA POR MEIO DOS ESPAÇOS DOS ALDEAMENTOS NOS SERTÕES DE PERNAMBUCO DO SÉCULO XVII A XVIII

Vanessa Anelise Figueiredo da Rocha

aldeamentos e arredores contribuíram para delimitar a espa- cialidade dos aldeamentos.

Se o sertão era um espaço mítico, os aldeamentos foram uma resposta aos medos, incertezas e interesses que se tinha sobre essa região. Sendo-lhes atribuídos valores e símbolos que contribuíram para delimitá-lo como um lugar, repleto de signi- ficados: para a Coroa significou “a expansão territorial; para as elites coloniais, a criação de novas possibilidades de aquisição de terras e títulos; para a Igreja, a abertura de novas fronteiras para a catequese” (SILVA, 2010, p. 11); e para os grupos indígenas significou além da perda de seu território e desagregação social, um espaço de recriação de sua história e identidade.