• Nenhum resultado encontrado

Espaço, tempo e percepção

Muito já discutimos sobre categorias espaciais inerentes ao fenômeno religioso protagonizado na cidade de Florânia. A partir do levantamento histórico do Monte das Graças, pude- mos perceber como aquele espaço foi sendo moldado – e ainda o é – pelas ações humanas. Os homens sacralizaram o lugar, divi- nizaram a menina morta encontrada com a fruta de cardeiro na mão, utilizaram-se da flora local na cura de males aparen- temente irremediáveis, entre muitos outros feitos que resulta- ram na composição dos territórios que ali se entremeiam e da paisagem que atualmente é possível contemplar. Apesar de nos atermos com mais afinco à dimensão espacial desse fenômeno religioso, arriscamo-nos a abordar questões como o tempo, as percepções, os milagres, as experiências dos crentes, sempre traçando um paralelo com o que entendemos por espaço.

Os estudos geográficos voltados para o campo da religião quase sempre apresentam aquele férreo rigor metodológico requerido pela ciência moderna. A ânsia, o desejo de enquadrar- mos todos os aspectos, todos os elementos da realidade intricada e complexa da sociedade em quadros teóricos confortáveis e, por vezes, inflexíveis, podem levar o pesquisador a relegar dimen- sões que se alocam no plano da sensibilidade. Essa constatação nos gerou inquietações. Inúmeros trabalhos, artigos, disser- tações e teses de fôlego se pautam aos seguintes atos quando abordam a questão do milagre: o ato do pedido e o ato do agra- decimento, momento da colocação do ex-voto no lugar sagrado.

138

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

Questionamo-nos, pois, sobre as atitudes dos fiéis nesse meio tempo em que o milagre não ocorreu, o tempo da expectativa.

Existe um tempo sagrado. Conforme esclarece Rosendahl e Corrêa (2008), o tempo sagrado é assinalado pelas festas, pelas celebrações, pelas comemorações que elevam a um patamar extraordinário a vivência religiosa. O período de festividade é o tempo do romeiro, do devoto que se desloca rumo ao seu lugar de fé. O fluxo no Monte das Graças aumenta considera- velmente entre os dias 18 e 27 de novembro, período em que ocorre a novena dedicada a Nossa Senhora das Graças. Durante esses dias, um sem número de fiéis sobe ao Monte para pagar ou contrair promessas.

Para além do tempo sagrado, faz-se necessário darmos atenção ao tempo humano. O tempo humano é o curso da vida humana, é direcional, e o corpo é o grande relógio marcador da cadência da existência. Segundo Tuan (2011, p. 7),

[...] o tempo humano, como o corpo humano, é assimétrico: a parte de trás está voltada para o passado, e a da frente voltada para o futuro. Viver é uma eterna caminhada para a luz, é um esquecimento do que ficou para trás, do que não pode ser visto, é escuro, é o passado.

Podemos inferir, assim, que o tempo humano se entrela- ça com o sagrado quando da ida do devoto ao encontro de sua divindade. Notadamente nos casos em que o crente pede a ajuda dos milagreiros no combate de enfermidades graves, o que se deseja é um adiamento da morte, ou seja, a cura redirecionaria a vida rumo à caminhada para a luz citada por Tuan. Atendido o pedido, o tempo humano se estenderia e a ordem cósmica do

139

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

indivíduo se restabeleceria. Partindo desse pressuposto, outro tempo poderia ser arquitetado, o tempo da expectativa.

Uma das características fundamentais inerentes à reli- giosidade não oficial é a oralidade. A narrativa é o grande mecanismo mantenedor de uma devoção que envolve algum milagreiro não reconhecido pela Igreja Católica Apostólica Romana. Em se tratando da oralidade, os historiadores geral- mente associam quase que institivamente a fala à dimensão da memória, do passado. Acontece que a linha entre passado, presente e futuro parece ser muito mais tênue do que se imagi- na. O Monte das Graças, além de ser um lugar de memória, no qual as pessoas (re)produzem versões da morte da menina, falam dos milagres atendidos etc., deve ser encarado também como um espaço de futuro. E isso não está em dissonância com o espaço e com o meio ambiente que circunda o monte sagrado e, consequentemente, a Santa Menina.

Acerca do futuro e da expectativa discorre Koselleck em Futuro passado, um dos trabalhos mais importantes sobre a semântica dos tempos históricos. Dentre outras reflexões, ele discute e exerce uma crítica ao pensamento construído ao longo dos séculos que vincula indissociavelmente história e passado. Segundo esse autor, antes do que ele chama de era da elaboração científica, pós-Descartes, a História indicava a

vinculação secreta entre o antigo e o futuro, cuja conexão só se pode reconhecer depois de se haver aprendido a compor a história a partir dos dois modos de ser, o da recordação e o da esperança (KOSELLECK, 2006, p. 308).

Portanto, extraindo o sumo do pensamento oferecido por Koselleck, a recordação estaria associada à experiência e

140

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

a esperança à ideia de expectativa. Experiência e expectati- va são duas categorias intrincadas à forma religiosa abordada neste trabalho, principalmente a segunda, na medida em que as pessoas que acorrem ao Monte em busca de milagres têm em vista o futuro, um porvir sem os males que os acometem naquele momento.

A esperança parece ser o fio de aço resistente que liga o devoto, o milagreiro e o tempo futuro. O princípio esperança, do filósofo marxista Ernst Bloch, delineia bem as questões que esboçamos aqui sobre o horizonte da expectativa. Numa filo- sofia claramente positiva, inspiradora e inspirada, Bloch revela uma obviedade a qual os historiadores não costumam manter um contato aproximado, a de que todo ser humano, na medida em que almeja, vive do futuro. Por conseguinte, emenda:

[...] a falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos tempo- rais quanto em conteúdo, o mais intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas. [...] Enquanto o ser humano se encontrar em maus lençóis, a sua existência tanto privada quanto pública será perpassada por sonhos diurnos, por sonhos de uma vida melhor que a que lhe coube até aquele momento (BLOCH, 2005, p. 15).

Nada mais coerente que associar as tramas ocorridas no Monte das Graças à filosofia proposta por Bloch. É quan- do os seres humanos estão em “maus lençóis” que os santos mais agem. A vida deles depende basicamente dos milagres; é a efetivação da graça que faz com que o santo ganhe noto- riedade e tenha seu nome perpetuado na memória dos viven- tes. Não é difícil imaginar que, para uma pessoa imersa numa sociedade extremamente dinâmica, onde o corpo e a mente são

141

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

submetidos a pressões de todo o tipo cotidianamente, a doença seja um dos piores males. Adoecer significa impossibilidade e o corpo impossibilitado é o que ninguém deseja. Contudo, tendo adoecido, o enfermo pode, além do tratamento convencional com medicamentos e afins, recorrer à Santa Menina. E é isso que vemos no Monte das Graças. Chega a ser impressionante o número de ex-votos colocados na capela da Santa Menina associados a doenças. A esperança é o motor essencial aos fiéis. “A vida é vivida no futuro” (TUAN, 2011, p. 7). Existem termos espaciais que atestam tal constatação como “ponto de partida”, “metas”, “horizonte”, entre outros. A ideia de hori- zonte apresenta uma historicidade. Conforme a perspectiva passou a ser trabalhada na arte, o sentido de tempo passou a estar atrelado à paisagem. A partir desse sentido, o espectador que observava uma pintura “mantinha uma visão aberta para o espaço e para o amplo horizonte que separava o céu e a terra. O horizonte passou a significar futuro” (TUAN, 2011, p. 11). Essa constatação de horizonte coincide com algumas reflexões de Koselleck. Ainda versando sobre a temática do futuro, esse autor se atém ao conceito de “horizonte da expectativa”. Numa propo- sição bem aproximada da ideia de Tuan, vista anteriormente, Koselleck enuncia que

[...] horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço que ainda não pode ser contemplado. A possibilidade de se descobrir o futuro, apesar de os prognósticos serem possí- veis, se depara com um limite absoluto, pois ela não pode ser experimentada (KOSELLECK, 2006, p. 311).

142

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

Tendo em vista que o Monte das Graças está situado numa elevação de onde é possível ter uma visão panorâmica de toda a cidade de Florânia e do “horizonte” que acaba fundindo céu e terra, o lugar proporciona ao devoto uma visão de futuro, a experiência de contemplação do porvir.

Figura 1 – Alto do Monte das Graças. Fonte: Autoria própria.

143

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

Figura 2 – Vista a partir do alto do Monte das Graças. Fonte: Autoria própria.

Arriscando uma conclusão de trabalho em poucas linhas, tivemos a intenção substancial de expor ao leitor os andaimes da edificação de um espaço sagrado. Percebemos que, embora carreguem o signo do divino, os lugares de culto são constante- mente afetados pelas disputas de poder. Para além desses emba- tes, os espaços sagrados, no nosso caso o Monte das Graças, são também constituídos de memórias, mas não somente delas. Mais que tudo, a esperança é o que dá vida àquele monte, a cren- ça num futuro mais generoso ou menos sofrido. Lá, no alto, o fiel necessitado encontra duas intercessoras: Nossa Senhora das Graças e a Santa Menina. Entre pedidos e milagres alcançados, vai-se configurando um chão de fé.

144

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste

e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011.

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e

transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: EdUERJ/ Contraponto, 2005. v. I.

CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural. Tradução Luiz Fugazola e Margareth de Castro Afeche Pimenta. Florianópolis: EdUFSC, 1999. CORRÊA, Roberto Lobato. Região cultural – um tema fundamental. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs.). Espaço e

cultura: pluralidade temática. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.

p. 11-43.

GIL FILHO, Sylvio Fausto. Por uma Geografia do Sagrado. In: MENDONÇA, Francisco, KOZEL, Salete. Elementos de

epistemologia da Geografia Contemporânea. Curitiba: EdUFPR,

2002. p. 253-265.

HAESBAERG, Rogério. Dos múltiplos territórios a

multiterritorialidade. Porto Alegre: [s.n.], 2004.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/EdPUC-Rio, 2006.

145

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

ROSENDAHL, Zeny. Hierópolis: o sagrado e o profano. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.

ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs.). Paisagem,

tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.

. (Orgs.). Espaço e cultura: pluralidade temática. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1974.

. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.

. Espaço, tempo, lugar: um arcabouço humanista.

A ATUAÇÃO FRANCISCANA NA