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Keidy Narelly Costa Matias

Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida. (Machado de Assis – “Uma Criatura” – Ocidentais, in Obras completas, 1901).

Introdução

O enfrentamento da morte é também o ato de encarar o desconhecido; isto é inerente à condição humana – os homens possuem consciência de sua finitude e, mesmo aqueles que não acreditam em uma existência post-mortem, não estão alheios e inconscientes para com o ignoto, para com a possibilidade de um fim de tudo. A concepção de um mundo exterior ao plano terreno é, portanto, uma das soluções encontradas para a perpetuação da vida. A percepção inefável da finitude da vida e da proximidade da morte e da não existência é uma condição histórica, produto da consciência do homem, e atua simbolica- mente para que mundos imaginados se transponham à cate- goria de espaços existentes. O transcendental, para o crente, existe tal como o mais real e palpável dos objetos.

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UM MAPA DO POST-MORTEM: O “LIVRO DOS MORTOS” COMO UM GUIA DE ORIENTAÇÃO ENTRE DOIS MUNDOS

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Os egípcios, de maneira geral, não duvidavam da exis- tência da Duat (dwȜt), tampouco do “Senhor de Amentet”, Osíris. É sabido que alguns textos contestatórios sobre o porvir exis- tiam, o mais conhecido deles talvez seja o “Canto do Harpista”, uma composição cética que não elimina, mas que questiona a existência de um Além-mundo:

[...] Ninguém volta do lugar (onde se acham) Para contar como estão,

Para dizer o que precisam, Para serenar nosso coração Até irmos para onde eles foram. [...]

Faze do dia uma festa E não te canses!

Eis que ninguém pode levar suas coisas consigo, Eis que ninguém que parte volta de novo! (ARAÚJO, 2000, p. 373-374).

Esse texto oriundo do Médio Império (2040-1640 a.C.), e traduzido por Emanuel Araújo a partir de seu remanescente do Novo Império (1550-1070 a.C.), o Papiro Harris 500, destaca uma visão recorrente nas mais diversas épocas históricas: as crenças não são iguais e uníssonas. A sociedade egípcia tinha na cultura mortuária uma característica acentuada, e mesmo esses textos contestatórios não representam quaisquer ideias semelhantes à descrença total nas divindades e no post-mortem. Essas variadas percepções de mundo nos motivam a investigar como a sociedade egípcia concebia o destino post-mortem. Para isso, faremos uso do Livro dos Mortos

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a designação de um grupo de encantamentos mortuários, escritos majoritariamente em papiros, oriundos do Novo Império, do Terceiro Período Intermediário [1070-712 a.C.], e do Período Tardio [525-332 a.C.] (HORNUNG, 1999, p. 13). O Livro dos Mortos é um termo cunhado no século XIX para um corpo de textos conhecidos pelos antigos egípcios como “Encantamentos para Sair à Luz do Dia”. Depois de o Livro dos Mortos ter sido traduzido pelos egiptólogos, ele ganhou na imaginação popular o lugar de Bíblia dos antigos egíp- cios. Essa comparação é bastante inapropriada. O Livro dos Mortos não era um livro sagrado central da religião egípcia (PINCH, 2002, p. 26).

Distintamente do que ocorre nas religiões monoteístas, não existia no Antigo Egito um livro sagrado principal. Dessa maneira, os egípcios documentavam os seus encantamentos em suportes diversos e, no caso do Livro dos Mortos, era disposto em câmaras funerárias e em sarcófagos, mas, sobretudo em papiros é que encontramos a sua maior recorrência.

Cópias do Livro dos Mortos têm sido encontradas ao longo de todo o Egito, mas eram nos templos de Tebas que se situavam os centros de sua produção. Muitos dos encantamentos foram adaptados da literatura funerária antiga, particularmente dos Textos dos Sarcófagos (PINCH, 2002, p. 26).

A relação entre o Livro dos Mortos e o Novo Império não é aleatória. Essa condição reflete que mesmo tendo sido a sociedade egípcia caracterizada pela centralização e coesão político-religiosa ao longo do período faraônico (com exceção

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dos Períodos Intermediários), muitas modificações não deixa- ram de existir, e a utilização do Livro dos Mortos em substitui- ção aos Textos das Pirâmides e dos Textos dos Sarcófagos é uma delas (cf. GOELET, 1998, p. 139; HORNUNG, 1999, p. 14).

O Livro dos Mortos é uma produção advinda de um imagi- nário coletivo, sobretudo ao considerarmos que os escribas repetiam fórmulas de tempos passados – e não podiam errá- -las –, mas também evoca a necessidade individual do homem de salvar a si mesmo no cosmos. Em outras palavras, o homem requisitava o trabalho de um artesão, ou de uma oficina de arte- sãos, para que estes constituíssem um texto pensado por uma coletividade, mas com o intuito de salvar uma particularidade.

Esse papiro funerário assumia o papel de um mapa, de um guia que pudesse auxiliar o homem na sua travessia rumo aos domínios do deus Osíris. Era através do Livro dos Mortos que o homem podia realizar seu caminho rumo à “eternida- de dos milhões de anos”, expressão essa que é bastante recor- rente nos papiros funerários. Na medida em que atuava como um guia, o Livro dos Mortos precisava alertar o homem sobre os caminhos que este deveria percorrer. Além disso, o livro tinha a função de fazer lembrar ao homem todos os nomes que porventura ele pudesse se esquecer durante a travessia rumo aos domínios de Osíris. Lembremos que enunciar é dar vida, abrir caminhos; somente com a enunciação e a lembrança era que o homem se habilitava a falar com os deuses na medida em que pronunciava seus nomes e epítetos; tornava-se apto ainda a falar com os guardiões dos portões, fazendo com que estes abrissem as portas que o levariam ao contato com Osíris.

O Livro dos Mortos, portanto, é o documento que nos permite pensar como os egípcios – em nosso recorte, no Novo

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Império – imaginavam a dimensão espacial do universo dos mortos. Interessa demarcar que, para nós, espaço

é o produto das dificuldades e complexidades, dos entrela- çamentos e dos não-entrelaçamentos de relações, desde o inimaginavelmente cósmico até o intimamente pequeno (MASSEY, 2004, p. 17).

Pensamos que esses entrelaçamentos também ocorrem na dimensão temporal, dado que o universo dos mortos no Novo Império possui características semelhantes com o imaginário do homem em épocas anteriores, visto que fora concebido a partir da reconstrução – ou compilação – de fórmulas que os egípcios já conheciam, notadamente, a partir dos Textos das Pirâmides e dos Textos dos Sarcófagos. Destacamos que a socie- dade egípcia possui poucas quebras, e isso não representa pouco dinamismo social, antes de tudo é uma representação do “ideal de ordem” a ser atingido, ideal este que não fugia do plano divi- no, na medida em que era representado por uma deusa: Maat.

O Livro dos Mortos: a Cartografia