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Terreiro, um lugar praticado

O universo religioso do catimbó-jurema é rico em símbo- los que compõem sua cosmogonia e mantêm uma relação direta com as espacialidades1 construídas imagética e discursivamente

pelos adeptos da religião. Em grande medida, o sistema de repre- sentações do catimbó gira em torno das cidades encantadas, os “encantos” da jurema, o lugar onde habitam os mestres, mestras, caboclos, reis e encantados. Podemos definir o catimbó como,

Um complexo semiótico, fundamentado no culto aos mestres, caboclos e reis, cuja origem encontra-se nos povos indíge- nas nordestinos. As imagens e os símbolos presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado, descrito pelos jure- meiros como ‘um reino encantado’, os ‘encantos’ ou as ‘cida- des da Jurema’. A planta de cujas raízes ou cascas se produz a bebida tradicionalmente consumida durante as sessões, conhecida como jurema é o símbolo maior do culto. É ela a ‘cidade’ do mestre, sua ‘ciência’, simbolizando ao mesmo tempo morte e renascimento (SALLES, 2010, p. 17-18).

1De acordo com Massey (2007), o conceito de espacialidade trata-se de uma

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Observa-se na passagem acima uma rica simbologia contida na estrutura ritual, litúrgica e cosmogônica do culto. Nossa intenção é perceber como esses elementos suscitados pelo autor podem ser analisados a partir dos seus aspectos subjetivos para atuarem como construtor de espacialidades. Na verdade, este ensaio tem por objetivo apresentar algumas das concep- ções espaciais do catimbó-jurema observando-as sob a ótica de teóricos que pensaram a conformação dos espaços a partir de aspectos imateriais e subjetivos.

Mais que um simples local de culto, as casas de catim- bó, umbanda ou candomblé são um espaço religioso formado substancialmente por experiências cujos significados são de ordem particular. Cada um dos sujeitos que habita o templo ou mesmo aqueles que o frequentam [assídua ou esporadica- mente] constroem impressões acerca do espaço. Nessa direção, todo repertório de práticas religiosas torna-se importante na elaboração dessas impressões: os cânticos, as danças, os ensina- mentos transmitidos oral e coletivamente, as relações estabe- lecidas entre o homem e as divindades e entidades espirituais, são algumas das dimensões que devem ser levadas em conside- ração, sendo parte integrante do que estamos chamando neste capítulo de lugar de sensibilidades. Todas as práticas que aí se desdobram possuem relações expressas com a espacialidade, transformando-a e valorando-a e atribuindo outros significados.

Falar de espaço, nesse caso, é pensar nas diversas cate- gorias que esse conceito elenca. Assim, nós nos apoiaremos nas proposições de Tuan para analisar a categoria de lugar, definido pelo autor como um espaço dotado de valor e significação para quem o pratica, experimenta e vivencia:

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O lugar é a segurança [...], são centros aos quais atribuímos valor [...]. Na experiência, espaço é mais abstrato do que lugar. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor (TUAN, 1983, p. 4-6).

A interação do homem com o espaço faz do lugar um item constantemente ressignificado, sobretudo se atentarmos para suas dimensões temporal, geográfica e social. A maneira como o ser humano se relaciona com o espaço é alterada na medida em que ele é construído, desconstruído e reorganizado, influenciando e sendo influenciado pelo meio. Esses elementos (des)construtores que conferem sentido e significado ao lugar podem ser aplicados no plano da materialidade: a partir do que o homem aprende ao longo da vida e executa por meio das técnicas tornando suas ações concretas, físicas, palpáveis; podem ser observadas também no plano da imaterialidade: na qual os investimentos simbólicos, as sensibilidades e os aspectos mnemônicos são agenciados para construir imagética e discur- sivamente o lugar.

São essas atuações que conferem sentido e significa- do ao espaço transformando-o em lugar, como Tuan apontou anteriormente. Cada terreiro promove experiências únicas – a forma como os indivíduos as vivenciam não se repetem, pois são subjetivas. Por maior que seja a quantidade desses templos no Brasil, a maneira como se conduz um ritual jamais será igual, logo, as sensações, as imagens e toda sorte de efeitos repercutirá de modo muito particular nos indivíduos. Talvez seja importan- te mencionar que não estamos lidando com religiões estáticas e monótonas, engessadas pela rigidez de dogmas institucio- nais, ao contrário, as religiões afro-brasileiras se caracterizam

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principalmente pela dinamicidade e autonomia de cada templo – a arte de fazer e (re)fazer os rituais não se esgota, mas se renova cotidianamente em cada gira de umbanda, nos xirês de candomblé e nas mesas de catimbó.

Quando o Tuan afirma que lugar é uma categoria espa- cial construída a partir das vivências, ressalta a importância das experiências pessoais do homem e como esses investi- mentos são agenciados para dar valor aos lugares que lhes são caros. Desse modo, os cheiros, os sons, as cores, as texturas e as lembranças despertam no indivíduo as mais variadas sensa- ções, desde alegria até a melancolia e a saudade, por exemplo. O terreiro, entendido aqui como uma unidade espacial, é cons- tituído por uma série de imagens e discursos que ajustam o homem [crente] e atuam como conectores com as experiências do sagrado. Por meio destas, o homem é capaz de valorar, cons- truir e diferenciar aquilo que entende como positivo e muitas vezes, “sagrado”, do que não o eleva, pertencendo ao domínio do que considera “profano”. Esses conceitos são evocados com bastante frequência quando a discussão gira em torno de reli- gião/espiritualidade, assim, nós os observaremos a partir das ponderações de Piazza,

Não é uma “ideia”, ou seja, uma expressão puramente concei- tual do homem que ele faz do mistério da vida e do universo, mas uma “experiência” de algo que se manifesta e ao mesmo tempo se oculta no mundo sensível. Tanto é assim que o sagra- do permanece idêntico a si mesmo, embora assuma vários aspectos fenomenológicos segundo as várias condições de vida do homem. [...] O homem interpreta a sua experiência do Sagrado segundo as estruturas culturais em que vive, mas a

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experiência do Sagrado apresenta-se em todas estas culturas como algo que transcende (PIAZZA, 1983, p. 133).

A fim de estabelecer relações com o mundo excelso das divindades, o homem elabora “técnicas de construção do sagrado” (ROSENDAHL, 2002, p. 32), cujo propósito é tornar os espaços aptos às experiências religiosas. Todo terreiro necessi- ta ser sacralizado, é isso que lhe diferencia de outros espaços. O ritual de sacralização de uma casa de catimbó [umbanda ou candomblé] geralmente envolve práticas mágicas só conhecidas e executadas pelo sacerdote em conjunto com seu guia espiritual – seu mestre ou mestra. Essa preparação no catimbó começa com a “implantação da mina”, ritual que através do qual a casa passa a ter “força” mágico-religiosa para abrigar os espíritos de orixás, mestres e encantados. Dentro de uma abertura são colocados diferentes ícones a pedido do mestre ou mestra espiritual do terreiro: sementes de jurema, guias [fios de conta], crucifixos, punhais, fumo, cachaça e outros elementos que representem a “ciência” [a sabedoria] da entidade principal da casa. Enquanto se proferem orações e cânticos, os objetos são enterrados e a mina, vedada, preservando os segredos mágicos do templo.

O terreiro agora está dotado de poderes. Essa condição facilita a comunicação entre o mundo dos homens e o mundo dos espíritos. Esse é o papel do terreiro enquanto templo reli- gioso: atuar como palco onde as relações entre o homem e as divindades se desdobram. Todavia, em se tratando das reli- giões mediúnicas ou de possessão, como é o caso dos cultos afro-brasileiros, podemos perceber que o terreiro não é o único lugar onde essas interações ocorrem, existem ainda outros espaços que frequentemente se tornam propícios para o contato com as divindades.

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Santos (1977) dividiu-os em “espaços urbanos” e “espa- ços do mato”, o primeiro se refere aos templos e todos os seus compartimentos – cozinha, quarto de iniciações e o salão onde ocorrem as celebrações. Em nossa análise, consideramos ainda outros espaços que se enquadram no “urbano”. Frequentemente a liturgia do catimbó exige que alguns de seus rituais aconte- çam fora da espacialidade física do terreiro, é o caso de certas cerimônias de iniciação que ocorrem nas encruzas e encruzi- lhadas2, estradas e cemitérios.

No “espaço do mato” se inserem todo o vasto repertório de vegetais utilizados liturgicamente, tais como ervas, raízes e outras plantas. Nessa modalidade também estão inseridas matas, rios, mares, pedreiras, florestas, em suma, os espaços da natureza. As configurações espaciais são específicas de cada terreiro, pois nelas são aplicadas uma série de investimentos subjetivos: memórias, vivências e experiências com as divinda- des. Há ainda uma terceira categoria espacial igualmente impor- tante para o funcionamento dos cultos afro-brasileiros: o corpo.

2Encruza: caminho ou rua com formato da letra T, espaço dedicado às

pombagiras. A encruzilhada por sua vez está delineada em forma de + (cruz), domínio dos exus.

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