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e o templo de Medinet Habu

De acordo com as perspectivas mais recentes, como aquelas apresentadas por Eric Cline e David O’Connor1, Ramessés III –

que reinou de 1187 a.C. a 1157 a.C.2 – teria sido o último grande

rei do Novo Império (1539 a.C.-1077 a.C.), herói, responsável por grandes campanhas militares e pela construção de um suntuo- so complexo de culto real, em Medinet Habu. Uma estrutura feita para durar por toda a eternidade que, em pleno século XXI, apesar do desgaste do tempo e da ação humana, nos apre- senta cenas do faraó sobrepujando os inimigos estrangeiros do Egito, cultuando os deuses e performatizando rituais religiosos, gravadas nas paredes do templo, cujo estado de conservação o alçou à condição de maior exemplo da estrutura axial templá- ria do Novo Império. Seja por suas dimensões, pelo conteúdo

1Nos referimos à obra organizada por ambos, intitulada Ramesses III: The Life

and Times of Egypt’s Last Hero (2012), que apresenta as discussões mais recentes

no meio da Egiptologia a respeito do reinado deste faraó.

2As cronologias apresentadas estão de acordo com o estabelecido na obra

Ancient Egyptian Chronology, editada em 2006 pelo egiptólogo suíço Erik

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EXPERIÊNCIA, LUGAR E MEMÓRIA NA XX DINASTIA DO ANTIGO EGITO (1190-1077 a.C.): RAMESSÉS III E O TEMPLO DE MEDINET HABU

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histórico distribuído em seus painéis ou pelo impacto que teve à época de sua construção – e posteriormente – o “templo de Medinet Habu”, como é conhecido popularmente, é um exemplo da grandeza arquitetônica egípcia.

Os templos mortuários dos faraós egípcios, também conhecidos como mansões ou hwt, possuíam diversas funções, dentre as quais destacamos aquela voltada à sacralização daque- le lugar: ali aconteciam cerimônias recorrentes, em teoria, por toda a eternidade, levadas adiante por um corpo de sacerdotes que faziam a manutenção física e espiritual do templo. O obje- tivo principal desse espaço sacro era prover ao rei os elementos necessários para que seu ka, um tipo de duplo, ou

força invisível [...] que nasce com o homem e acompanha- -o durante a vida e apesar de abandoná-lo no momento da morte, continua a representar a personalidade do ser com o qual coexistiu (BRANCAGLION JR, 2004, p. 4),

sempre se renovasse, acompanhando os movimentos cíclicos diários da divindade solar, Amun-Re. Nesse espaço, a busca pela imortalidade do ser, e seus rituais, tornam-se o objeto central, a finalidade primordial.

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Figura 1 – Visão frontal do Templo de Medinet Habu, primeiro pilone. Fonte: <http://www.ancient-egypt.co.uk/medinet%20habu/index_2.htm>. Acesso em: 24 jan. 2015.

Além da importância ritualística que o templo de Medinet Habu possuía, há outros elementos que envolvem a própria ideo- logia do reinado egípcio que podemos enxergar nesse recinto. Um deles é a utilização das linguagens artísticas e arquitetôni- cas da época para realizar uma associação com determinadas divindades, como Osíris, Re-Harakhty e Amun em contextos ligados, respectivamente, a morte, a renovação cíclica e a manu- tenção do poder. Há ainda, no templo, uma clara divisão entre o que pode ser visto por olhos “comuns” e o que é destinado apenas aos deuses e funcionários do templo. Acreditamos que por ocasiões de festividades, por exemplo, a sociedade poderia ter acesso aos primeiros pátios do templo (CLINE; O’CONNOR, 2012, p. 242), passando pelos pórticos de entrada e pelos pilones, onde poderiam consumir, em baixos relevos, representações cuidadosamente escolhidas do faraó. Dentre estas, destacam-se os eventos históricos como as campanhas militares contra os Líbios e os Povos do Mar, e a participação do rei em procissões festivas, como o festival do vale e as procissões da barca de Ptah-Sokar (SNAPE, 1996, p. 43).

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Figura 2 – Visão aérea do complexo de templos de Medinet Habu. Fonte: <http://www.ancient-egypt-history.com/2010/04/medinet-habu- ramses-iii-temple.html>. Acesso em: 1 jun. 2016.

Outro elemento da linguagem templária em questão é a elaboração de um tipo ideal para o rei, guerreiro e responsável pela manutenção da paz e da ordem de seu território, que se encontra esculpido nas paredes do templo em formato de deco- rações de cunho claramente propagandístico e, como entende- mos, memorialístico. Assim como diversas outras sociedades, os egípcios antigos também produziam seu próprio cânone reme- morativo, não na forma de uma coleção de livros, mas de um templo (ASSMANN, 2011, p. 146). Este modelo espacial, em espe- cial o templo de Ramessés III, além de configurar uma fortaleza, com seu formato próximo a de um migdol sírio, reforçando uma clara preocupação da época com a questão da segurança e da defesa do território, é também um espaço sagrado, pois, através de sua arquitetura, representa o monte primordial, de onde

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a divindade cosmogônica teria ascendido para criar o mundo e os seres humanos, das águas caóticas do Nun. É, ainda, um espaço da ordem e da verdade baseado no ideal do “templo espelha todo o cosmos” (HORNUNG, 1992, p. 116), e um espaço de memória, uma memória cultural, que

[...] focaliza-se nas condições midiáticas e estruturas sociais da organização de que grupos e sociedades utilizam-se para conectarem-se a um suprimento objetivado de representações culturais, disponíveis em diversas formas (escrita, imagens, arquitetura, liturgia), para construir padrões de auto intepre- tação legitimados pelo passado (HARTH, 2008, p. 91). No templo de Medinet Habu, memórias relativas à gênese da sociedade egípcia e de outros célebres reinados são retoma- das e atualizadas, servindo como sedimentação tanto para o poder real quanto para a identidade do grupo, uma vez que a memória cultural “alcança um passado apenas até onde o passa- do por ser clamado como ‘nosso’. […] O conhecimento adqui- re função de memória ao ser relacionado com a identidade” (ASSMANN, 2008, p. 113).

Sabemos que o reinado de Ramessés III, em especial, foi repleto de situações sociais, econômicas e políticas ímpares para os padrões de estabilidade dos longos reinados do Novo Império egípcio. Tentativas de invasões por diferentes povos estrangei- ros, a primeira greve trabalhista documentada da história3 e

uma tentativa de assassinato que até hoje intriga os egiptólogos

3O papiro que registra essa greve encontra-se no Museu Egípcio de Turim, sob

a alcunha Turin Strike Papyrus. Para mais informações ver VAN DJIK, Jacobus. The Amarna Period and the Later New Kingdom. In: SHAW, Ian (Org.) The Oxford history of the ancient Egypt. United States: Oxford University Press, 2004. p. 298.

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atestam o clima de mudanças pelo qual estava passando o Egito naquele momento, clima esse que certamente refletiu-se nos programas de construção dos grandes monumentos régios da época. Sendo assim, temos de enxergar este tipo de espaço como “um produto da sociedade que o fabricou segundo o entramado das forças que, nela, detinham o poder” (LE GOFF, 1991, p. 227 apud CARDOSO, 2012, p. 30), procurando situá-lo em seu espe- cífico momento de produção, atentando para os discursos que circulavam naquela época. Nesse sentido, o discurso oficial – o discurso régio – era aquele utilizado nas grandes construções, cujas ideias estavam impregnadas nos símbolos que compu- nham o sistema artístico e de escrita daquela sociedade. Assim, entendemos o monumento como “uma modalidade de artefato especialmente adequada aos estudos das ideologias e visões de mundo” (CARDOSO, 2012, p. 30).