• Nenhum resultado encontrado

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

festa de São Sebastião, realizada em meados de janeiro, e a festa de Nossa Senhora das Graças, organizada na última semana de novembro, como as datas mais importantes. No período das referidas festas, o comércio local ganha fôlego, vendedores de outras localidades acorrem à cidade e ofertam seus produtos e as pessoas se envolvem de forma que a cidade fervilha de eventos sociais, culturais e religiosos.

Antes de adentrarmos com mais afinco às problemáticas concernentes ao Monte das Graças, espaço central no nosso estudo, é válido atentarmos para algumas peculiaridades do cenário religioso floraniense. No final do século XIX, o povoado das Flores sofreu com uma epidemia de cólera que se alastrou por inúmeras cidades do Seridó. Como os cuidados médicos não culminavam num resultado efetivo, entre outros serviços, devi- do à escassez de agentes especializados na arte de curar, recor- rer aos santos do panteão católico era uma estratégia bastante utilizada, pedia-se especialmente a São Sebastião, santo que protege contra as pestes e as epidemias2. Apesar de a devoção

a São Sebastião ser de longa data e contar com um fundo histó- rico importante, ele não é o santo mais popular da cidade. Tal fato pode ser averiguado no período dos festejos, em janeiro. Já a novena dedicada a Nossa Senhora das Graças conta com um sem número de fiéis e com o esforço da Igreja em promover esse louvor. Por fora, à margem da oficialidade canônica do catoli- cismo, aparece a Santa Menina, que junto a Nossa Senhora das Graças, é personagem eminente do Monte das Graças.

2Na oração oficial a São Sebastião podemos encontrar referências à atuação

deste santo nos casos das pestes: “[...] glorioso mártir São Sebastião, protegei- nos contra a peste, a fome e a guerra; defendei as nossas plantações e os nossos rebanhos, que são dons de Deus para o nosso bem e para o bem de todos [...]”.

126

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

O Seridó potiguar, em especial, é uma região na qual pode- mos encontrar inúmeros focos de religiosidade não oficial. Essa região está pontilhada de lugares resguardados por milagreiros dotados de poderes especiais que atuam para o bem de seus devotos. Como forma de agradecimento e cumprimento de sua parte do pacto efetuado com o milagreiro – entendido aqui como aquele que as pessoas consideram dotado de poderes sobrena- turais voltados para a ajuda dos vivos –, o devoto visita o “lugar do santo” quase sempre munido de algum objeto que expres- se a sua devoção e a sua fé naquele que lhe concedeu a graça. Notadamente no Dia de Finados, os espaços sagrados daqueles que obram milagres ficam recobertos de oferendas votivas. Tal atitude contribui na constituição de uma paisagem dominada pelo que poderíamos chamar aqui de uma estética do sagrado.

Ao entrar num espaço sagrado que abriga algum milagrei- ro, logo percebemos o colorido que se configura. Roupas, álbuns de fotografias, peças de gesso ou madeira, chapéus, cachimbos e mais uma infinidade de objetos podem ser encontrados nesses locais. A ordenação e disposição dos objetos acabam por cons- tituir ou dotar de novas significações determinada paisagem. Simon Schama, historiador britânico, estabelece bem a relação íntima entre paisagem e memória, partindo sempre da premissa de que a paisagem é “construída a partir de um rico depósito de mitos, lembranças e obsessões” (SCHAMA, 1996, p. 24). Os objetos alocados na capelinha do Monte, a sua organização estrutural, desde as vias de acesso ao lugar destinado à colocação das velas configuram aquele espaço como sagrado. A paisagem, inclusive, exerce uma significativa influência na devoção à Santa Menina a partir do momento em que sua trágica morte está associada à ideia de seca, aridez, escassez de água e de alimentos, assim sendo, remete à imagem discursiva de um Nordeste castigado

127

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

pelo sol e que tem como maior símbolo a caatinga ressequida, repleta de cactos de verde esmaecido e árvores cinzentas, uma paisagem da desolação3. De todo modo, a estética do sagrado

estaria relacionada com a paisagem mencionada pelo fato de os ex-votos e demais objetos dispostos no Monte das Graças constituem a paisagem daquele espaço sagrado.

Faz-se necessário percebermos que as manifestações de religiosidade não oficial4 se valem, muitas vezes, de espaços

pouco comuns para a peregrinação de fiéis em busca de mila- gres, lugares aparentemente desprovidos de sentido e de um aspecto religioso. O cemitério, encarado por muitos como um espaço envolto por uma aura negra pelo fato de ser a última e definitiva morada do ser humano, não raro, abriga dentro de seus muros algum túmulo pertencente a determinado defunto que obra milagres. Todavia, não somente o cemitério deve ser visto como um espaço atravessado pela religiosidade. Utilizamos o campo santo como exemplo por se tratar de um espaço-alvo das prodigiosas facetas do imaginário humano sobre a questão da morte e por ser o lugar, por excelência, de culto aos mortos. Partindo dessa prerrogativa, observamos que os fiéis recorrem a outros espaços a fim de prestar culto a determinado “santo”. O Monte das Graças, casa da Santa Menina, é um desses lugares.

Segundo a tradição oral perpetuada por considerável parcela dos habitantes de Florânia, em algum ano no início do

3Para uma discussão mais aprofundada sobre a construção discursiva e a

consequente “invenção” do Nordeste, ler ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2012.

4O termo “religiosidade não oficial” corresponde às manifestações do sagrado

que ocorrem à margem de qualquer expressão religiosa oficial, mantenedora de determinados dogmas como, por exemplo, a Igreja Católica Apostólica Romana.

128

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

século XX, uma menina viajava com seus pais retirantes em busca de terras que não tivessem sido castigadas pela seca que assolava o sertão por essa época. Enquanto procurava algumas frutas silvestres para se alimentar, a criança acabou se afas- tando dos pais. Não sabendo mais voltar ao encontro dos pais, pereceu de fome e de sede no alto do monte que, a posteriori, receberia o nome de Monte das Graças. A criança tornou-se milagreira e atua em favor daqueles que a ela recorrem.

A história parece simples, bem ajustada e, à exceção da imprecisão no ano do falecimento da Santa Menina, sem brechas. Muito longe dessa idealização historiográfica, a trama envolvendo a “santificação” da menina e a constituição do Monte das Graças enquanto espaço sagrado está atravessada pela complexidade das relações de poder, de arranjos políticos, disputas territoriais e, acima de tudo, pelas atitudes dos crentes que valoram e mantêm, através de seus atos, de suas falas e de suas memórias, aquele espaço.

A caatinga carregada de flora peculiar foi o espaço que propiciou o surgimento e a manutenção da devoção à Santa Menina. Como pudemos notar nos relatos dos devotos, a “paisa- gem caatinga” exerce influência fundamental nesse caso de manifestação do sagrado por estar intimamente atrelada à imagem da estiagem, da seca, do mesmo modo que a seca está vinculada a uma construção subjetiva que remete ao sofrimento, à fome e à sede e, consequentemente, à morte do sertanejo. No entanto, antes de explorarmos com mais detalhes a influência da paisagem da caatinga floraniense no pensamento e nas atitu- des dos fiéis, nós nos centraremos na discussão sobre o espaço.

Há até bem pouco tempo a História relegava a um plano menos privilegiado a problemática do espaço. Como o tempo figurava como protagonista maior das tramas históricas, o

129

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

espaço, quando mencionado, aparecia como pano de fundo, inerte aos acontecimentos que se sucediam, servindo unica- mente para suportar os pés dos homens que mudavam os rumos do mundo. Via-se no espaço uma simples obra da natureza. Corridas algumas décadas, marcadas pelo passo da renova- ção, as concepções acerca do fazer história mudaram, graças também ao namoro produtivo da História com outras disci- plinas do saber, como a Geografia e, neste caso específico, a Geografia Cultural.

A Geografia Cultural é o ramo da ciência geográfica que vem se constituindo e se afirmando nos últimos tempos, sendo o último quartel do século XX de suma importância para seu desenvolvimento. Assim como a História Cultural, a Geografia Cultural propôs a abordagem de novas temáticas, apontando que o estudo de manifestações culturais, associadas à discus- são espacial, é imprescindível para a composição do complexo quadro das relações sociais. A religiosidade, por exemplo, apare- ce como uma das temáticas relevantes nos estudos da Geografia Cultural, contribuindo para a compreensão da relação estabe- lecida entre o homem e o sagrado.

Nosso modo de pensar o espaço comunga das reflexões elaboradas por Yi-Fu Tuan, eminente intelectual da Geografia Humanista, contudo, muito afinado com as reflexões desenvol- vidas no seio da Geografia Cultural. Tuan, no discorrer do seu raciocínio, trata o espaço como algo que transborda dinami- cidade, como um dado real configurado tanto pelos processos naturais quanto pela experiência humana. Ele também enuncia que o espaço é percebido e experienciado pelo homem por meio de seus sentidos, de sua sensibilidade: “Os espaços do homem refletem a qualidade dos seus sentidos e sua mentalidade” (TUAN, 1983, p. 18). Ao nos debruçarmos sobre as ideias desse

130

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

geógrafo, faz-se necessário atentarmos para as especificidades das definições de espaço e lugar.

Para Tuan, o espaço se associa, por um lado, a uma dimen- são mais abrangente, abstrata, praticamente impossível de ser apreendido em sua totalidade tanto pela retina quanto pela mente humana. Por outro lado, o lugar seria a dimensão concre- ta palpável, mais próxima de nós, hachurada de acordo com nossas experiências e nossos desejos, esfera que não correspon- de ao aspecto fugidio do espaço. O lugar carrega um profundo significado por ter sido construído sob o constante acréscimo de sentimento no correr dos anos. Sabendo que as categorias espaciais são dinâmicas e podem se alterar indefinidamente, Tuan nos fala que o espaço, à medida que é experienciado, pode se tornar lugar; assim como o lugar, à medida que perde seu valor significativo, pode se tornar um espaço5.

As noções de espaço e lugar elaboradas por Tuan nos permitem pensar algumas questões concernentes à devoção a Santa Menina, assim como a relação dos fiéis com o Monte das Graças, o lugar de culto à criança morta. O acréscimo e a discussão de outras definições nos ajudam a compreender de maneira mais efetiva essa expressão peculiar do sagrado. Nesse sentido, as ideias da geógrafa Zeny Rosendahl são de grande valia para nosso trabalho. Primeiramente, versemos acerca do conceito de “espaço sagrado”. Segundo Rosendahl, um espa- ço se configura como sagrado por ser “um campo de forças e de valores que eleva o homem religioso acima de si mesmo, transportando-o para um lugar distinto no qual transcorre seu cotidiano” (ROSENDAHL; CORRÊA, 2008, p. 68).

5 Debate presente na obra: TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da

131

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

Essa noção, quando situada no arcabouço teórico da Geografia Humanística, focaliza a familiaridade com o lugar e a experiência compartilhada. A ideia de espaço sagrado, neste caso, pode ser aproximada com a concepção de “locais sagrados”, constituída por Aleida Assmann. A serra, antes sem nenhuma particularidade que a distinguisse das demais elevações que a circundavam, recebendo o nome de Monte das Graças, passou a ser um local sagrado. Essa configuração pode- ria ser enquadrada no que Aleida Assmann entende por locais sagrados e paisagens míticas. Segundo essa autora, podemos considerar o local sagrado como uma zona de contato entre Deus e o homem6. Ela ainda nos mostra que “a morada dos

deuses não era apenas o céu, mas também a montanha, a gruta, o bosque, a fonte e onde mais se erigissem seus locais de culto” (ASSMANN, 2011, p. 322).

Assmann observa de maneira perspicaz que um espaço pode ser alçado à condição de sagrado pelo sangue. De acor- do com a autora, o sangue de um mártir, por exemplo, ao ser “derramado” em determinada porção de terra, enriquece o local, embebendo-o não só desse líquido mas também de toda uma simbologia, convertendo-o em paisagem sacramental. Em direção parecida, o geógrafo Sylvio Fausto Gil Filho atenta para a dimensão corporal que envolve a sacralização de determi- nado lugar e a emergência de um culto. Segundo esse autor, o corpo morto altera as relações do cotidiano. Ainda de acordo com Gil Filho,

6ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da

132

CHÃO DE FÉ: RELIGIOSIDADE, TEMPO E ESPAÇO NO SERTÃO POTIGUAR

Bruno Rafael dos Santos Fernandes

[...] a morte representa a base radical da espacialidade do sagrado. Ela nos demonstra a plena consciência do transitório, do material, do contingente. A concretude da morte do homem edifica as relações de transcendência próprias da religião. Um aspecto determinante da representação social da religião é a superação da morte, sendo suas expressões presentes na espacialidade do sagrado (GIL FILHO, 2002, p. 262).

Podemos entender, então, que a morte trágica da menina filha de retirantes foi o acontecimento chave para a emergência de uma manifestação religiosa. O fenômeno religioso que ocorre na cidade de Florânia está indissociavelmente ligado ao lugar da morte da criança. De acordo com os relatos dos fiéis, a menina foi encontrada morta ao pé de uma umburana, árvore símbolo da devoção, segurando em uma das mãos uma fruta de cardeiro, um cacto facilmente encontrado na região. Em suma, existem geossímbolos atrelados à história da Santa Menina e os fiéis dão nota desses elementos quando falam sobre ela. A umburana, hoje morta, ainda resiste como ruína no interior da capelinha dos milagres erguida em homenagem à Santa Menina. A ruína tem um poder evocativo. Visitando o local, é possível também observar que o Monte das Graças, em sua configuração atual, é resultado de embates e disputas envolvendo diversos agentes, como poderemos constatar a seguir.