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Utilização de obras literárias como fontes históricas: algumas considerações

Considerando essa última discussão, sobre a importância do relato na construção espacial, seria pertinente justificar a utilização de uma fonte literária em uma produção historio- gráfica. Conforme afirma o método estruturalista genético, do sociólogo francês Lucien Goldmann (1976), as produções literárias podem e devem ser analisadas historicamente, por serem fruto das estruturas mentais de seus autores e apre- sentarem o ponto de vista do indivíduo em sua coletividade, enquanto membro de um grupo social. Nesse sentido, muitas são as discussões sobre a utilização de um texto literário como fonte histórica. Conforme afirma o literato francês Antoine Compagnon (2001), é imprescindível, na história literária, que o escritor e sua obra sejam compreendidos de acordo com seu contexto histórico e que a leitura e compreensão de uma obra literária também pressupõe o conhecimento de sua situação histórica. O autor continua afirmando que “hoje em dia, a própria História é lida cada vez com mais frequência como se fosse literatura, como se o contexto fosse necessariamente texto” (COMPAGNON, 2001, p. 222).

Neste mesmo viés, o historiador francês Roger Chartier (2000), debatendo sobre a relação existente no uso da Literatura pela História, afirma que

trata-se também de considerar o sentido dos textos [lite- rários] como o resultado de uma negociação ou transações entre a invenção literária e os discursos ou práticas do mundo social [...] (CHARTIER, 2000, p. 197).

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Então, seguindo a linha interpretativa de Chartier, os textos literários seriam resultados de discursos ou práticas do mundo social ao qual o autor pertence. Ainda, para entender as razões de produção de uma obra, sua realização e as formas de apropriação do passado, é essencial que haja um distanciamen- to por parte do pesquisador, ou seja, como afirma o historiador francês Marc Bloch (2002), é necessário realizar uma crítica à fonte1, a fim de perceber como os elementos trazidos pelo texto

são arquitetados tendo em vista uma finalidade específica, a partir de interesses individuais ou de um determinado grupo. Por fim, seria preciso compreendê-los em contato com a sua própria historicidade de produção.

Conforme afirma o historiador brasileiro Ciro Flamarion Cardoso (1997), há muita discussão sobre o literário e o real. A História estaria relacionada ao real, enquanto o fictício, ou até mesmo a mentira, estaria associado à Literatura. Cardoso (1997), de maneira breve, resolve essa discussão afirmando que cada sociedade tem o seu significado em relação ao real e ao fictício. O que poderia conjugar realidade em uma dada época, hoje corresponde à ficção e, além disso, o sentido de Literatura trabalhado na Antiguidade se diferencia da nossa percepção atual, que remete Literatura apenas à ficção. A historiadora Sandra Jatahy Pesavento (1995), por sua vez, discorda que o discurso literário tenha relação apenas com o imaginário. Para ela, na Literatura, há uma preocupação com a verossimilhança. Desse modo, a literatura vista como ficção não seria o inverso do real. Ao contrário, ela corresponderia a outra forma de captá- -lo, com a permissão para o uso de figuras de linguagens, em

1Para saber mais: BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do

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que os limites da criação e da fantasia perpassam as barreiras permitidas ao discurso historiográfico.

A autora continua sua discussão citando o historiador francês Paul Ricouer. Para ele, o discurso da literatura, ficcional, é “quase história”, já que os acontecimentos que estão presentes no relato decorrem do passado para aquele que narra e para aquele que lê e tais vicissitudes são relatadas como se realmente tivessem acontecido. Conforme Pesavento, a Literatura não tem a obrigação de comprovar os seus relatos, mas se preocupa com sua reconfiguração temporal, o que a relaciona com a História. Nesse sentido, é necessário pensar os discursos literários diacronicamente e de forma inseparável da figura do autor.

Dando voz ao passado, História e Literatura proporcionam a erupção do ontem no hoje. Esta reapresentação daquilo que ‘já foi’ é que permite a leitura do passado pelo presente como um ‘ter sido’, ao mesmo tempo figurando como o passado e sendo dele distinto (PESAVENTO, 1995, p. 117).

Concluindo seu pensamento sobre a relação entre História e Literatura, a historiadora afirma que aos olhos dos historiadores, a literatura atua como uma fonte, não para ser lida de modo literal, e sim como uma representação do que ela apresenta. No relato literário, o que deve ser observado é o modo como o mundo é representado ou reapresentado. Nesse sentido, Pesavento conclui que a História também não pode ser lida de modo literal, já que ela também é uma representação do real. Portanto,

a literatura tem se revelado o veículo por excelência para captar sensações e fornecer imagens da sociedade por vezes

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não admitidas por esta ou que não são perceptíveis nas tradicionais fontes documentais utilizadas pelo historiador (PESAVENTO, 1995, p. 118).

Para concluir essa breve apresentação conceitual sobre o uso da Literatura dialogada com a História, utiliza-se a análise desenvolvida pelas críticas literárias Magaly Trindade Gonçalves e Zina Castelletti Bellodi (2005). Para elas, a preo- cupação em definir Literatura vem desde a Antiguidade. Essa preocupação tem início na Grécia, e lá também foram produzi- das as primeiras obras-primas que permaneceram no mundo ocidental. Este argumento é acrescido da pertinente afirmação de que na Literatura não há progresso e nem obsolescência.

Os poemas homéricos, para as autoras, marcam essa ausência de progresso, já que foram produzidos há alguns milê- nios e continuam sendo consultados, revisitados e reinterpreta- dos na tentativa de buscar novos elementos sobre as civilizações antigas. Citando Aristóteles, elas afirmam que o fascínio das obras literárias está em sua relação com a realidade, com o contexto, não no sentido de imitação ou repetição da realidade, e sim na forma como representa ou reconstrói. Desse modo, a literatura surge para dar resposta aos impulsos humanos, que são satisfeitos nela. Ela corresponde a uma necessidade básica do ser humano. Diz respeito a sua própria natureza e integra um processo de transcendência da realidade.

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Culto isíaco e a construção de espaços