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O FEMINISMO OU O ERRO EM RELAÇÃO À MULHER

10. A ANARQUIA SUPREMA

Mas há ainda outro fato, também esquecido, uma vez que nós, modernos, nos esquecemos de que existe um ponto de vista feminino. A sabedoria da mulher consiste não só numa hesitação saudável quanto ao castigo, mas também numa hesitação saudável quanto às regras

incondicionais. Havia algo de feminino e perversamente verdadeiro naquela frase de Wilde, segundo a qual as pessoas não deveriam ser tratadas como regra, mas como exceções. O comentário tem um quê de afeminado, se considerarmos que foi feito por um homem: a Wilde faltava o másculo poder do dogma e da cooperação democrática. Mas, se uma mulher o

tivesse proferido, ele seria simplesmente verdadeiro; a mulher trata cada pessoa como alguém peculiar. Em outras palavras, ela representa a anarquia, filosofia mui antiga e defensável, que, totalmente diversa da anarquia moderna que prega a extirpação dos costumes da vida (o que é inconcebível), está fundada na extirpação das regras para o espírito. A ela devem-se, quase com certeza, todas as tradições que não se podem encontrar nos livros, em especial as de educação. Foi ela quem primeiro deu à criança uma meia natalina recheada de presentes como recompensa por seu bom comportamento, e quem primeiro a pôs num canto de castigo como punição por seu mau comportamento. Esse inclassificável conhecimento recebe às vezes o nome de “regra prática” ou “engenho materno”. A última expressão exprime a mais pura verdade, pois jamais foi chamado de “engenho paterno”.

A anarquia não passa de tato quando funciona mal. E o tato não passa de anarquia quando funciona bem. E é necessário compreendermos que em uma metade do mundo – a casa privada – isso funciona bem. Nós, os homens modernos, esquecemo-nos perpetuamente de que a

questão das regras claras e penas brutas não é auto-evidente e de que ainda há muito a dizer em prol da ilegalidade benevolente do autocrata, especialmente quando em pequena escala. Em resumo, esquecemo-nos de que o governo é apenas um dos lados da vida. A outra metade é chamada sociedade e nela as mulheres são reconhecidamente dominantes. E elas sempre

estiveram inclinadas a afirmar que seu reino é mais bem governado do que o nosso, pois não é de forma alguma governado (nos sentidos lógico e legal da palavra). “Quando vocês têm uma dificuldade real”, dizem-nos elas, “quando um garoto é presunçoso ou uma tia é avarenta, quando uma garota estúpida quer se casar ou um homem perverso não quer se casar, esse seu atravancado Direito Romano, a parafernália da sua Constituição Britânica, tudo isso fica imobilizado. O motejo de uma duquesa ou a grosseria de uma peixeira resolveriam as coisas com muito mais facilidade.” Ao menos assim ressoava a provocação feminina ao longo do anos até a recente capitulação feminina. Assim ondeava o rubro estandarte da anarquia suprema até a senhorita Pankhurst içar a bandeira branca.

Há que lembrar que o mundo moderno traiu profundamente o intelecto eterno ao dar crédito à oscilação do pêndulo. Antes de oscilar, é preciso que o homem morra. Essa noção trocou a liberdade medieval da alma em busca da verdade por uma idéia fatalista de alternância. Todos os pensadores modernos são reacionários, pois seus pensamentos são sempre uma reação àquilo que se passou anteriormente. Quando nos deparamos com um homem moderno,

praticamente todos os lugares e períodos a humanidade soube da existência da alma e do corpo tão certamente quanto da existência do sol e da lua. Mas porque a mesquinha seita protestante dos materialistas declarou, por um breve período, que não havia alma, outra mesquinha seita protestante chamada Ciência Cristã está agora a pregar a inexistência do corpo. Ora, foi justamente da mesma maneira que a Escola de Manchester, negligenciando o governo, não produziu um respeito mais razoável para com o governo, mas uma desarrazoada negligência de tudo o mais, a tal ponto que, ao escutar as pessoas conversando hoje, é de imaginar que todas as funções humanas importantes devem ser organizadas pela lei e sujeitar- se a punições legais; que toda educação deve ser estatizada; que todos os empregos devem ser estatais; que tudo e todos devem ser levados ao pé da augusta e pré-histórica forca. Mas um exame mais livre e complacente da humanidade bastará para convencer-nos de que a cruz é ainda mais antiga que o cadafalso, de que o sofrimento voluntário antecedeu e independe do compulsório, em suma, de que, nas questões mais importantes, ao homem sempre foi

concedida liberdade para arruinar-se a si mesmo, se assim o escolhesse.

A imensa e fundamental função em torno da qual gira toda a antropologia, a do sexo e

nascimento, jamais esteve dentro do estado político, mas sempre fora dele. O Estado ocupava- se com a questão trivial de matar pessoas, mas sabiamente deixava de lado o assunto de fazê- las nascer. Um eugenista poderia dizer, com alguma razão, que o governo é uma pessoa

distraída e inconseqüente que se preocupa em sustentar a velhice de pessoas que jamais foram crianças. Não entrarei aqui nos detalhes do fato de que alguns eugenistas da nossa época

apresentam como solução para esse problema a desvairada proposta de uma polícia controlando o casamento e o nascimento como faz com o trabalho e o óbito. Com exceção desse inumano grupo (do qual infelizmente terei de me ocupar mais tarde), todos os eugenistas que conheço podem ser divididos em dois grupos: os engenhosos, que já pensaram nisso, e os desorientados, que juram jamais ter pensado nisso ou em algo do tipo. Se, contudo, numa avaliação mais vivaz dos homens, admitirmos que a maioria deles deseja um casamento livre da intervenção estatal, isso não quer dizer que desejam que ele seja livre de tudo o mais. Se o homem não controla o mercado matrimonial por meio da lei, estará ele controlado de alguma forma? A resposta, seguramente, é que o homem não controla o mercado matrimonial por meio da lei, mas é a mulher quem o controla por meio da simpatia e do preconceito. Até pouco, vigorava uma lei que proibia um homem de casar-se com a irmã de sua falecida esposa; não obstante, isso acontecia constantemente. Por outro lado, não havia uma lei que lhe proibisse desposar a criada da falecida e isso não acontecia com muita freqüência. Não acontecia porque o mercado matrimonial é orientado segundo o espírito e a autoridade das mulheres e elas, em geral, são conservadoras no que diz respeito a classes sociais. O mesmo ocorre com o sistema de exclusivismo que permitiu tantas vezes às damas (como num processo de

eliminação) evitar os casamentos que não desejavam e algumas vezes até mesmo obter os que desejavam. Para tanto, não houve necessidade de broad arrows, nem de flores-de-lis

marcadas a ferro e fogo, nem das correntes do carcereiro, nem das cordas do carrasco. Se se pode silenciar um homem, não há razão para estrangulá-lo. Marcar a ferro um ombro é menos

efetivo e menos definitivo do que dar de ombros. E não vale a pena preocupar-se com trancar um homem dentro se se pode trancá-lo do lado de fora.

O mesmo ocorre com a arquitetura colossal a que chamamos educação infantil: uma estrutura totalmente edificada por mulheres. Nada jamais poderá superar essa tremenda superioridade do sexo feminino que consiste em até mesmo o filho varão nascer mais próximo da mãe que do pai. Ao observar esse extraordinário privilégio feminino, não há quem possa acreditar de fato na igualdade dos sexos. Vez ou outra lemos que uma menina foi educada como uma Maria- tomba-homem; mas todos os meninos são educados como uma dócil menina. A carne e o espírito da feminilidade cercam-nos desde o princípio, como as quatro paredes de uma casa. E até mesmo o mais dúbio e o mais brutal dos homens foram feminilizados quando nasceram. O homem nascido de mulher tem dias curtos e cheios de miséria, mas não há quem possa conceber a obscenidade e a tragédia irracional que seria um homem nascido de um homem.