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OS INIMIGOS DA PROPRIEDADE

Mas é exatamente por essa razão que tal explicação é necessária no limiar mesmo da

definição de ideais. Pois devido à falácia histórica de que acabo de tratar, um grande número de leitores esperará que, ao propor um ideal, eu proponha um ideal novo. Mas não tenho a mínima intenção de propor um ideal novo. Nenhum ideal novo imaginável pela loucura dos sofistas modernos seria tão assustador quanto a realização de qualquer um dos antigos. No dia em que se realizarem quaisquer máximas copiadas em cadernos, as nações serão tomadas por uma espécie de terremoto. Só há uma coisa nova a fazer sob o sol: olhar para o sol. Se o tentarmos num claro dia de junho, saberemos por que os homens não olham diretamente para seus ideais. Só há uma coisa realmente assustadora a fazer com o ideal: realizá-lo, encarar o ardente fato lógico e suas pavorosas conseqüências. Cristo sabia que cumprir a lei seria um portento mais esplêndido que destruí-la. Isso se aplica aos dois exemplos que citei e a todos os outros. Os pagãos sempre adoraram a pureza: Atena, Ártemis, Vesta. Mas foi só as virgens mártires começarem a praticá-la desafiadoramente que eles lançaram-nas aos leões e fizeram- nas deslizar sobre carvão em brasa. O mundo sempre amou acima de tudo a idéia do homem pobre: prova disso são todas as lendas, de Cinderela a Whittington, e todos os poemas, do Magnificat à Marselhesa. Os reis não ficaram furiosos com a França porque ela concebeu esse ideal, mas porque ela o concretizou. José da Áustria e Catarina da Rússia concordavam que o povo deveria governar, mas qual não foi seu horror quando o povo de fato o fez. A Revolução Francesa é, pois, o modelo de toda revolução genuína, já que seu ideal é tão velho quanto o velho Adão, mas sua realização é quase tão fresca, tão milagrosa e tão nova quanto a Nova Jerusalém.

Mas no mundo moderno confrontamo-nos principalmente com o extraordinário espetáculo das pessoas acercando-se de novos ideais porque ainda não experimentaram os velhos. Os homens não se cansaram do cristianismo; eles nunca acharam cristianismo suficiente para se cansarem dele. Os homens nunca se fartaram de justiça política; fartaram-se de esperar por ela.

Assim sendo, para os fins deste livro, proponho tomar um só desses velhos ideais, mas um que talvez seja o mais velho. Tomo o princípio da domesticidade: a casa ideal, a família feliz, a sagrada família da história. Por ora, basta dizer que, assim como a Igreja e a república, esse princípio vem sendo atacado, especialmente neste momento, por quem nunca o conheceu ou por quem falhou em realizá-lo. Um sem número de mulheres modernas rebelaram-se em tese contra a domesticidade porque jamais a conheceram na prática. Bandos de pobres são levados para casas de trabalho sem jamais terem conhecido a casa. Em termos gerais, a classe culta está gritando para que a deixem sair do lar decente, enquanto a classe trabalhadora está berrando para que a deixem entrar.

Mas, se tomarmos essa casa ou lar como critério, poderemos estabelecer de maneira muito genérica os alicerces espirituais ou a idéia. Deus é aquele que pode produzir algo a partir do nada. O homem – e isto podemos dizer com toda a sinceridade – é aquele que pode produzir algo a partir de qualquer coisa. Em outras palavras, enquanto a alegria de Deus pode estar na

criação ilimitada, a alegria especial do homem está na criação limitada, na combinação entre criação e limites. É por essa razão que o prazer do homem está em possuir condições, mas também em ser parcialmente possuído por elas: parcialmente controlado pela flauta que toca ou parcialmente controlado pela terra que escava. A excitação está em tirar o máximo de

determinadas condições; as condições se esticarão, mas não indefinidamente. Um homem pode escrever um soneto imortal num velho envelope ou talhar um herói num torrão de pedra. Mas talhar um soneto na pedra seria um tanto difícil e fazer dum envelope um herói está

completamente fora da esfera da política prática. Essa frutífera luta contra as limitações,

quando se dá como um gracioso entretenimento de uma classe educada, recebe o nome de arte. Mas a maioria dos homens não tem nem tempo nem aptidão para forjar uma beleza invisível ou abstrata. Para a maioria dos homens, a idéia da criação artística só pode ser expressa por meio de uma idéia pouco popular nas discussões atuais, a idéia de propriedade. O homem médio não é capaz de moldar na argila uma forma humana, mas é capaz de moldar na terra a forma dum jardim. E ainda que o adorne com fileiras alternadas de gerânios vermelhos e batatas azuis não deixará de ser artista, uma vez que escolheu. O homem médio não é capaz de pintar o poente com as cores que aprecia, mas é capaz de pintar sua própria casa da cor que quiser. E ainda que pinte sua casa de verde-ervilha com bolinhas cor-de-rosa não deixará de ser artista, uma vez que aquela foi a sua escolha. A propriedade é tão somente a arte da democracia. Significa que todo homem deveria ter algo para moldar à sua própria imagem, assim como ele foi moldado à imagem do Céu. Contudo, como ele não é Deus, mas apenas uma imagem esculpida Dele, sua expressão pessoal deve dar-se dentro de certos limites. A rigor, dentro de limites severos e até mesmo estreitos.

Estou perfeitamente consciente de que, em nossa época, a palavra “propriedade” foi

pervertida pela corrupção dos grandes capitalistas. Pelo que a gente anda a dizer, poder-se-ia pensar que os Rotschilds e os Rockefellers são defensores da propriedade. Mas eles

obviamente são inimigos da propriedade, pois são inimigos dos limites delas. Já não querem sua terra própria senão a alheia. Quando demovem as demarcações de seus vizinhos, também demovem as suas próprias. O homem que ama um pequeno campo triangular deveria amá-lo por ser triangular. Quem quer que lhe destrua a forma, embora lhe dê mais terras, é um ladrão que roubou um triângulo. O homem que leva consigo a verdadeira poesia da posse deseja ver um muro no encontro de seu jardim com o jardim do sr. Smith, uma sebe no encontro de sua fazenda com a do sr. Brown. Não consegue ver a forma de sua própria terra sem ver os limites da do vizinho. O duque de Sutherland possuir todas as chácaras numa única propriedade rural é a negação da propriedade, assim como seria a negação do casamento se ele tivesse todas as nossas esposas em um único harém.