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AUTORIDADE, A INEVITÁVEL

A EDUCAÇÃO OU O ERRO EM RELAÇÃO À CRIANÇA

6. AUTORIDADE, A INEVITÁVEL

Mas o importante aqui é que não há como livrar-se da autoridade na educação; e a questão não está tanto (como dizem os pobres conservadores) em devermos preservar a autoridade dos pais quanto no fato de que é impossível destruí-la. O sr. Bernard Shaw disse certa vez que odiava a idéia de moldar a mente de uma criança. Ora, já que odeia algo inseparável da vida humana, o melhor que houvera feito o sr. Shaw era enforcar-se.

Só mencionei o educere e a extração das faculdades a fim de mostrar que nem mesmo com esse truque mental é possível livrar-se da inevitável idéia da autoridade parental ou escolar. O educador que extrai é tão arbitrário e coercitivo quanto o instrutor que incute, pois aquele extrai o que melhor lhe parece, decide o que deve e o que não deve ser desenvolvido na criança. Suponho que não extraia a descuidada faculdade da falsificação. Não extrai – ao menos até agora – um tímido talento para a tortura. O único resultado de toda essa pomposa e precisa distinção entre o educador e o instrutor é que o instrutor empurra para onde quiser e o educador puxa de onde quiser. A violência intelectual feita à criatura empurrada é exatamente a mesma feita àquela puxada. Portanto, devemos agora aceitar a responsabilidade desta

violência intelectual. A educação é violenta porque é criativa. É criativa porque é humana. É tão implacável quanto tocar violino; tão dogmática quanto fazer uma pintura; tão brutal quanto construir uma casa. Resumindo, é o que toda ação humana é, uma interferência na vida e no crescimento. Depois disso, torna-se uma questão trivial e até mesmo jocosa saber se esse tremendo atormentador que é o Homem artista insere coisas em nós, como um boticário, ou extrai coisas de nós, como um dentista.

O ponto principal é que o Homem faz o que quer. Reivindica o direito de controlar sua mãe Natureza, reivindica o direito de fazer seu filho, o Super-homem, à sua imagem. Basta fugir a essa criativa autoridade do homem para que toda a corajosa incursão a que chamamos

civilização vacile e desmorone. Ora, muitíssimo da liberdade moderna trata-se, no fundo, de medo. Não é que sejamos tão audazes que não suportemos leis; antes somos tão tímidos que não suportamos responsabilidades. E o sr. Shaw e homens como ele têm um pavor todo especial por essa medonha e ancestral responsabilidade que nossos pais nos transmitiram quando deram o desvairado passo que os tornou homens. Refiro-me à responsabilidade de afirmar a verdade de nossa tradição humana e transmiti-la com voz firme e cheia de

autoridade. Eis a educação perpétua: ter suficiente certeza de que algo é verdadeiro a ponto de chegar à ousadia de contá-lo a uma criança. É deste dever altamente audacioso que os

modernos estão fugindo de todas as formas possíveis e sua única desculpa é, naturalmente, que suas filosofias modernas são tão imaturas e hipotéticas que eles não se julgam capazes de convencer nem a eles mesmos, quanto menos a um recém-nascido. É claro que isso está ligado à decadência da democracia e é, de algum modo, outro assunto. Por enquanto, basta esclarecer que, quando digo que devemos instruir nossas crianças, isso significa que nós teremos de fazê- lo, não o sr. Sully ou o professor Earl Barnes.45 O problema de muitas de nossas escolas modernas é que o Estado, uma vez controlado tão particularmente por uns poucos, permite que excentricidades e experimentos entrem diretamente nas salas de aula, sem jamais terem sido

submetidos à apreciação do Parlamento, dos pubs, da igreja, das praças públicas.

Obviamente, às pessoas mais jovens dever-se-ia ensinar as coisas mais velhas, as verdades seguras e experimentadas que se ensinam primeiro aos bebês. Mas na escola de hoje o bebê tem de se submeter a um sistema que é ainda mais jovem do que ele próprio. O menino cambaleante de quatro anos tem na verdade mais experiência – e esteve mais exposto ao mundo – do que o dogma ao qual foi sujeitado. Muitas escolas gabam-se de aplicar as últimas idéias da educação quando, na realidade, não aplicaram nem a primeira: a de que até mesmo a inocência, por divina que seja, pode aprender algo da experiência. Mas isso, como disse, deve-se unicamente ao fato de estarmos governados por uma pequena oligarquia. Meu sistema pressupõe que homens que se governam a si mesmos irão governar seus filhos. Hoje todos nós usamos o termo “educação popular” com o sentido de “educação do povo”. Meu desejo é que tivesse o sentido de educação pelo povo.

O que ocorre presentemente e é assunto urgente é que esses educadores expansivos não evitam a violência da autoridade nem uma polegada a mais que os antigos mestres. Talvez pudéssemos sustentar que a evitam ainda menos. O velho mestre do vilarejo batia no menino porque ele não aprendia gramática e mandava-o ao pátio para brincar do que quisesse; ou para brincar de nada, se essa fosse sua vontade. Agora, o moderno mestre científico persegue o garoto até o pátio e fá-lo jogar críquete, porque “exercício é tão bom para a saúde!” O sr. Busby46 não só é doutor em seu consultório médico, mas também doutor em teologia. Ele pode até dizer que as vantagens dos exercícios físicos são auto-evidentes; mas é ele quem tem de dizê-lo, e dizê-lo com autoridade. Ora, se tais exercícios fossem de fato auto-evidentes, eles não precisariam ser obrigatórios. Mas isso é coisa menor na prática moderna. Na prática moderna, o educador liberal proíbe muito mais do que o educador à moda antiga. Uma pessoa a quem apeteça o paradoxo (se é que uma criatura tão sem vergonha pode existir) poderia sustentar com certa plausibilidade que toda a nossa expansão, desde o fracasso do franco paganismo de Lutero até sua substituição pelo puritanismo calvinista, não foi de fato uma expansão, mas o cerrar das grades de uma prisão que fez que cada vez menos coisas belas e humanas fossem permitidas. Os puritanos destruíram imagens; os racionalistas proibiram os contos de fada; o conde Tolstói publicou uma de suas “encíclicas papais” contra a música; e ouvi contar de educadores modernos que proíbem as crianças de brincar com soldadinhos de chumbo. Lembro-me de um dócil maluquinho que me abordou num soirée socialista ou em algum evento dessa sorte e pediu-me que eu usasse de minha influência (e tenho lá alguma influência?) para atacar as histórias de aventura para garotos, pois parecem estimular uma ânsia de sangue. Mas isso não importa. Alguém precisa manter-se equilibrado neste hospício. Só preciso insistir aqui que essas coisas, embora sejam privações razoáveis, são privações. Não nego que as velhas proibições e os antigos castigos fossem muitas vezes estúpidos e cruéis, conquanto sejam-no muito mais num país como a Inglaterra (onde, na prática, somente os homens ricos decretam os castigos e somente os homens pobres os recebem) do que em países com uma tradição popular mais clara, como a Rússia. Na Rússia, o açoite é muitas vezes infligido a um camponês por outros camponeses. Na Inglaterra moderna, o açoite só pode, na prática, ser infligido se a um homem muito pobre e por um cavalheiro. Assim é que,

há poucos dias, um garotinho – filho de pobres, é claro – foi condenado ao açoite e a cinco anos de prisão por ter roubado um pedaço de carvão que os peritos avaliaram em cinco pences. Dou meu total apoio aos liberais e humanitários que protestaram contra esta ignorância quase bestial com respeito aos garotos. Entretanto, penso que seja um bocado injusto que esses mesmos humanitários que desculpam os garotos por serem ladrões

denunciem-nos por brincar de ladrões. Acho que, se é compreensível que um menino de rua brinque com um pedaço de carvão, um jorro repentino de imaginação permitirá que seja perfeitamente compreensível que ele brinque com um soldadinho de chumbo. Numa única frase: acho que aquele dócil maluquinho era capaz de compreender que muitos garotos prefeririam ser açoitados – e açoitados injustamente – a que lhes tirassem as histórias de aventura.