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O IMPERIALISMO OU O ERRO ACERCA DO HOMEM

3. A VISÃO COMUM

Ora, esse amor masculino a uma camaradagem aberta e uniforme é o que vive no íntimo das democracias e tentativas de governo por debate. Sem ele, a república seria uma fórmula morta. Mesmo no estado em que se encontra, o espírito da democracia freqüentemente difere muito da letra, e uma taberna é geralmente melhor prova disso do que um parlamento. A democracia em seu sentido humano não é o arbítrio da maioria; não é sequer o arbítrio de todos. Pode ser definida com mais correção como o arbítrio de qualquer um. Quero dizer que ela está amparada naquele hábito de clube de aceitar que um completo desconhecido pode inevitavelmente ter algumas coisas em comum conosco. Somente as coisas a que supomos que qualquer um aderiria têm a autoridade total da democracia. Olhe pela janela e repare no

primeiro homem que passa. Ainda que os liberais sejam esmagadora maioria na Inglaterra, você não apostaria um centavo em como esse homem é liberal. Ainda que leiam a Bíblia nas escolas e a respeitem nos tribunais, você não apostaria um alfinete em como esse homem crê na Bíblia. Mas você apostaria o ordenado da semana, digamos, em como ele crê em suas vestimentas. Apostaria que ele crê que a coragem física é algo admirável, ou que os pais têm autoridade sobre os filhos. Eventualmente, poderia calhar de ele ser o único em um milhão de pessoas que não acredita nessas coisas; nesse caso, ele seria a mulher barbada em trajes masculinos. Mas tais prodígios são algo bastante diferente do mero cálculo numérico. As pessoas que sustentam essas concepções não são uma minoria, mas um número monstruoso. Entretanto, a única forma de provar tais dogmas universais, que têm total autoridade

democrática, é submetê-los à prova do qualquer um. O que você poderia observar em qualquer desconhecido recém-chegado a uma taberna, eis a verdadeira lei da Inglaterra. O primeiro homem que você avistar pela janela, eis o rei da Inglaterra.

Não há dúvida de que a decadência das tabernas, que não é senão uma parte da decadência generalizada da democracia, enfraqueceu esse espírito masculino de igualdade. Lembro que um cômodo abarrotado de socialistas literalmente riu quando lhes disse que não havia em toda a poesia duas palavras mais nobres do que “casa pública”.31 Eles pensaram que se tratava de uma piada. Mas não posso imaginar por que justamente eles, que pretendem transformar todas as casas em casas públicas, pensaram que se tratava de uma piada. Mas, se alguém quer de fato ver como é o verdadeiro igualitarismo arruaceiro indispensável ao menos aos homens, poderá encontrá-lo, mais do que em qualquer outro lugar, nas discussões das grandes tabernas antigas que vemos descritas em livros como o de James Boswell sobre a vida de Samuel Johnson. Esse nome é especialmente digno de nota, pois o mundo moderno, em sua morbidez, fez-lhe estranha injustiça. Diz-se que a conduta de Johnson era “rude e despótica”. É verdade que ocasionalmente era rude, mas jamais foi despótica. Johnson podia ser tudo menos déspota. Johnson era um demagogo, ele gritava a uma multidão gritante. O próprio fato de que brigava com os outros é prova de que lhes permitia brigarem com ele. Até sua brutalidade baseava-se na idéia de uma escaramuça entre iguais, como no futebol. Ele berrava e batia na mesa porque era um homem humilde. Tinha um sincero medo de ser subjugado ou mesmo negligenciado.

Addison, por outro lado, tinha modos requintados e era o rei entre os companheiros. Era polido com todos, mas arrogante com todos – o que lhe valeu o insulto imortal de Pope:

“Como Catão, dita leis a seu senadozinho e senta-se a contemplar o próprio aplauso.”32

Longe de ser o rei entre os companheiros, Johnson era uma espécie de membro irlandês do seu próprio parlamento. Addison era um cortês superior aos demais; e era odiado. Johnson era um insolente igual aos demais; e era amado por todos os que o conheciam e foi eternizado num maravilhoso livro que é um puro milagre de amor.

A doutrina da igualdade é essencial numa conversa. Quem sabe o que é uma conversa, terá de admiti-lo. Enquanto discute à mesa de uma taberna, o homem mais famoso da terra

desejaria obscurecer-se a fim de que suas brilhantes observações pudessem resplandecer como estrelas sobre o pano de fundo de sua obscuridade. Para quem é digno de ser chamado homem, não há nada mais frio e melancólico que ser o rei entre os companheiros. Mas pode-se dizer que nos esportes e jogos masculinos, exceto pelo jogo da discussão, há certamente

emulação e desprestígio. Há de fato emulação, mas esta é tão somente uma espécie de

igualdade. Os jogos são competitivos, pois esta é a única maneira de torná-los empolgantes. Contudo, se alguém duvidar de que os homens precisam sempre retornar ao ideal da

igualdade, bastará dizer-lhe que existe uma coisa chamada handicap. Se os homens exultassem pela superioridade pura e simples, buscariam ver quão longe poderia ir tal

superioridade: ficariam contentes ao ver um corredor forte chegar milhas à frente dos demais. Mas não é do triunfo dos superiores que os homens gostam, mas do combate entre iguais. E isso apraz-lhes tanto, que chegam ao ponto de introduzir uma igualdade artificial em seus esportes competitivos. Entristece pensar quão poucos dos que estabelecem nossos handicaps esportivos têm alguma probabilidade de perceber que são republicanos abstratos e até mesmo severos.

Não. A verdadeira objeção à igualdade e ao autogoverno não tem nada que ver com qualquer desses aspectos livres e festivos da humanidade. Quando felizes, todos os homens são

democratas. O adversário filosófico da democracia resumiria substancialmente sua posição dizendo que isso “não funcionará”. Antes de prosseguir, registrarei de passagem um protesto contra a pretensão de que saber se uma coisa “funciona” ou trabalha é a única pedra de toque do gênero humano. O céu não funciona nem trabalha; ele joga. Os homens são mais autênticos quando livres e, se acho que os homens são esnobes em seus trabalhos, mas democratas em seus feriados, tomarei a liberdade de crer em seus feriados. É, contudo, essa questão do trabalho o que torna confusa a questão da igualdade. E é disso que haveremos de tratar agora. Talvez a verdade possa ser mais bem colocada assim: a democracia tem um inimigo real: a civilização. Aqueles milagres utilitários da ciência são todos antidemocráticos, não tanto por sua perversão ou por seu resultado prático quanto por sua forma e propósito iniciais. Os luditas tinham razão, talvez não ao pensarem que as máquinas diminuiriam o número de trabalhadores, mas certamente ao pensar que as máquinas diminuiriam o número de patrões. Mais rodas significam menos manivelas; menos manivelas significam menos mãos. A

maquinaria da ciência tem de ser individualista e isolada. Uma multidão pode gritar ao redor de um palácio, mas uma multidão não pode abafar um telefone com seus gritos. Basta o