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O FEMINISMO OU O ERRO EM RELAÇÃO À MULHER

5. A FRIEZA DE CLOÉ

Muito ouvimos falar do erro humano que aceita o que é embuste como se real fosse. Mas convém lembrar que, em questões que não nos são familiares, nós freqüentemente tomamos o real por embuste. É verdade que um homem muito novo pode pensar que a peruca de uma atriz é cabelo de verdade. Mas é igualmente verdade que uma criança ainda mais nova pode dizer que o cabelo de um negro é na realidade uma peruca. É justamente por ser remoto e bárbaro que o lanoso selvagem parece ser artificialmente puro e limpo. Toda gente deve ter notado a mesma coisa na cor firme e quase afrontosa de todas as coisas não familiares, pássaros

tropicais e flores tropicais. Pássaros tropicais parecem-nos salientes brinquedos na vitrine de uma loja. Flores tropicais parecem-nos somente flores artificiais, são como objetos feitos de cera. Eis um assunto complexo e, penso, não desligado da divindade; mas, de qualquer

maneira, é certo que, quando vemos coisas pela primeira vez, temos a imediata impressão de que são criações fictícias; sentimos o dedo de Deus. É só quando já nos acostumamos

completamente a elas e nossos cinco sentidos já se fatigaram que as vemos como fortuitas e sem objetivo, como as copas disformes das árvores ou a nuvem a deslocar-se. Na natureza, o que primeiro nos chama a atenção é o desenho; a percepção dos cruzamentos e confusões nesse desenho só vem depois, por meio da experiência e de uma monotonia quase sinistra. Se um homem visse as estrelas brusca e acidentalmente, pensaria serem tão festivas e artificiais como fogos de artifício. Falamos da loucura de pintar o lírio; mas, se de súbito víssemos o lírio, poderíamos pensar que foi pintado. Dizemos que o diabo não é tão negro como o pintam, mas a própria frase é testemunha do parentesco entre o que se chama de vívido e o que se chama de artificial. Se ao sábio moderno somente fosse permitido olhar de relance para a grama e para o céu, ele diria que a grama não é tão verde como a pintam, que o céu não é tão azul como o pintam. Se alguém pudesse ver o universo inteiro subitamente, parecer-lhe-ia um brinquedo de cores radiantes, assim como o búcero sul-americano parece um brinquedo de cores radiantes. E é isso que são – digo, ambos.

Mas eu não pretendia tratar desse aspecto do chocante ar de artificialidade que têm todos os objetos estranhos. Pretendo apenas, como um guia da história, lembrar que não devemos nos surpreender se coisas feitas em épocas e modas muito distantes das nossas nos parecerem artificiais; devemos convencer-nos de que em nove de dez vezes essas coisas são crua e quiçá indecentemente honestas. Ouviremos homens falarem do classicismo frígido de Corneille ou das empoadas pomposidades do séc. XVIII, mas todas essas frases são demasiado

superficiais. Jamais houve uma época artificial. Jamais houve uma idade da razão. Os homens sempre foram homens e as mulheres, mulheres: e seus dois generosos apetites sempre foram expressar a paixão e contar a verdade. Podemos ver algo de frio e esquisito em seu modo de expressar-se, assim como nossos descendentes hão de ver algo de frio e esquisito em nossa mais grosseira cena de cortiço ou em nossa mais crua e patológica peça de teatro. Mas os homens nunca falaram nada além de coisas importantes; e a força da feminilidade que temos de levar em consideração talvez possa ser mais bem considerada se tomarmos de um

Fala-se do séc. XVIII como o período do artificialismo, ao menos nas coisas externas. Mas é preciso dizer uma ou duas palavras sobre isso. No discurso moderno, usa-se o artificialismo com o sentido de um tipo indefinido de falsidade; e o séc. XVIII era artificial demais para falsear. Cultivava aquela arte integralíssima que não oculta a arte. Suas modas e vestimentas certamente revelavam a natureza com confessarem a artificialidade, assim como naquele conhecido caso da barbearia que cobria todas as cabeças com a mesma prata. Seria espantoso dar a isso o nome de “esquisita humildade ocultando a juventude”; mas pelo menos não era um orgulho maligno ocultando a velhice. Não era do feitio dos homens do séc. XVIII fingirem ser jovens: aceitavam a velhice. O mesmo se deu com o mais ímpar e artificial de seus costumes; eles eram excêntricos, mas não eram falsos. Uma dama pode ser ou não tão rubra quanto os retratistas a pintaram, mas definitivamente não é tão negra quanto a fizeram parecer as pintas postiças que lhe ornavam o rosto.

Mas só introduzo o leitor nessa atmosfera das ficções mais antigas e francas a fim de persuadi-lo a ter, por um momento, paciência com um elemento que é bastante comum na decoração e na literatura daquela época e dos dois séculos que a precederam. É preciso mencioná-lo numa tal relação uma vez que é exatamente uma dessas coisas que parecem tão superficiais quanto o pó, mas que na verdade estão tão arraigadas quanto os cabelos.

Em todas as antigas, floreadas e pastoris canções de amor, particularmente aquelas dos séculos XVII e XVIII, você encontrará uma perpétua crítica à frieza da mulher; símiles incessantes e gastos que comparam seus olhos a estrelas do norte, seu coração ao gelo, seu seio à neve. Ora, a maioria de nós sempre supôs que essas frases antigas e iterativas fossem palavras mortas, algo como um frio papel de parede. Contudo, creio que esses cavalheirosos poetas que escreveram sobre a frieza de Cloé captaram uma verdade psicológica

desconhecida de quase todos os romances realistas de hoje. Nossos romancistas psicológicos não cessam de representar esposas aterrorizando seus maridos: rolando no chão, rangendo os dentes, arremessando a mobília, envenenando o café. Tudo com base numa estranha teoria pré- estabelecida segundo a qual mulheres são o que eles chamam de “sentimentais”. Mas, na

verdade, a forma antiga e frígida está muito mais próxima da realidade vital. A maioria dos homens, se falasse com sinceridade, concordaria que o predicado mais terrível de uma mulher não é ser sentimental, é não o ser.

Talvez a proteção legítima para um organismo tão delicado seja uma tremenda couraça de gelo. Mas, qualquer que seja a explicação psicológica, certamente não há como questionar o fato. O grito instintivo da fêmea furiosa é o noli me tangere. Tomo isso como o exemplo mais óbvio e ao mesmo tempo menos banalizado de uma qualidade fundamental na tradição

feminina que em nossa época tendeu a ser enormemente mal interpretada, tanto no jargão dos moralistas quanto no jargão dos imoralistas. O nome exato disso é modéstia. Mas, como

vivemos numa época de preconceito e já não podemos nos referir às coisas usando seus nomes corretos, consentiremos numa nomenclatura mais moderna e chamaremos isso de dignidade. Seja o que for, é aquilo que milhares de poetas e milhões de amantes chamaram de a frieza de

Cloé. É afim ao clássico e, no mínimo, o oposto do grotesco. E, visto que estamos falando

no simples fato de a mulher trajar saias. É bastante típico do plagiato hidrófobo que hoje e em toda a parte passa por emancipação que uma mulher “avançada” reivindique o direito de usar calças – um direito quase tão grotesco quanto o de usar um nariz postiço. Não sei se o fato de vestir uma saia em cada perna faz com que a liberdade da mulher dê um salto; talvez as

mulheres turcas possam dar-nos alguma informação a respeito. Mas se a mulher ocidental anda por aí arrastando consigo as cortinas do harém, é certo que a tecida mansão foi concebida como um palácio ambulante, não como uma prisão ambulante. Não há dúvida de que a saia expressa a dignidade da mulher, não sua submissão; e isso pode ser provado com uma simples demonstração. Nenhum legislador vestiria propositadamente os grilhões de um escravo;

nenhum juiz apareceria coberto de broad arrows33. Mas quando um homem quer parecer

imponente e majestoso como um juiz, um sacerdote ou um rei, eis que traja saias, as vestes longas e talares da dignidade feminina. Ora, o mundo inteiro está sob o governo das anáguas, pois até os homens as vestem quando querem governar.