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A EMANCIPAÇÃO DA DOMESTICIDADE

O FEMINISMO OU O ERRO EM RELAÇÃO À MULHER

3. A EMANCIPAÇÃO DA DOMESTICIDADE

Seria conveniente fazer ainda um breve observação: essa força exercida sobre um homem para que este desenvolva uma só feição não tem nada que ver com o que se costuma chamar de nosso sistema competitivo; ela existiria igualmente em qualquer outro tipo de coletivismo concebível racionalmente. Os socialistas, a menos que estejam sinceramente dispostos a enfrentar uma queda no padrão de seus violinos, telescópios e lâmpadas elétricas, precisam, de algum modo, criar uma demanda moral nos indivíduos que os induza a manter sua atual concentração nessas atividades. Os telescópios só existem porque alguns homens se fizeram, em algum grau, especialistas; e é preciso que sejam especialistas em algum grau para

garantirem sua manutenção. Não é fazendo de um homem um funcionário público assalariado que se consegue evitar que ele pense especialmente em quão árduo é ganhar seu salário. Mas há somente uma forma de conservar no mundo aquela elevada leveza e aquela perspectiva mais calma que corresponde à antiga visão do universalismo; e esta consiste em permitir que exista uma metade da humanidade parcialmente protegida, uma metade a que as agressivas demandas da indústria decerto afligem, mas apenas indiretamente. Em outras palavras, em cada núcleo da humanidade é essencial a presença de um ser humano apoiado num plano mais amplo, alguém que não “dê o melhor de si”, mas que se dê por inteiro.

Nossa antiga analogia do fogo continua sendo a mais funcional. O fogo não precisa luzir como a eletricidade ou ferver como a água; importa que ilumine mais do que a água e aqueça mais do que a luz. A esposa é como o fogo, ou, colocando as coisas em sua devida proporção, o fogo é como a esposa. Como o fogo, é de esperar que a mulher cozinhe – não que se

destaque na arte culinária, mas simplesmente que cozinhe, e cozinhe melhor que seu marido, enquanto ele lhe obtém o coque à custa de conferências sobre botânica ou quebrando pedras. Como o fogo, espera-se que a mulher conte a filhos histórias – não histórias que primem pela originalidade ou sejam obras de arte, mas simplesmente histórias, histórias mais interessantes do que contaria um chefe de cozinha. Como o fogo, espera-se que a mulher ilumine e ventile – não com alarmantes revelações ou com os mais selvagens sopros do pensamento, mas que o faça melhor que um homem faria depois de quebrar pedras ou fazer preleções. O que não se pode esperar de uma mulher é que suporte algo como esse dever de cunho universal, quando tem igualmente de suportar a crueldade direta de um trabalho competitivo ou burocrático. A mulher deve ser cozinheira, mas não uma cozinheira competitiva; professora, mas não uma professora competitiva; decoradora de interiores, mas não uma decoradora competitiva;

costureira, mas não uma costureira competitiva. Ela não deve ter um ofício, mas vinte hobbies. E, ao contrário do homem, ela pode-se permitir desenvolver todas as qualidades em que

alcançaria um modesto segundo lugar. Isto é o que na verdade se pretendia com aquilo a que chamam “reclusão”, ou mesmo “opressão” da mulher. As mulheres não foram mantidas nos lares para conservá-los estreitos; ao contrário, foram mantidas nos lares para conservá-los amplos. Do lado de fora do lar, o mundo era uma massa de exigüidades, um labirinto de vias estreitas, um manicômio de monomaníacos. E foi somente com limitá-la e protegê-la

aproximar-se tanto de Deus quanto a criança quando brinca de cem coisas diferentes. Mas as ocupações da mulher, ao contrário das da criança, eram todas verdadeiramente – e quiçá terrivelmente – frutíferas; tão tragicamente reais que nada as impediria de se tornarem meramente mórbidas, não fosse a universalidade e o equilíbrio da mulher.

Isso é o que há de substancial na discussão que proponho sobre o papel histórico das mulheres. Não nego que mulheres foram prejudicadas ou mesmo torturadas. Mas duvido que em algum momento tenham sofrido tortura maior do que esta que lhes impõe a absurda

tentativa moderna de fazer delas a um só tempo imperatrizes do lar e funcionárias

competitivas. Não nego que, mesmo sob a antiga tradição, as mulheres tiveram vidas mais árduas que os homens; e é por esse motivo que lhes tiramos nossos chapéus. Não nego que todas essas variadas funções femininas foram exasperantes; mas afirmo que havia algum fim e sentido em conservar tal variedade. Tampouco nego que a mulher tenha sido uma serva; mas ela, ao menos, era uma serva faz-tudo.

A maneira mais breve de sumarizar essa posição é dizer que a mulher representa a idéia da sensatez, morada intelectual para onde a mente volta depois de todas as excursões pelas terras da extravagância. A mente que segue por caminhos selvagens é a do poeta; mas a mente que jamais encontra o caminho de volta é a do lunático. Ora, em toda máquina deve haver uma parte movente e uma parte imóvel, e em tudo quanto muda deve haver uma parte imutável. E muitos dos fenômenos que os modernos se apressam em condenar são na verdade partes dessa posição da mulher como núcleo e pilar da saúde. Boa parte daquilo a que chamam

subserviência ou docilidade da mulher são tão somente a subserviência e a docilidade de um remédio universal. Elas possuem a propriedade de, como o remédio, variar sua atuação de acordo com a doença. Para o marido mórbido, há que ser uma otimista; mas uma pessimista salutar para o marido tomado de uma alegria irresponsável e cega. Ela tem de impedir que o dom Quixote seja pisado e que o brigão pise os outros. O rei da França escreveu: Toujours

femme varie / bien fol qui s’y fie (“A mulher sempre varia / louco o que nela se fia”). Que a

mulher sempre varia é fato; porém, é exatamente tal fato o que justifica sempre confiarmos nela. Corrigir toda aventura e extravagância ministrando o antídoto do senso comum não é – como os modernos parecem pensar – estar na posição de um espião ou de um escravo; é estar na posição de Aristóteles ou – baixando ao mais rasteiro dos níveis – de Herbert Spencer, é ser uma moral universal, todo um sistema de pensamento. O escravo bajula, o moralista integral censura. Em suma, é ser um trimmer, no sentido primeiro e verdadeiro deste ilustre termo – o sentido de “estivador” – que por alguma razão é sempre empregado numa acepção exatamente contrária – a de “oportunista”, “vira-casaca”. De fato, parecem supor que um

trimmer seja uma pessoa covarde que sempre passa para o lado mais forte, quando, na

verdade, o termo originalmente faz referência a um homem altamente cavalheiro que sempre passa para o lado mais fraco, tal como aquele que redistribui a carga de um barco indo sentar- se onde poucos estão sentados. A mulher é um trimmer, um estivador, e seu ofício é generoso, perigoso e ao mesmo tempo romântico.

Mas há ainda um último fato, bastante simples, que consolida tal posição. Suponhamos que se admita que a humanidade agiu pelo menos de forma não artificial quando se dividiu em

duas metades, tipificando respectivamente os ideais do talento específico e da sensatez geral – visto que são genuinamente difíceis de se fundir por completo em uma mesma mente. Não é difícil enxergar aí o porquê de a linha de clivagem ter acompanhado a do sexo, ou de o feminino ter-se tornado a insígnia do universal e o masculino, do específico e superior. Há dois gigantescos fatos da natureza que assim fixaram as coisas: em primeiro lugar, a mulher que cumprisse com freqüência suas funções literalmente não poderia ser especialmente proeminente no experimento e na aventura; em segundo lugar, a mesma operação natural a cercava de crianças muito pequenas, que não requeriam o ensino de nada menos que tudo quanto existe. Bebês não têm necessidade de aprender um ofício, mas de serem introduzidos num mundo. A mulher, enfim, é geralmente encerrada numa casa com um ser humano no

preciso momento em que ele começa a formular todas as perguntas que existem e algumas que não existem. Seria no mínimo estranho se ela conservasse qualquer traço da minuciosa

estreiteza do especialista. Pois bem, se alguém diz que essa função de prestar uma instrução geral (ainda que livre das regras e horários modernos e exercida de modo mais espontâneo por uma pessoa mais protegida) é em si mesma severa e opressora, tento compreender seu ponto de vista. A única resposta que lhe posso dar é a de que, se nossa raça julgou

conveniente lançar tal carga sobre as mulheres, o fez para conservar o senso comum no

mundo. Mas, quando as pessoas começam a falar dessa função doméstica não mais como algo somente difícil, mas atribuem-lhe os rótulos “trivial” e “monótona”, então eu simplesmente desisto de discutir. Pois por mais que empenhe toda a energia da imaginação não consigo entender o que querem dizer com isso. Quando, por exemplo, chama-se a domesticidade de fatigante, toda a dificuldade surge do duplo sentido da palavra. Se fatigante designa apenas um trabalho terrivelmente pesado, tenho de admitir que o trabalho doméstico de fato fatiga a

mulher, assim como fatigaria um homem o trabalho na catedral de Amiens ou detrás de um canhão em Trafalgar. Mas, se fatigante designa um trabalho que, além de pesado, é

insignificante, insosso e de pouca importância para a alma, então – como já disse – desisto; não sei o que significam tais palavras. Ser a rainha Elizabeth numa esfera delimitada, tomando decisões sobre vendas, banquetes, trabalhos e feriados; ser Whiteley numa determinada esfera, fornecendo brinquedos, botas, lençóis, tortas e livros; ser Aristóteles numa determinada

esfera, ensinando moral, bons modos, teologia e higiene – entendo como isso poderia exaurir a mente, mas definitivamente não consigo imaginar como poderia estreitá-la. Como é que

ensinar a regra de três para as crianças dos outros pode ser uma grande e ampla profissão e ensinar suas próprias crianças a respeito do universo, uma profissão restrita? Como é que ser o mesmo para todos pode ser grandioso, e ser tudo para alguém, algo limitado? Não pode ser. A função de uma mulher é trabalhosa, mas porque tem uma amplitude colossal e não porque tenha um alcance diminuto. Compadecer-me-ei da sra. Jones pela imensidade de sua tarefa; jamais me compadecerei dela por sua pequenez.

Mas, conquanto a tarefa essencial da mulher seja a universalidade, isso obviamente não evita que tenha um ou dois graves, mas mui saudáveis preconceitos. De maneira geral, ela tem sido mais consciente do que o homem de que é apenas uma metade da humanidade, porém, ela o tem expressado – se é que isso se pode dizer de uma dama – cravando os dentes nas duas ou

três coisas pelas quais se julga responsável. Gostaria de abrir aqui um parêntese para lembrar que muito do recente problema oficial sobre a mulher originou-se do fato de que ela transfere para o campo da dúvida e da justificação aquela sagrada obstinação apropriada apenas às coisas primeiras que a mulher foi incumbida de guardar. Seus próprios filhos, seu próprio altar devem ser uma questão de princípios – ou, se preferirem, uma questão de preconceito. Por outro lado, quem escreveu as cartas de Junius não deveria ser questão de princípio nem de preconceito, mas uma questão de investigação livre e quase indiferente. Mas tomemos uma garota moderna e enérgica, secretária de uma confederação, e façamo-la mostrar que era George III quem assinava Junius, e em três meses ela própria estará convencida disso, simplesmente por lealdade a seus empregadores. As mulheres modernas defendem seus

escritórios com toda a fúria da domesticidade. Elas lutam pela escrivaninha e pela máquina de escrever como se pela lareira e pelo lar, e desenvolvem uma espécie de feroz postura de

esposa no interesse do chefe invisível da empresa. É por isso que fazem tão bem o trabalho de escritório; e é por isso que não devem fazê-lo.