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Supõe-se que o ritual leigo não apenas reforce o modelo patriarcal que preserva a propriedade mas, em algum grau, resista aos ideais ascéticos do modelo eclesiástico, à medida

que dá espaço para uma manifestação pagã, profana, transgressora, expressa claramente na execução da canção que o rito do casamento comporta. Inserir Cara mama la spósa l’è qui no espaço da festa – e portanto num ambiente em que predominam as liberdades do mundo às avessas (BAKHTIN, 1999) - abre um novo campo de leitura para o texto em estudo e, desnecessário dizer, para a cultura – e para a identidade feminina - que se forma na RCI.

Ao apresentar os cantos ritualísticos coletados em pesquisa etnográfica realizada no norte da Itália, Leydi (1978, p. 60-61) destaca inicialmente que os momentos rituais tradicionais da cultura camponesa estão intrinsecamente relacionados ao ciclo da natureza – e por isso ao calendário agrícola. Quando descreve as festas de casamento e os preparativos que envolviam as famílias dos noivos, Coltro (1982, p. 160) lembra que os camponeses se casavam no outono, citando o provérbio “a San Martin la fiola del contadin” (No dia se São Martinho, [casa-se] a filha do camponês). Leydi (1978, p. 60) insere o dia de San Martino (11 de novembro) entre as festas rituais de abertura do inverno, que pertenciam, como o Natal e o Ano Novo, ao que se denominava no antigo calendário agrícola de “Ciclo do Solstício de Inverno”.

O período em que se realizam os casamentos rurais na RCI coincide com as épocas de menor trabalho nas propriedades. Conforme Azevedo (1980, p. 142), janeiro/fevereiro e junho/julho, esta última “uma fase de menor atividade do campo e de mais recursos financeiros devido à venda anterior das safras de uva, do milho, do trigo, da batata”. Além disso, é aconselhável que a família da noiva não se desfaça de um braço de trabalho às vésperas da colheita. Diante de um pedido de casamento, é comum que o pai intervenha: “sol dopo del la racolta” (só depois de passar a colheita).

Leydi (1978, p. 60) assinala que embora o cristianismo aja profundamente sobre os ritos calendariais ligados ao ciclo da natureza, elementos anteriores muito importantes sobrevivem. Alguns ritos chegam a ser consignados em sua configuração arcaica e mesmo aqueles mais cristianizados estão quase sempre marcados por características pré-cristãs. “Essa permanência demonstra a importância, na cultura oral tradicional, dos eventos rituais do calendário e quão profundas são suas raízes no terreno da cultura camponesa (e talvez, em alguns casos, pré-camponesa)”, diz.

O longo processo de consolidação do cristianismo e a apropriação do casamento como um rito sagrado trouxeram transformações profundas na maneira como se davam as uniões conjugais. Leydi (1978, p. 61) observa, no entanto, que, mesmo em suas configurações contemporâneas, os ritos calendariais continuam revestidos de um valor primário para aqueles que buscam conhecer a cultura popular e também ler mais corretamente outras manifestações

tradicionais. Burke (1989, p. 204) assinala que embora os rituais mais elaborados tenham deixado poucos traços que permitam sua reconstrução com precisão, mesmo assim devem ser considerados, pois muitas vezes os significados dos objetos em estudo – e ele usa o exemplo do herói popular - são alterados quando inseridos em seu cenário. “Um quadro da cultura popular tradicional sem esses rituais seria ainda mais enganador do que a reconstrução [mesmo que parcial] do historiador”, aponta Burke.

Pode-se dizer que na cultura camponesa o casamento é acima de tudo uma festa e, como aponta Azevedo (1980, p. 142), um dos principais momentos de socialização do morador da RCI. Nessa ocasião se come e se bebe fartamente. E até se esbanja. Se dança e se cantam canções tradicionais em dialetos italianos. O riso preenche o lugar. O gaiteiro é indispensável. Não raro os noivos se recolhem ao quarto antes do movimento na casa acabar, pois o baile e a cantoria podem seguir em um grupo menor madrugada adentro. “Num certo sentido – diz Burke (1989, p. 222) – toda festa era um carnaval em miniatura”. Coltro (1982, p. 160) descreve entre as festas de casamento camponesas do norte da Itália as brincadeiras de cunho sexual dirigidas aos noivos pelos convidados:

Tão logo os noivos vão para a mesa (ao centro com seus padrinhos) a sogra traz o brodo à esposa e diz: Me consolo, como signo de augúrio e de festa. Logo em seguida vem servida a especialidade para a noiva, um prato de patas de galinha; o noivo deve, ao invés, deslindar-se , tem que se haver com um osso de boi, já limpo de tudo o que continha de carne, que era chamado de o prato do noivo. Tudo isso sob os gritos de “Viva os noivos”, “Viva a noiva”, Viva o noivo” e eram feitos comentários de caráter sexual (te acostume a chupar) referindo-se à relação marido- mulher (corte-lhe as unhas), dê o osso à esposa e etc.

Durante o banquete, relata o autor, era comum que os convidados fizessem uso da palavra - seja para recitar versos augurais, seja para destacar as “virtudes” do noivo - e cantassem:

As “canções de bodas” do repertório tradicional compreendiam Le caroze son già preparate; Cossa g’ala magna la sposa la prima note (cfr. Il Filó di Dino Coltro – disco), misturadas com cantos de amor como Vien Moretino vien, Andando in campagna, La Violeta, Rosina va in cantina, Vien vien biondina, Pescator che pesca, Giovanoti che fate l’amore, e muitas outras (cfr. Paese Perduto, pagg 305 e segg.).

Quando aborda a temática da música e das canções de amor em território belunense, Secco (1995, p. 228-235) relata o dia do casamento como “o mais rico em música”. O banquete, em especial, era acompanhado de um repertório diversificado de cantos cujas características eram o duplo sentido e a exaltação do ato amoroso. Em algumas canções o

texto chega a ser explicito, ressalva Secco, citando o caso de uma canção cuja versão local, coletada pelo Projeto Ecirs, pode ser identificada como Se te toco 14 e que é descrita pelo pesquisador pela reprodução da seguinte estrofe: Se te tóche le to manine te n canton (3 volte), ghe l diràtu a l to papà, che da sola te ò ciapà e incantonà?/ Setu mat che mi ghe l dighe a l me papà, che contenta son restà incantonà.

As mulheres eram, de acordo com o pesquisador (1995, p. 234-235), os sujeitos prediletos das canções de bodas: a mulher ciumenta, a mulher mal casada, a esposa do velho, a mulher traída. “Sempre e de qualquer modo uma mulher vítima do evento em curso”, diz Secco. Ou seja, a mulher vítima do casamento. Ainda que menos numerosas, complementa – também eram cantadas baladas dedicadas às mulheres fiéis, por exemplo Bel Bernardo.

Como acontece com grande número de exemplares que integram o cancioneiro da RCI, supõe-se que um dos elementos que tenham mantido Cara mama... no repertório dos imigrantes seja o duplo sentido contido no texto, explicitado principalmente nos momentos de performance. Parece a isso se referir Ribeiro quando informa que a canção resistiu ao longo do tempo como brincadeira jocosa, mesmo que deslocada dos rituais de casamento em que originalmente estava inserida. Mostra que a função transgressora é preponderante no processo de resistência das canções. Burke relata (1989, p. 210) o carnaval e os casamentos – que não raro aconteciam ao mesmo tempo na Europa do período moderno – como épocas em que não só se permitiam, mas eram praticamente obrigatórias as cantigas de duplo sentido. O sexo, recupera o autor, ao lado da comida e da violência, aparece como um do temas preferidos, devido às várias maneiras com que podia ser “disfarçado” nas canções. Eram, na verdade, temas “reais e simbólicos” da festa, argumenta.

Diante da riqueza que os símbolos abarcam é apenas possível especular, diz Burke (1989, p. 215). Nesse sentido, a referência que faz ao significado do Carnaval pode também ser aplicada à interpretação das canções:

O que é claro é que o Carnaval era polissêmico, significando coisas diferentes para diferentes pessoas. Os sentidos cristãos foram sobrepostos aos pagãos, sem obliterá- los, e a resultante precisa ser lida como um palimpsesto. Os rituais transmitem simultaneamente mensagens sobre comida e sexo, religião e política.

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Se te toco foi gravada pelo coro Virgínio Pazozzo e reproduzida no disco Mèrica, Mèrica II, lado 2, faixa 2, editado pelo Projeto Ecirs. A primeira estrofe desta versão apresenta o seguinte texto: Se te toco la tua bocheta / và “direto” al tuo pupa?/ Ma sito mato che mi lo diga, / l’é un piacere, / l’è un piacere che ‘l me fà.

Observa-se que as duas canções de bodas coletadas pelo Projeto Ecirs em Antônio Prado são exemplos desse duplo sentido relacionado aos temas do sexo e da comida. Cosa magnerà la sposa, o canto de bodas mais citado pela bibliografia pesquisada (LEYDI, 1977, p. 282-288; SANTOLI, 1979, p. 45; 55; 83; LEYDI; PAIOLA, 1981, p. 123-129; COLTRO, 1982, p. 336; SECCO, 1995, p. 228) e a canção ritualística Cara Mama la spósa l’è qui, trabalhada até o momento.